terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sobre escrever, por Stephen King

              Desde que havia lido a mais uma das excelentes resenhas de Lívio Soares sobre o livro Sobre a escrita: a arte em memórias de Stephen King, havia ficado instigada a conhecer essa obra, que, então, seria o primeiro livro que conheceria do escritor norte-americano. No entanto, na ocasião em que li a resenha do Lívio, não fui em busca do livro, apenas anotei para fazer a busca. Outro dia, por acaso, em uma boa conversa sobre King com Welliton - um adorável e recente amigo e colega de casa, doutorando em Bioinformática -, conversamos sobre os livros de King (de quem Welliton é leitor) e lembramos dessa obra Sobre a escrita. Na conversa, Welliton não apenas foi enfático em me garantir que eu iria gostar da obra, como em afirmar que ele achava que ela me seria inclusive útil, para o atual estado e estágio de trabalho com o meu doutorado: a redação da tese. Com uma solicitude imensa, Welliton foi ao seu quarto, buscou o livro e o pôs em minhas mãos. Como tenho meus misticismos com obras recomendadas pessoalmente - e, neste caso, posta sobre as minhas mãos - tal qual se o livro viesse me buscar, e não como é o mais comum, eu a ele -, no mesmo dia, apressei-me a iniciar a leitura. Logo me envolvi com a obra (exceto com o primeiro capítulo inteiro, que comecei, não gostei, e não quis insistir em ler. Pulei para o segundo, e daí comecei a minha leitura do livro) e tirei muitos, inestimáveis, ensinamentos dela. Por essas razões, sou muito grata ao Welliton por ter me emprestado o seu livro; e a ele deixo um agradecimento especial pelo empréstimo da obra.
               Sobre a escrita de King é um livro imprescindível - por muitos aspectos e para variados escritores; isto é, para escritores não apenas de textos de ficção, mas para todas as pessoas que precisam se valer do ofício da escrita em alguma ou outra situação. É um livro, antes de mais nada, sobre o exercício da escrita. Portanto, de como essa atividade se realiza - ou pode ser realizada de forma mais avisada. 
          King, cumprindo imediatamente o esperado de um título como o que deu a sua obra, dá algumas enormes e valiosas lições sobre o ato da escrita. Mas, ele não as fornece como procedimentos, como se - tal como muitos ainda creem - para se escrever bem, e ser bem-sucedido com textos, existissem fórmulas mágicas as quais recorrer. King, já de início, por exemplo, postula como regra principal do bom texto e da conduta de excelência de um bom escritor, uma fórmula generalizada e ampla. Sua regra de ouro do bom texto é: "ler muito e escrever muito". 
         Em seguida, Stephen King atém-se a revelar certas armadilhas (e nos convence, através de bons exemplos, como são incontestáveis!) para um bom texto. Ele irá defender, por exemplo, que, geralmente um autor de boas descrições usa mais a voz ativa no texto, e dispensa os advérbios e a voz passiva, para conseguir o envolvimento de seu leitor. Segundo ele, a boa obra seria aquela repleta de boas descrições, e essa  definiria-se por: ser "o que transforma o leitor em um participante sensorial da história". Em uma ótima frase, King sumariza a sua opinião afirmando: "O Dumbo não precisava da pena, a mágica estava nele".
       O próprio King, por ele mesmo, em mais de uma passagem de "Sobre a escrita", cumpre a sua capacidade pessoal de escrever bem, e prova conseguir que o seu leitor se torne um participante sensorial de sua narrativa. Uma dessas passagens é muito bem representada quando King narra o estado de imensa dificuldade de recuperar a sua familiaridade com a escrita e a rotina diária de escrever. Após ter sido atropelado por um furgão, em uma tarde, quando fazia sua caminhada habitual na orla de uma estrada do interior dos EUA, e, sem as mínimas condições para conseguir fazer seu trabalho de escritor, como por exemplo, ficar sentado por longo período de tempo, ele fica meses sem escrever.
         Em uma viva (e, a meu ver: belíssima!) passagem sobre o início (ou retomada) da escrita, King consegue dar a dimensão do quão árdua e, na maioria dos casos, marcada por episódios de exaustão, constitui, em realidade, a tarefa da boa escrita; e também, o quão fugaz, é sempre a conquista do estágio de maturidade e excelência de um texto. King enfatiza o quanto escrever é um ato impossível de ser dissociado da prática diária, o quanto requer perseverança na maior parte do tempo e o quanto é marcado por pré-estágios complicados - ou, um "momento tenebroso que vem antes do começo".
        Para aqueles que pretendem se iniciar no ofício, ou mesmo para aqueles que esse ofício é um ganha pão e constantemente estão enfrentando os distanciamentos e retomadas (alô, colegas acadêmicos!), o relato especifico desse episódio do retorno às tarefas de Stephen King é interessantíssimo - se, não diria, compartilhando o próprio efeito benéfico que teve sobre mim a leitura dele, alentador e encorajador ao mesmo tempo. Sua leitura funciona como uma "carta de autorização" - para me valer do próprio termo usado pelo escritor para caracterizar a parte final de seu livro. Acabamos as últimas páginas do livro, quase repetindo em mantra a imperiosa afirmação final de King: "você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, 'você vai' [escrever]".
         O episódio de como foi o processo de retorno, bem como a importância que teve (em mais uma situação de sua vida, diz ele!) a figura de sua mulher para ajudá-lo a novamente acionar o ponto de partida após o longo afastamento dos textos por causa do acidente, é este do trecho abaixo:

[...] Eu não queria mais voltar ao trabalho. Estava sentindo muita dor, não conseguia dobrar o joelho direito e era obrigado a usar um andador. Não me imaginava sentado atrás de uma mesa por muito tempo, nem mesmo de cadeiras de rodas. Por causa de meu quadril destroçado, sentar por mais de quarenta minutos era uma tortura, e por mais de uma hora e quinze minutos, impossível. Além disso, o próprio livro parecia mais intimidador do que nunca - como eu escreveria sobre diálogos e personagens, ou sobre como conseguir um agente, quando a coisa mais importante de meu mundo era o intervalo até a próxima dose de oxicodona?
Ao mesmo tempo, eu sentia que tinha chegado a um daqueles momentos de encruzilhada em que não há mais alternativas. Eu já tinha enfrentado muitas situações terríveis antes, e a escrita me ajudara a superá-las - me ajudara a esquecer de mim por pelo menos alguns momentos. Talvez ela me ajudasse outra vez. Parecia ridículo pensar que funcionaria, dado o nível de dor e a incapacidade física que eu sentia, mas uma voz no fundo de minha cabeça, ao mesmo tempo paciente e implacável, me dizia, como na letra de "Time Has Come Today" [O tempo chegou hoje], dos Chambers Brothers, que a hora era aquela. Eu poderia desobedecer à voz, mas era muito difícil desdenhar dela.
Por fim, foi Tabby quem deu o voto de Minerva, como tantas vezes fez em momentos cruciais de minha vida. Gosto de pensar que fiz o mesmo por ela, de tempos em tempos, porque, para mim, um dos pilares do casamento é dar o voto de Minerva quando o outro não consegue decidir o que fazer.
Minha mulher é a pessoa mais propensa a dizer que estou trabalhando demais, que é hora de diminuir o ritmo, desgrudar desse maldito PowerBook por um minuto, Steve, dar um tempo. Quando disse a ela, naquela manhã de julho, que achava melhor voltar ao trabalho, eu esperava um sermão. Em vez disso, ela me perguntou onde eu queria escrever. Respondi que não sabia, que nem havia pensado no assunto.
Ela havia pensado, então disse:
- Posso colocar uma mesa para você no quartinho dos fundos, fora da copa. Tomadas não faltam, dá para colocar seu Mac, a impressora e um ventilador.
O ventilador seria necessário, com certeza - o verão estava muito quente, e no dia em que voltei a trabalhar a temperatura na rua era de 35 graus. O quartinho dos fundos não estava muito mais fresco.
Tabby levou algumas horas para organizar as coisas e, naquela tarde, às quatro, ela me empurrou cozinha afora até chegar à recém-construída rampa para cadeira de rodas que dava no quartinho. Ela me fizera um maravilhoso ninho ali: laptop e impressora conectados lado a lado, abajur de mesa, manuscrito (com as notas do mês anterior cuidadosamente colocadas em cima), canetas, materiais de referência. No canto da mesa estava um porta-retratos com a foto do nosso filho caçula, que ela tirara no início do verão.
- Está tudo certo?
- Maravilhoso - respondi, e a abracei. Estava mesmo maravilhoso. Maravilhoso como ela.
A Tabitha Spruce, de Oldtown, Maine, que eu conhecia sabia quando eu estava trabalhando demais, mas também sabia que, às vezes, era o trabalho que me libertava. Ela me posicionou na mesa, me deu um beijo na testa e depois me deixou ali para descobrir se eu ainda tinha alguma coisa a dizer. No fim das contas, eu tinha, um pouco, mas sem a compreensão intuitiva de minha mulher de que sim, era hora, não sei se algum de nós jamais teria comprovado.
A primeira sessão de escrita durou uma hora e quarenta minutos, de longe o maior período que eu passei sentado desde o dia em que fora atropelado pelo furgão de Smith. Quando acabei, eu pingava suor e estava exausto demais até para me sentar direito na cadeira de rodas. A dor no quadril era quase apocalíptica. E as primeiras quinhentas palavras foram singularmente aterrorizantes - era como se eu nunca tivesse escrito nada na vida. Todos os velhos truques pareciam ter me abandonado. Fui de uma palavra à outra como um homem muito velho que procura o caminho por uma linha de pedras úmidas em zigue-zague. Não houve inspiração naquela tarde, só uma teimosa determinação e a esperança de que as coisas melhorariam se eu perseverasse. 
Tabby me trouxe uma Pepsi - gelada, doce e gostosa - e, enquanto eu bebia, olhei em volta e tive que rir, apesar da dor. Eu tinha escrito Carrie, a estranha e 'Salem na lavanderia de um trailer alugado. O quartinho nos fundos de nossa casa em Bangor lembrava tanto o velho lugar que me fez sentir quase como se eu tivesse dado uma volta completa.
Não houve nenhuma grande mudança naquela tarde, a não ser o pequeno milagre que advém de qualquer tentativa de se criar algo. Tudo o que sei é que as palavras começaram a sair mais rápido, depois de algum tempo, e depois ainda mais rápido. Meu quadril ainda doía, mas as dores começaram a ficar um pouco mais distantes. Eu comecei a ficar acima delas. Não havia qualquer sentimento de euforia, nenhuma agitação - não naquele dia -, mas uma sensação de dever cumprido que era quase tão boa quanto. Eu perseverei, e isso foi tudo. O momento mais tenebroso vem sempre antes do começo. 
Depois, as coisas só podem melhorar.

              7

Para mim, as coisas melhoraram. Passei por mais duas operações na perna desde aquela primeira tarde abafada no quartinho dos fundos, tive uma onda de infecções bastante grave e continuo a tomar uns cem comprimidos por dia, mas o fixador externo já se foi e eu continuo a escrever. Em alguns dias, a escrita é um caminho longo e muito sombrio. Em outros - cada vez mais, à medida que minha perna começa a se recuperar e minha mente se reacostuma à velha rotina -, eu sinto aquela alegre agitação, aquele sentimento de ter encontrado e colocado no papel as palavras certas. É como decolar com um avião: você está no chão, no chão ... e, de repente, está subindo, andando em um tapete mágico de ar, senhor de tudo o que vê. Escrever me faz feliz, porque nasci para isso. Ainda não recobrei toda a energia - consigo fazer da metade do que costumava fazer em um dia -, mas tenho o suficiente para me levar até o fim deste livro, e sou grato por isso. A escrita não salvou minha vida - fui salvo pela competência do dr. David Brown e pelo amor e o cuidado de minha mulher -, mas continua a fazer o que sempre fez: transformar minha vida em um lugar mais luminoso e agradável. 
A escrita não é para fazer dinheiro, ficar famoso, transar ou fazer amigos. No fim das contas, a escrita é para enriquecer a vida daqueles que leem seu trabalho, e também para enriquecer sua vida. A escrita serve para despertar, melhorar e superar. Para ficar feliz, ok? Ficar feliz. Parte deste livro - talvez grande demais - trata de como aprendi a escrever. Outra parte considerável trata de como escrever melhor. O restante - talvez a melhor parte - é uma carta de autorização: você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. 
Beba até ficar saciado.

KING, Stephen.  Sobre a escrita: a arte em memórias. Trad. Michel Teixeira. Rio de Janeiro: Objetiva [Suma de Letras], 2015, pp. 226-229. 

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