Foi com bastante atraso que li na íntegra o discurso de Barack Obama em homenagem ao centenário de Nelson Mandela, pronunciado em 17 de julho, em Joanesburgo.
A segunda parte de sua fala é imperdível. Após reconhecer os avanços reais que o nosso mundo fez desde o momento em que Madiba deu os primeiros passos do confinamento, Obama passa a reconhecer algumas das maneiras pelas quais a ordem internacional ficou aquém de sua promessa, dando exemplos de como estruturas anteriores de privilégio e poder e injustiça e exploração nunca desapareceram completamente - como nunca foram totalmente desalojados.
E
durante as últimas décadas do século XX, a visão progressista e democrática que
Nelson Mandela representou de muitas maneiras definiu os termos do debate
político internacional. Isso não significa que a visão foi sempre vitoriosa,
mas estabeleceu os termos, os parâmetros; guiou como pensamos sobre o
significado do progresso e continuou a impulsionar o mundo para frente. Sim,
ainda havia tragédias – sangrentas guerras civis dos Bálcãs ao Congo. Mas
apesar do fato de que o conflito étnico e sectário ainda incendiou com
regularidade devastadora, apesar disso, os acordos de desarmamento nuclear, um
Japão pacífico e próspero, uma Europa unificada ancorada na OTAN, a entrada da
China no sistema mundial de comércio – tudo isso reduziu enormemente a
perspectiva de guerra entre as grandes potências mundiais. E da Europa até a
África, passando pela América Latina e pelo Sudeste Asiático, as ditaduras
começaram a dar lugar às democracias. A marcha avançava. O respeito pelos
direitos humanos e pelo estado de direito, enumerados em uma declaração das
Nações Unidas, tornou-se a norma orientadora para a maioria das nações, mesmo
em lugares onde a realidade ficou muito aquém do ideal. Mesmo quando esses
direitos humanos foram violados, aqueles que violaram estavam na defensiva.
E com essas mudanças geopolíticas vieram mudanças
econômicas gigantescas. A introdução de princípios baseados no mercado, nos
quais economias anteriormente fechadas, juntamente com as forças da integração
global impulsionadas por novas tecnologias, de repente liberaram talentos
empresariais àqueles que já haviam sido relegados à periferia da economia
mundial, com as quais não haviam contado. De repente, eles contaram. Eles
tinham algum poder; eles tinham as possibilidades de fazer negócios. E então
vieram avanços científicos e novas infraestruturas e a redução de conflitos
armados. E, de repente, um bilhão de pessoas foram retiradas da pobreza, e
assim as nações famintas conseguiram se alimentar, e as taxas de mortalidade
infantil despencaram. E enquanto isso, a disseminação da internet possibilitou
que as pessoas se conectassem através dos oceanos, que culturas e continentes
instantaneamente fossem reunidos e, potencialmente, que todo o conhecimento do
mundo pudesse estar nas mãos de uma criança pequena, mesmo na aldeia mais
remota.
Foi o que aconteceu no decorrer de algumas décadas.
E todo esse progresso é real. Tem sido amplo e profundo, e tudo isso aconteceu
– pelos padrões da história humana – em nada mais do que um piscar de olhos. E
agora toda uma geração cresceu e vive em um mundo que, de maneira geral, se
tornou cada vez mais livre, mais saudável, mais rico, menos violento e mais
tolerante.
Isso deveria nos deixar esperançosos. Mas se não
podemos negar os avanços reais que o nosso mundo fez desde o momento em que
Madiba deu os primeiros passos do confinamento, também temos de reconhecer
todas as maneiras pelas quais a ordem internacional ficou aquém de sua
promessa. De fato, é em parte por causa dos fracassos dos governos e das
poderosas elites em responder diretamente às deficiências e contradições dessa
ordem internacional, que vemos agora grande parte do mundo ameaçando a
retroceder a um modo mais antigo, mais perigoso, mais brutal de fazer negócios.
Portanto, temos de começar admitindo que quaisquer leis
que possam ter existido nos livros, quaisquer que sejam os pronunciamentos
maravilhosos existentes nas constituições, quaisquer palavras bonitas que
tenham sido pronunciadas durante estas últimas décadas em conferências
internacionais ou nos salões das Nações Unidas, as estruturas anteriores de
privilégio e poder e injustiça e exploração nunca desapareceram completamente.
Eles nunca foram totalmente desalojados. As diferenças de castas ainda afetam
as chances de vida das pessoas no subcontinente indiano. Diferenças étnicas e
religiosas ainda determinam quem recebe oportunidades na Europa Central ou no
Golfo. É um fato claro que a discriminação racial ainda existe nos Estados
Unidos e na África do Sul. E também é fato que as desvantagens acumuladas em anos
de opressão institucionalizada criaram enormes disparidades em termos de
rendimento, riqueza, educação, saúde, segurança pessoal e acesso ao crédito.
Mulheres e meninas em todo o mundo continuam impedidas de obter de posições de
poder e de autoridade. Muitas continuam impedidas de obter uma educação básica.
Elas são desproporcionalmente vitimadas pela violência e pelo abuso. Elas ainda
recebem menos que os homens por fazer o mesmo trabalho. Isso ainda está
acontecendo. Oportunidade econômica, apesar de toda a magnificência da economia
global, de todos os arranha-céus brilhantes que transformaram a paisagem ao
redor do mundo, ainda deixou de lado bairros inteiros, cidades inteiras,
regiões inteiras e mesmo nações inteiras.
Em outras palavras, para muitas pessoas, quanto mais
as coisas mudam, mais as coisas permanecem as mesmas.
E se por um lado a globalização e a tecnologia
abriram novas oportunidades, impulsionaram um crescimento econômico notável em
partes do mundo anteriormente em dificuldades, ela também prejudicou os setores
agrícola e manufatureiro em muitos países. Também reduziu bastante a demanda
por certos trabalhadores, ajudou a enfraquecer os sindicatos e o poder de
barganha do trabalho. Tornou mais fácil para o capital evitar as leis tributárias
e os regulamentos dos estados-nação – hoje é possível movimentar bilhões,
trilhões de dólares com um toque na tecla de um computador.
E o resultado de todas essas tendências foi uma
explosão da desigualdade econômica. Hoje algumas dezenas de indivíduos controlam
a mesma quantidade de riqueza que a metade mais pobre da humanidade. Isso não é
um exagero, é uma estatística. Pensem sobre isso. Em muitos países de renda
média ou naqueles em desenvolvimento, a nova riqueza seguiu o mesmo padrão de
mau negócio que já existia anteriormente e reforçou ou até agravou os padrões
existentes de desigualdade, sendo que a única diferença é que criou
oportunidades ainda maiores de corrupção numa escala épica. Por outro lado,
para famílias sólidas de classe média em economias avançadas como os Estados
Unidos, essas mudanças trouxeram maior insegurança econômica, especialmente
para aqueles que não têm habilidades especializadas, pessoas que estavam na
indústria, trabalhando em fábricas ou trabalhando em fazendas.
Em todos os países, a influência econômica
desproporcional dos que ocupam o topo tem proporcionado a esses indivíduos uma
influência desproporcional sobre a vida política de seus países e sobre sua
mídia; com isso, políticas contrárias aos seus interesses são perseguidas e
interesses contrários aos seus acabam sendo ignorados. Agora, deve-se notar que
esta nova elite internacional, a classe profissional que os sustenta, difere em
aspectos importantes das aristocracias dominantes de antigamente. Inclui muitos
que se fizeram sozinhos. Inclui os campeões da meritocracia. E embora ainda
predominantemente brancos e masculinos, eles refletem uma diversidade de
nacionalidades e etnias que não existiriam há cem anos. Uma porcentagem
relevante considera-se liberal em sua ideologia, moderna e cosmopolita em sua
perspectiva. Destituídos de paroquialismo, nacionalismo, ou preconceito racial
manifesto ou forte sentimento religioso, eles estão igualmente à vontade em
Nova York, Londres, Xangai, Nairóbi, Buenos Aires ou Joanesburgo. Muitos são
sinceros e eficazes em sua filantropia. Alguns deles colocam Nelson Mandela
entre seus heróis. Alguns até apoiaram Barack Obama para a presidência dos
Estados Unidos, e em virtude do meu status como ex-chefe de Estado, alguns
deles me consideram um membro honorário do clube. E eu fui convidado para essas
coisas extravagantes, sabem? Eles me expulsarão.
Mas a verdade é que em seus negócios, muitos titãs
da indústria e das finanças estão cada vez mais afastados de qualquer local ou
estado-nação, e vivem vidas cada vez mais isoladas em relação à luta das
pessoas comuns em seus países de origem. E suas decisões – suas decisões de
fechar uma fábrica, ou tentar minimizar sua tributação transferindo lucros para
um paraíso fiscal com a ajuda de contadores ou advogados caros, ou sua decisão
de aproveitar mão-de-obra imigrante de baixo custo, ou sua decisão de pagar
suborno – são muitas vezes feitas sem malícia; é apenas uma resposta racional,
eles consideram, às demandas de seus balanços e seus acionistas e pressões
competitivas.
Mas, com muita frequência, essas decisões também são
tomadas sem referência de solidariedade humana – ou de um entendimento básico
das consequências negativas que essas decisões trarão para determinadas pessoas
em determinadas comunidades. De suas salas de diretoria, tomadores de decisão
globais não têm a chance de ver, às vezes, a dor nos rostos dos trabalhadores
demitidos. Seus filhos não sofrem quando os cortes na educação pública e nos
cuidados de saúde são resultantes de uma base fiscal reduzida devido à evasão
fiscal. Eles não podem ouvir o ressentimento de um comerciante mais velho
quando ele reclama que um recém-chegado não fala sua língua em um local de
trabalho onde ele sempre trabalhou. Eles estão menos sujeitos ao desconforto e
ao deslocamento que alguns de seus conterrâneos sofrem com a globalização que
embaralha não apenas os arranjos econômicos existentes, mas os costumes sociais
e religiosos tradicionais.
É por isso que, no final do século XX, enquanto
alguns analistas ocidentais estavam declarando o fim da história e o inevitável
triunfo da democracia liberal e as virtudes da globalização, já existiam sinais
de uma reação adversa – uma reação que chegou em muitas formas. Essa reação foi
anunciada de forma mais violenta com ataque terrorista de 11 de setembro e o
surgimento de redes terroristas transnacionais, alimentadas por uma ideologia
que perverteu uma das grandes religiões do mundo e afirmou uma luta não apenas
entre o Islã e o Ocidente, mas entre o Islã e a modernidade. E a péssima ideia
da invasão do Iraque pelos EUA não ajudou, acelerando esse conflito sectário. A
Rússia, já humilhada pela sua reduzida influência desde o colapso da União
Soviética, sentindo-se ameaçada pelos movimentos democráticos ao longo de suas fronteiras,
repentinamente começou a reafirmar o controle autoritário e, em alguns casos,
se intrometer com seus vizinhos. A China, encorajada por seu sucesso econômico,
começou a protestar contra as críticas ao seu histórico de direitos humanos;
considerando a promoção de valores universais como nada mais que interferência
estrangeira, como imperialismo sob um novo nome. Dentro dos Estados Unidos,
dentro da União Europeia, os desafios à globalização surgiram primeiro da
esquerda, mas vieram mais fortemente da direita, quando começaram crescer
movimentos populistas – que, diga-se de passagem, são cinicamente financiados
por bilionários de direita que tem como objetivo reduzir as restrições do
governo aos seus interesses comerciais – esses movimentos aproveitaram o
mal-estar sentido por muitas pessoas que viviam fora dos núcleos urbanos, que
temiam que a segurança econômica estivesse se esvaindo, que seu status social e
privilégios estivessem se deteriorando, que suas identidades culturais
estivessem sendo ameaçadas por estranhos, por alguém que não se parecia com
eles ou que não falava ou orava como eles faziam.
E talvez mais do que qualquer outra coisa, o impacto
devastador da crise financeira de 2008, em que o comportamento imprudente das
elites financeiras resultou em anos de dificuldades para pessoas comuns em todo
o mundo, fez com que todas as garantias anteriores de especialistas parecessem
vazias – todas aquelas garantias de que os reguladores financeiros sabiam o que
estavam fazendo, que alguém estava cuidando da loja, que a integração econômica
global era um bem que não podia ser adulterado. Por causa das ações tomadas
pelos governos durante e após a crise, incluindo, devo acrescentar, por medidas
agressivas da minha administração, a economia global voltou agora a um
crescimento saudável. Mas a credibilidade do sistema internacional, a fé em
especialistas de lugares como Washington ou Bruxelas, tudo isso levou um golpe.
Com isso uma ideologia de medo, ressentimento e
retrocesso começou a aparecer, e esse tipo de ideologia está agora em
movimento. Está em movimento a um ritmo que teria parecido inimaginável há
alguns anos. Eu não estou sendo alarmista, estou simplesmente mostrando os
fatos. Olhem em volta. A ideologia do homem forte está ascendendo repentinamente,
por meio da qual as eleições e alguma pretensão democrática são mantidas – sua
forma –, mas os que estão no poder procuram minar todas as instituições ou
normas que dão significado à democracia. No Ocidente, há partidos de extrema
direita que muitas vezes se baseiam não apenas em plataformas de protecionismo
e fronteiras fechadas, mas também em um nacionalismo racial nefasto. Muitos
países em desenvolvimento agora estão considerando o modelo de controle
autoritário da China combinado com o capitalismo mercantilista como preferível
à confusão da democracia. Quem precisa de liberdade de expressão enquanto a
economia estiver indo bem? A imprensa livre está sob ataque. A censura e o
controle estatal da mídia estão em ascensão. A mídia social – antes vista como
um mecanismo para promover o conhecimento, a compreensão e a solidariedade –
provou ser igualmente eficaz na promoção do ódio, da paranoia e das teorias da
conspiração.
Assim, no aniversário de 100 anos de Madiba, estamos
agora em uma encruzilhada – um momento no tempo em que duas visões muito
diferentes do futuro da humanidade competem pelos corações e mentes dos
cidadãos ao redor do mundo. Duas histórias diferentes, duas narrativas
diferentes sobre quem somos e quem devemos ser. Como devemos responder?
Acaso deveríamos ver aquela onda de esperança que
sentimos com a libertação de Madiba da prisão, do Muro de Berlim descendo?
Deveríamos pensar que essa esperança que tínhamos era ingênua ou ignorante?
Deveríamos entender os últimos 25 anos de integração global como nada mais que
um desvio do ciclo inevitável da história anterior – em que a política é uma
competição hostil entre tribos, raças, religiões e nações que disputam em um
jogo de soma zero, no qual estaremos constantemente à beira do conflito até que
a guerra completa irrompe? É isso que pensamos?
Deixem-me dizer no que eu acredito. Eu acredito na
visão de Nelson Mandela. Eu acredito em uma visão compartilhada por Gandhi,
King e Abraham Lincoln. Acredito em uma visão de igualdade, justiça, liberdade
e democracia multirracial, construída com base na premissa de que todas as
pessoas são criadas iguais e dotadas pelo nosso criador de certos direitos
inalienáveis. E acredito que um mundo governado por tais princípios é possível
e que pode alcançar mais paz e mais cooperação na busca de um bem comum. É
nisso que eu acredito.
E acredito que não temos escolha a não ser seguir em
frente; que aqueles de nós que acreditam na democracia, nos direitos civis e em
uma humanidade comum têm uma história melhor para contar. E eu acredito que
isso não se baseia apenas em um sentimento, acredito que seja baseado em
evidências concretas.
É fato que as sociedades mais prósperas e
bem-sucedidas do mundo, aquelas com os mais altos padrões de vida e os mais
altos níveis de satisfação entre seus povos, são aquelas que mais se aproximam
do ideal progressista liberal de que falamos e que alimentam os talentos e
contribuições de todos os seus cidadãos.
É fato que governos autoritários têm se mostrado
repetidamente corruptos porque eles não são responsabilizados por reprimir seu
povo, e por eventualmente perder o contato com a realidade; envolvem-se em
mentiras cada vez maiores que acabam por resultar em estagnação econômica,
política, cultural e científica. Olhem para a história. Olhem para os fatos.
É fato que países que se baseiam em nacionalismo e
xenofobia raivosos, que têm doutrinas de superioridade tribal, racial ou
religiosa como princípios teóricos para manter as pessoas unidas, são os países
que eventualmente serão consumidos por guerras civis ou guerras externas.
Confiram nos livros de história.
É fato que a tecnologia não pode ser colocada de
volta em uma garrafa, então estamos presos à realidade na qual agora vivemos
juntos, e que as populações vão se movimentar de um lugar para outro e que os
desafios ambientais não vão desaparecer sozinhos. A única maneira de abordar
efetivamente problemas como mudança climática, migração em massa ou doenças
pandêmicas será desenvolver sistemas para aumentar a cooperação internacional,
não para diminuí-la.
Nós temos uma história melhor para contar. Mas dizer
que nossa visão para o futuro é melhor não é dizer que ela irá inevitavelmente
vencer. Porque a história também mostra o poder do medo. A história mostra o
domínio duradouro da ganância e o desejo de dominar os outros nas mentes dos
homens. Especialmente dos homens. A história mostra com que facilidade as
pessoas podem ser convencidas a juntar os que parecem diferentes ou adorar a
Deus de uma maneira diferente. Então, se formos verdadeiramente continuar a
longa caminhada de Madiba em direção à liberdade, teremos de trabalhar mais e
teremos de ser mais inteligentes. Nós vamos ter de aprender com os erros do
passado recente. E assim, no pouco tempo que me resta aqui, deixem-me sugerir
apenas algumas diretrizes para o caminho a seguir, diretrizes que tirei do
trabalho de Madiba, das suas palavras, das suas lições de sua vida.
Primeiro, Madiba nos mostrou que se acreditamos na
liberdade e na democracia teremos de lutar mais para reduzir a desigualdade e
promover oportunidades econômicas duradouras para todas as pessoas.
Agora, não acredito no determinismo econômico. Os
seres humanos não vivem só de pão. Mas eles precisam de pão. E a história
mostra que as sociedades que toleram grandes diferenças de riqueza alimentam
ressentimentos e reduzem a solidariedade e, na verdade, crescem mais
lentamente; e que, quando as pessoas alcançam mais do que mera subsistência,
elas passam a medir o seu bem-estar comparando-se com seus vizinhos e esperam que
seus filhos possam ter uma vida melhor. E quando o poder econômico está
concentrado nas mãos de poucos, a história também mostra que o poder político
certamente o seguirá – e essa dinâmica corrói a democracia. Às vezes pode ser
uma corrupção direta, mas às vezes pode não envolver a troca de dinheiro; é só
gente que é tão rica que consegue tudo o que quer, e isso prejudica a liberdade
humana.
E Madiba entendeu isso. Isso não é novidade. Ele nos
alertou sobre isso. Ele disse: “A globalização pode significar em alguns
lugares, como tantas vezes acontece, que os ricos e os poderosos agora têm
novos meios para se enriquecer e fortalecer a si mesmos à custa dos mais pobres
e mais fracos, [então] temos a responsabilidade de protestar em nome da
liberdade universal “. Isso foi o que ele disse. Então, se estamos falando
sério sobre a liberdade universal hoje, se nos preocupamos com a justiça social
hoje, temos a responsabilidade de fazer algo a respeito. E eu respeitosamente
emendaria o que Madiba disse. Eu não faço isso com frequência, mas eu diria que
não é o suficiente protestarmos; vamos ter de construir, vamos ter de inovar,
vamos ter de descobrir como podemos fechar esse abismo crescente de riqueza e
oportunidade, tanto dentro dos países como entre eles.
E como conseguiremos isso vai variar de país para
país, e sei que o novo presidente de vocês está empenhado em arregaçar as
mangas e tentar fazê-lo. Mas podemos aprender com os últimos 70 anos que isso
não envolverá capitalismo desregulado, desenfreado e antiético. Também não
envolverá o socialismo antigo de comando e controle pelo topo. Isso já foi
tentado; não funcionou muito bem. Para quase todos os países, o progresso
dependerá de um sistema de mercado inclusivo – que ofereça educação para todas
as crianças, que proteja a negociação coletiva e assegure os direitos de todos
os trabalhadores, que acabe com monopólios para incentivar a concorrência entre
pequenas e médias empresas, que possua leis que erradique a corrupção e que
garanta negociações justas nos negócios, que mantenha alguma forma de
tributação progressiva para que os ricos ainda sejam ricos, mas que devolvam um
pouco para garantir que todos tenham algo e que se possa oferecer saúde
universal, segurança na aposentadoria e investimentos em infraestrutura e
pesquisa científica para que se construa plataformas de inovação.
Eu devo acrescentar, a propósito, mesmo eu estando
realmente surpreso com a quantidade de dinheiro que tenho, e deixem-me dizer
uma coisa: eu não tenho metade da maioria dessas pessoas ou mesmo um décimo ou
um centésimo. Há um máximo de coisas que você pode comer. Há um tamanho máximo
de casa que você pode ter. Há uma quantidade máxima de viagens que você pode
fazer. Quero dizer, é o suficiente. Você não precisa fazer voto de pobreza apenas
para dizer: “Bem, deixe-me ajudar algumas pessoas – deixe-me ver aquela criança
lá fora que não tem o suficiente para comer ou para estudar, deixe-me ajudá-la.
Pagarei um pouco mais em impostos. Tudo bem. Eu posso pagar.” Quero dizer, isso
mostra uma falta de ambição de apenas querer acumular mais e mais e mais, em
vez disso prefiro dizer: “Uau, eu tenho muito. Quem eu posso ajudar? Como posso
dar mais e mais e mais?” Isso é ambição. Isso é impacto. Isso é influência. Que
presente incrível é poder ajudar as pessoas, não apenas você… Onde eu estava?
Dei uma improvisada, mas vocês entenderam meu ponto.
Isso envolve promover um capitalismo inclusivo tanto
dentro das nações como entre as nações. E, como perseguimos, por exemplo, os
objetivos de desenvolvimento sustentável, temos de superar a mentalidade de
caridade. Temos de levar mais recursos para os bolsos esquecidos do mundo
através do investimento e do empreendedorismo, porque há talento em todo o
mundo se for dada uma oportunidade.
Quando se trata do sistema internacional de
comércio, é legítimo que os países mais pobres continuem a buscar acesso aos
mercados mais ricos. E, a propósito, mercados mais ricos, esse não é o maior
problema que vocês estão tendo – que um pequeno país africano está vendendo chá
e flores para vocês. Esse não é o seu maior desafio econômico. Também é
apropriado para as economias avançadas, como os Estados Unidos, insistirem na
reciprocidade de países como a China, que não são mais países pobres, e
garantir o acesso aos seus mercados sem tomar em troca a nossa propriedade
intelectual ou hackear nossos servidores.
Mas mesmo que haja discussões em torno do comércio
exterior, é importante reconhecer uma realidade: a terceirização de empregos de
norte a sul, de leste a oeste, era uma tendência dominante no final do século
XX, mas o maior desafio para os trabalhadores em países como o meu hoje é a
tecnologia. E o maior desafio para o novo presidente de vocês a fim de empregar
mais pessoas aqui também será a tecnologia, porque a inteligência artificial é
uma realidade e está acelerando, teremos carros sem motorista, teremos mais e
mais serviços automatizados, e isso obrigará o trabalho a ser mais
significativo, teremos de ser mais criativos, e esse pacto de mudança irá nos
exigir uma re-imaginação fundamental de nossos arranjos sociais e políticos,
para proteger a segurança econômica e a dignidade.
Segundo, Madiba nos ensina que alguns princípios são
realmente universais – e o mais importante é o princípio de que estamos unidos
por uma humanidade comum e que cada indivíduo tem dignidade e valores
inerentes.
Agora, é surpreendente que tenhamos de afirmar esta
verdade ainda hoje. Mais de um quarto de século depois que Madiba saiu da
prisão, eu ainda tenho de ficar aqui em uma aula dedicando tempo para dizer que
negros e brancos e asiáticos e latino-americanos e mulheres e homens e gays e
heterossexuais, somos todos humanos, que nossas diferenças são superficiais e
que devemos tratar uns aos outros com cuidado e respeito. Eu achava que já era
para sabermos disso. Eu achava que essa noção básica estava bem estabelecida.
Mas acontece que, como estamos vendo essa recente tendência à política
reacionária, percebemos que a luta pela justiça básica nunca está realmente
acabada. Então temos de estar constantemente atentos e lutar contra pessoas que
buscam se elevar colocando alguém para baixo. E, a propósito, também temos de
resistir ativamente – isso é importante, particularmente em alguns países da
África, como a pátria de meu pai. Já fiz isso antes – temos de continuar
batendo na tecla a respeito da noção de que os direitos humanos básicos, como a
liberdade de discordância, ou o direito das mulheres de participar plenamente
da sociedade, ou o direito das minorias à igualdade de tratamento, ou os
direitos das pessoas de não serem espancadas ou presas devido de sua orientação
sexual – temos de ter cuidado para não dizer que de alguma forma essa luta não
se aplica a nós, que essas são ideias ocidentais, e não imperativos universais.
Mais uma vez, Madiba, ele antecipou as coisas. Ele
sabia do que estava falando. Em 1964, antes de receber a sentença que o
condenou a morrer na prisão, ele explicou do banco dos réus que “A Carta Magna,
a Declaração de Direitos Humanos são documentos que são mantidos em veneração
pelos democratas em todo o mundo”. Em outras palavras, esses livros não foram
escritos por sul-africanos, então não era possível reivindicá-los. Ele disse
que é parte da sua herança. É parte da herança humana. Isso se aplica aqui neste
país, para mim e para vocês. E isso é parte do que lhe deu a autoridade moral
que o regime do apartheid nunca poderia reivindicar,
porque ele estava mais familiarizado com os melhores valores do que eles. Ele
leu os documentos do apartheid com mais cuidado do que eles. E
prosseguiu dizendo: “A divisão política baseada na cor é inteiramente
artificial e, quando ela desaparece, a dominação de um grupo de cores por outro
também some”. Isso é Nelson Mandela falando em 1964, quando eu tinha três anos
de idade.
O que era verdade então, permanece verdadeiro hoje.
Verdades básicas não mudam. É uma verdade que pode ser adotada pelos ingleses,
pelos indianos, mexicanos, pelos luos, pelos bantus e pelos americanos. É uma
verdade que está no coração de toda religião mundial – que devemos fazer aos
outros o que gostaríamos que fizessem a nós. Que nos vemos em outras pessoas.
Que podemos reconhecer esperanças comuns e sonhos comuns. E é uma verdade que é
incompatível com qualquer forma de discriminação baseada em raça ou religião ou
gênero ou orientação sexual. E é uma verdade que, a propósito, quando abraçada,
realmente proporciona benefícios práticos, uma vez que garante que uma
sociedade possa aproveitar os talentos, a energia e a habilidade de todas as pessoas.
E se você duvida, basta perguntar ao time de futebol francês que acabou de
ganhar a Copa do Mundo. Porque nem todas essas pessoas se parecem com gauleses
para mim. Mas eles são franceses. Eles são franceses.
Abraçar nossa humanidade comum não significa que
tenhamos de abandonar nossas identidades étnicas, nacionais e religiosas.
Madiba nunca deixou de se orgulhar de sua herança tribal. Ele não deixou de se
orgulhar de ser negro e de ser sul-africano. Mas ele acreditava, como eu
acredito, que você pode se orgulhar de sua herança sem denegrir os de uma
herança diferente. Na verdade, quando você faz isso, você desonra sua herança.
Isso me faz pensar que você é um pouco inseguro sobre sua herança se tiver de
colocar a herança de outra pessoa para baixo. Sim, está certo. Vocês não sentem
que às vezes – de novo, eu estou improvisando aqui – essas pessoas que estão
tão concentradas em colocar as pessoas para baixo deixam transparecer o seu
coração pequeno, que eles estão com medo de alguma coisa? Madiba sabia que não
podemos reivindicar justiça para nós quando ela é reservada apenas para alguns.
Madiba entendeu que não podemos dizer que temos uma sociedade justa
simplesmente porque substituímos a cor da liderança mantendo um sistema
injusto. Não é porque o nosso líder se parece conosco. Se ele continua fazendo
a mesma coisa, nós continuamos não tendo justiça. Isso não funciona. Não é
justiça se agora que você está no topo, você faz com as pessoas o mesmo que
elas faziam com você antes. Isso não é justiça. “Eu detesto o racismo”, disse
ele, “se vem de um homem negro ou de um homem branco”.
Agora, temos de reconhecer que existe uma
desorientação que vem da mudança rápida e da modernização, e o fato de que o
mundo encolheu, e vamos ter de encontrar maneiras de diminuir os medos daqueles
que se sentem ameaçados. No debate atual do Ocidente em torno da imigração, por
exemplo, não é errado insistir que as fronteiras nacionais importam, se você é
um cidadão. Ou acaso não importará a um governo que as leis precisem ser
seguidas; que, no âmbito público, os recém-chegados devam se esforçar para
adaptar-se à linguagem e aos costumes de seu novo lar? Essas são coisas
legítimas e temos de ser capazes de envolver as pessoas que se sentem como se
as coisas não estivessem em ordem. Mas isso não pode ser uma desculpa para
políticas de imigração baseadas em raça, etnia ou religião. Tem de haver alguma
consistência. E podemos impor a lei respeitando a humanidade essencial daqueles
que estão lutando por uma vida melhor. Para uma mãe com um filho nos braços,
podemos reconhecer que ali poderia ser alguém da nossa família, que poderia ser
meu filho.
Em terceiro lugar, Madiba nos lembra que a
democracia é mais do que apenas eleições.
Quando ele foi libertado da prisão, a popularidade
de Madiba – bem, você não podia nem medir isso. Ele poderia ter sido presidente
vitalício. Estou errado? Quem iria concorre contra ele? Quero dizer, Ramaphosa
era popular, mas vamos lá. Além disso, ele era jovem – ele era jovem demais. Se
ele quisesse, Madiba poderia ter governado por decreto executivo, sem qualquer
restrição. Mas, em vez disso, ajudou a guiar a África do Sul através da
elaboração de uma nova Constituição, baseada em todas as práticas
institucionais e ideais democráticos que se mostraram mais robustos, atento ao
fato de que nenhum indivíduo possui o monopólio da sabedoria. Nenhum indivíduo
– nem Mandela, nem Obama – é totalmente imune às influências corruptoras do
poder absoluto. Se você pode fazer o que quiser, todo mundo terá medo de dizer quando
você cometer um erro. Ninguém está imune aos perigos disso.
Mandela entendeu isso. Ele disse: “A democracia é
baseada no princípio da maioria. Isso é especialmente verdade em um país como o
nosso, onde a grande maioria tem tido seus direitos sistematicamente negados.
Ao mesmo tempo, a democracia também exige que os direitos das minorias sejam
salvaguardados”. Ele entendeu que não é apenas sobre quem tem mais votos. É
também sobre a cultura cívica que construímos, que faz a democracia funcionar.
Então, temos de parar de fingir que os países que
meramente realizam eleições onde às vezes o vencedor magicamente obtém 90% dos
votos porque toda a oposição está trancada – ou não pode entrar na TV – são
democracias. A democracia depende de instituições fortes e da garantia dos
direitos das minorias, de restrições e contrapesos, de liberdade de expressão,
de imprensa livre, do direito de protestar, de um judiciário independente e da
ideia de que todos devem seguir as leis.
E, sim, a democracia pode ser confusa, pode ser
lenta e pode ser frustrante. Eu sei disso, eu garanto. Mas a eficiência
oferecida por um autocrata é uma promessa falsa. Não acredite nela, porque ela
leva, invariavelmente, a uma maior consolidação da riqueza no topo e do poder
no topo, e torna mais fácil esconder a corrupção e o abuso. Apesar de todas as
suas imperfeições, a democracia real sustenta melhor a ideia de que o governo
existe para servir o indivíduo e não o contrário. E é a única forma de governo
que tem a possibilidade de tornar essa ideia real.
Então, para aqueles de nós que estão interessados em
fortalecer a democracia, paremos também – é hora de pararmos de prestar atenção
às capitais mundiais e aos centros de poder e começar a nos concentrar mais nas
bases, porque é daí que a legitimidade democrática virá. Não de cima para
baixo, não de teorias abstratas, não apenas de especialistas, mas de baixo para
cima. Conhecendo as vidas daqueles que estão lutando.
Como líder comunitário, aprendi muito com um
metalúrgico desempregado em Chicago ou com uma mãe solteira em um bairro pobre
que visitei, como aprendi com os melhores economistas do Salão Oval da Casa
Branca. Democracia significa estar em contato e em sintonia com a vida como ela
é vivida em nossas comunidades, e isso é o que devemos esperar de nossos
líderes, e isso depende do cultivo de líderes na base que possam ajudar a
trazer mudanças e implementá-las na prática. Pessoas que digam aos líderes que
estão em edifícios extravagantes o que não está funcionando aqui embaixo no
mundo real.
E para fazer a democracia funcionar, Madiba nos
mostra que também temos de continuar ensinando nossos filhos, e a nós mesmos –
e isso é realmente difícil – a nos engajar com pessoas que não apenas têm uma
aparência diferente, mas possuem visões diferentes. Isso é difícil.
A maioria de nós prefere nos cercar de opiniões que
validem o que já acreditamos. Você percebe que as pessoas que você acha
inteligentes são as pessoas que concordam com você. Engraçado como isso
funciona. Mas a democracia exige que também possamos entrar na realidade das
pessoas que são diferentes de nós para que possamos entender seu ponto de
vista. Talvez possamos convencê-los a mudar de ideia, mas talvez elas mudem as
nossas. E você não pode fazer isso se você simplesmente ignorar o que seus
oponentes têm a dizer desde o início. E você não pode fazer isso se você
insistir que aqueles que não são como você – porque são brancos, ou porque são
do sexo masculino – de alguma forma não têm como entender o que você sente, que
de alguma forma eles não têm direito para falar sobre certos assuntos.
Madiba viveu essa complexidade. Na prisão, ele
estudou africâner para poder entender melhor as pessoas que o estavam
encarcerando. E quando ele saiu da prisão, ele estendeu a mão para aqueles que
o haviam prendido, porque ele sabia que eles tinham de ser parte da África do
Sul democrática que ele queria construir. “Para fazer as pazes com um inimigo”,
escreveu ele, “é preciso trabalhar com esse inimigo e tornar esse inimigo um
parceiro.”
Assim, aqueles que têm opiniões rígidas quando se
trata de política, seja à esquerda ou à direita, tornam a democracia inviável.
Você não pode esperar obter 100% do que você quer o tempo todo; às vezes, você
tem de abrir mão de alguma coisa. Isso não significa abandonar seus princípios,
mas significa manter esses princípios e ter a confiança de que eles resistirão
a um debate democrático sério. Foi assim que os fundadores dos Estados Unidos
planejaram que nosso sistema funcionasse – que, através do teste de ideias e da
aplicação da razão e da prova, seria possível chegar a uma base para um terreno
comum.
E devo acrescentar que para que isso funcione, temos
que realmente acreditar em uma realidade objetiva. Essa é uma dessas coisas que
eu não precisei de aulas para aprender. Você tem de acreditar em fatos. Sem
fatos, não há base para cooperação. Se eu disser que este é um pódio e você
disser que é um elefante, vai ser difícil para nós cooperarmos. Eu posso
encontrar um terreno comum para aqueles que se opõem aos Acordos de Paris
porque, por exemplo, eles podem dizer “bem, não vai funcionar”, você não pode
fazer todos cooperarem, ou eles podem dizer que é mais importante nos fornecer
energia barata para os pobres, mesmo que isso signifique, a curto prazo, que
haja mais poluição. Pelo menos eu posso ter um debate com eles sobre isso e
posso mostrar a eles porque eu acho que a energia limpa é o melhor caminho –
especialmente para os países pobres –, porque é possível ultrapassar
tecnologias antigas. O que eu não consigo é encontrar um terreno comum se
alguém diz que a mudança climática não está acontecendo, quando quase todos os
cientistas do mundo nos dizem que está. Eu não sei nem por onde começar a falar
sobre isso. Se você começar a dizer que é uma farsa elaborada, não sei o que
fazer – por onde começamos?
Infelizmente, muito da política hoje parece rejeitar
o próprio conceito de verdade objetiva. As pessoas inventam coisas. Eles apenas
inventam coisas. Nós vemos isso na propaganda patrocinada pelo estado; vemos
isso em fabricações conduzidas pela internet, vemos isso na confusão entre
notícias e entretenimento, vemos a total perda de vergonha entre os líderes
políticos, quando eles são pegos em uma mentira e eles simplesmente enrolam e
mentem um pouco mais. Os políticos sempre mentiram, mas era diferente, se você
os pegasse mentindo, eles diriam algo como “Oh, cara”. Agora eles continuam
mentindo.
Aliás, isso é o que eu acho que Mama Graça estava
falando em termos de algum senso de humildade que Madiba sentia, como às vezes
coisas básicas… não mentir para as pessoas parece básico, não pensar em mim
como um grande líder só porque eu não falo mentiras descaradas também é básico.
De qualquer forma, vemos isso na promoção do anti-intelectualismo e na rejeição
da ciência por parte de líderes que acham o pensamento crítico e os dados de
alguma forma politicamente inconvenientes. E, como na negação dos direitos, a
negação dos fatos vai contra a democracia, pode ser a sua ruína, e é por isso
que devemos proteger zelosamente a mídia independente; e temos de nos proteger
contra a tendência das mídias sociais se tornarem puramente uma plataforma para
um espetáculo de indignação ou desinformação; e temos de insistir que nossas
escolas ensinem o pensamento crítico aos nossos jovens, não apenas a obediência
cega.
O que – tenho certeza de que vocês já estão cansados
e irão agradecer – me leva ao meu último ponto: temos de seguir o exemplo de
persistência e esperança de Madiba.
É tentador ceder ao cinismo: acreditar que as
mudanças recentes na política global são muito poderosas para retroceder; que o
pêndulo retroagiu permanentemente. Assim como as pessoas falaram sobre o
triunfo da democracia nos anos 90, agora vocês estão ouvindo as pessoas falarem
sobre o fim da democracia e o triunfo do tribalismo e do homem forte. Temos de
resistir a esse cinismo.
Porque, nós já passamos por tempos mais obscuros,
nós estivemos em vales mais baixos e vales mais profundos. Sim, até o final de
sua vida, Madiba incorporou a luta bem-sucedida pelos direitos humanos, mas a
jornada não foi fácil, não foi pré-ordenada. O homem ficou preso por quase três
décadas. Ele quebrou pedra no sol, dormiu em uma pequena cela e foi
repetidamente colocado em confinamento solitário. E eu lembro de ter conversado
com alguns de seus ex-colegas que diziam como eles não tinham percebido, quando
foram libertados, como a mera visão de uma criança, a ideia de segurar uma
criança, eles haviam perdido – não foi algo disponível para eles, por décadas.
E, no entanto, seu poder realmente cresceu durante
aqueles anos – e o poder de seus carcereiros diminuiu, porque ele sabia que se
você mantém o que é verdadeiro, que se você sabe o que está em seu coração e se
você está disposto a se sacrificar por isso, mesmo enfrentando chances mínimas,
mesmo que isso possa não acontecer amanhã, possa não acontecer na próxima
semana, possa nem acontecer em sua vida, as coisas podem retroceder por um
tempo, mas no final das contas, o que é certo tem poder e não o contrário. A
ideia de que a melhor história pode vencer é tão forte quanto o espírito de
Madiba pode ter sido, mas ele não teria sustentado essa esperança se estivesse
sozinho na luta. Parte da sua motivação vinha do fato de que ele sabia que a
cada ano as fileiras de combatentes da liberdade estavam se reabastecendo,
homens e mulheres jovens, aqui na África do Sul, no ANC e além; negros,
indianos e brancos, do outro lado do campo, por todo o continente, em todo o
mundo, que naqueles dias mais difíceis continuariam trabalhando em prol das
mesmas ideias.
E é disso que precisamos agora, não precisamos
apenas de um líder, não precisamos apenas de uma inspiração, o que precisamos
agora é desse espírito coletivo. E eu sei que aqueles jovens, aqueles
portadores de esperança estão se reunindo ao redor do mundo. Porque a história
mostra que sempre que o progresso é ameaçado, e as coisas que mais nos
preocupam estão em questão, devemos ouvir as palavras de Robert Kennedy –
falando aqui, na África do Sul, ele disse: “Nossa resposta é a esperança do
mundo: é confiar na juventude, é confiar no espírito dos jovens “.
Então, os jovens que estão na plateia, que estão
ouvindo, minha mensagem para vocês é simples: continuem acreditando, continuem
marchando, continuem construindo, continuem levantando sua voz. Toda geração tem
a oportunidade de refazer o mundo. Mandela disse: “Os jovens são capazes,
quando despertados, de derrubar as torres da opressão e levantar as bandeiras
da liberdade”. Agora é um bom momento para ser despertado. Agora é um bom
momento para se animar.
E aqueles de nós que se preocupam com o legado que
nós honramos aqui hoje – com igualdade, dignidade, democracia, solidariedade e
bondade –, aqueles de nós que permanecem jovens no coração, se não no corpo,
temos a obrigação de ajudar nossos jovens ter sucesso. Alguns de vocês sabem,
aqui na África do Sul minha Fundação esteve convocando nos últimos dias
duzentos jovens de todo o continente que estão fazendo o trabalho duro de
buscar mudanças em suas comunidades; que refletem os valores de Madiba, que
estão preparados para liderar o caminho.
Pessoas como Abaas Mpindi, um jornalista de Uganda,
que fundou a Media Challenge Initiative, para ajudar outros jovens a obter o
treinamento necessário para contar as histórias que o mundo precisa saber.
Pessoas como Caren Wakoli, uma empreendedora do
Quênia, que fundou a Emerging Leaders Foundation para envolver os jovens no
trabalho de combater a pobreza e promover a dignidade humana.
Pessoas como Enock Nkulanga, que dirige a missão
African Children, que ajuda crianças em Uganda e no Quênia a obterem a educação
de que precisam e, em seu tempo livre, defende os direitos das crianças em todo
o mundo e fundou uma organização chamada LeadMinds Africa, que faz exatamente o
que o nome diz.
Quando você conhece essas pessoas, fala com elas,
elas lhe dão esperança. Elas estão tomando o bastão, elas sabem que não podem
simplesmente descansar sobre as realizações do passado, até mesmo as
realizações daqueles tão importantes quanto Nelson Mandela. Elas estão sobre os
ombros daqueles que vieram antes, incluindo aquele jovem negro nascido há 100
anos, mas eles sabem que agora é a vez deles fazerem o trabalho.
Madiba nos lembra
que: “Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, de sua
origem ou de sua religião. As pessoas precisam aprender a odiar e, se
aprenderam a odiar, podem aprender a amar, porque o amor vem mais naturalmente
ao coração humano “. O amor vem mais naturalmente ao coração humano, vamos nos
lembrar dessa verdade. Vamos ver isso como nossa estrela guia, vamos nos
alegrar em nossa luta para fazer essa verdade se manifestar aqui na terra para
que daqui a 100 anos as futuras gerações olhem para trás e digam: “eles
mantiveram a marcha, é por isso que vivemos sob as novas bandeiras de
liberdade".
O discurso, na íntegra, pode ser lido aqui.