"A minha primeira aula na Economia foi uma palestra com professores ilustres, dois ex-ministros da Fazenda, um ex-presidente do Banco Central, um senador da República e uma estrela do meio, várias vezes cotada para vários cargos públicos, mas que preferia o mundo acadêmico. Ela era uma altruísta: lecionar. Casada com um que já foi do governo e tocava uma empreitada herdada. Casal-modelo que dava festas que saíam em colunas sociais, nas quais recebia prêmios Nobel em visita ao Brasil. Eram surpreendentemente de esquerda, o que alimentava o charme da dupla: a ponte entre o PIB e as centrais sindicais, a negociação em momentos de crise. Ambos de família quatrocentona. Hippies na juventude. Com mestrado na Califórnia, no auge da contracultura, fizeram manifestações contra a Guerra do Vietnã e o escambau. Eram cultos e informais. Foi-nos dito na aula inaugural Ela encerrou o debate homenageando o marido. Ela o amava. Sem ele, sua vida teria sido um vaso sem flor. Isso foi dito. Não parecia mais uma aula, mas um programa de TV, em que casais disputam prêmios. Paixão é piegas.
Ela deu aulas para mim no primeiro semestre: Clássicos do Pensamento Econômico. Era séria. Sempre de vestido preto Elegante. Pontualíssima. Exigia atenção. E tinha um método próprio. Falava exatos 30 minutos, nem mais, nem menos. Depois, abria para a classe. Fazia perguntas e esperava as respostas, emendando-as com mais pensamentos. Afirmava que a participação em aula era o que mais contava na avaliação. Indicava muitos textos a serem analisados na aula seguinte. E os alunos ficavam empolgados com aquela professora dedicada e famosa, que perdia o seu precioso tempo com calouros da graduação. Virou uma rebelião de egos, alunos querendo dizer coisas inteligentes mais do que os outros, sobrepondo-se, exibindo-se, uma competição em torno do pensamento econômico. Meus colegas eram de um outro mundo. Vestiam-se como se estivessem na reunião de uma diretoria de banco. Os meninos, de terno e gravata. As meninas, formais. Aquela faculdade cheirava a tergal. Muitos eram membros da nata da burguesia paulistana. Os que não eram, fingiam que eram, podiam não ter um puto, mas estavam lá, fazendo amigos, contatos futuros. Bem, generalizei. Havia a turma do contra. Pequena. Eu? Sei lá.
Fui morar na Crusp, em que moravam os alunos de baixa renda. E eu me encaixava neste perfil, já que vinha de pais separados e família mal de finanças. Continuava a trabalhar como boy para o meu avô. E era quase seu único funcionário. Perdia clientes à medida que sua idade avançava. Estava para falir também. Faltava pouco para o fim do semestre quando Clara Braga - sim, este era o nome da tal -, ao final de uma aula, fez um balanço da participação dos alunos até reparar num nome, o meu. Falou o meu nome em público, Luiz, perguntando quem era. Estranho, porque ela sabia de cor os nomes de todos os outros. Ela disse isso. Levantei o braço me apresentando. Ela disse:
"Que estranho, eu... Achei que sabia o nome de todos. Você é meu aluno?"
A classe riu. Era ignorado por aquela classe. Simples. Para provocar, ou sei lá, me vestia aos trapos e com cores que não se combinavam, andava descabelado e com barba por fazer. Me evitavam. E eu não fazia a menor questão de ter amigos ou contatos lá dentro. Era dos poucos que não participaram das atividades de boas-vindas aos calouros. E e vestia aos trapos para um protesto solitário contra aquele ambiente que deveria desenvolver o pensamento e as relações com o mundo
"Classe, não ria. Desculpa, rapaz, mas bem... O senhor não participou das aulas. Reparei que... Vocês sabem, a participação é importante."
"Tudo bem."
"Eu devia ter reparado antes. Luiz... Desculpa. E agora? O senhor não tem avaliação, corre o risco de perder o semestre."
"Tudo bem."
"Como, tudo bem? O senhor estará reprovado."
"Tudo bem", devolvi, sincero.
"É o sujeito do 'tudo bem'."
A classe, macaca, riu.
"A senhora não precisa me humilhar na frente dos outros."
Ficou séria. A classe a imitou.
"Não leve para o pessoal, estamos numa relação de troca, é importante o aluno se habituar com as relações de trabalho, esperam de vocês no mercado a atuação constante e a participação, uma voz nas decisões. Foi-se o tempo em que as empresas contratavam burocratas. Elas querem, agora, opiniões criativas de todos."
"Desculpe, mas levei para o pessoal. A senhora traz a bagagem de seus conflitos pessoais para a aula. Sua vida, como a de todos, é pautada por eles. Ou a senhora acorda de manhã e só pensa nos pensamentos econômicos?"
"Então, vamos ouvi-lo. É a sua chance de obter alguns pontos na avaliação, é..."
"...Luiz. Este é o problema de sua aula. Meus colegas não falam porque estão realmente interessados no debate ou curiosos. Falam para obter uma nota boa, passar de ano."
A classe protestou. Quem é este cara?! Cale a boca, bicho! Clara esperou a balbúrdia diminuir e me disse:
"O senhor tem o direito de falar. Vamos, não o escutei durante o curso."
"É para ser sincero ou para agradá-la e obter pontos?"
"Isto é com o senhor, fique à vontade."
Fiquei alguns instantes em silêncio.
"Ser sincero é difícil?", perguntou.
"Olho para você, desculpe, para a senhora e pergunto: ela é sábia, culta, prevenida, ela também é vaidosa, veste-se bem, está de preto, sempre de preto, cor triste, porque o preto absorve todas as luzes e não as reflete, guarda para si. Por que a senhora não quer refletir luz?"
Um silêncio absoluto caiu. Ninguém respirou. Respondeu:
"É irrelevante. Existem a ciência, as forças que controlam o mundo, o poder, e os sujeitos desta ordem não são ligados à decisão de um indivíduo somente, mas a uma ideologia , a um grupo, a uma ideia, um pensamento."
"Quer dizer que o fato de a senhora não emanar cores não interfere no rumo de sua vida, de suas decisões, e suas decisões não têm a menor importância num mundo organizado pelas ideias?"
"Minha intimidade não lhe interessa."
"Que pena."
"Por quê?"
"Está interessada na minha opinião. Está vendo? Isto é legítimo. Mas a autoridade pesou. É assim a nossa relação. A senhora manda, eu obedeço. A senhora não revela o seu íntimo, mas eu, sim, devo responder por quê."
"Nosso trabalho é entender os pensamentos econômicos. As desavenças sociais, os conflitos de interesses, as desigualdades e a intolerância são marcas de grupos que lutam por sua identidade."
"Para a senhora, a luz das cores é sectária?"
"Que saco!", ela disparou, surpreendentemente.
Bufou e olhou o relógio. Tudo bem, eu nem estava defendendo uma ideia, apenas provocava. Escutavam-se os ponteiros do relógio girando. Tudo bem. Me levantei e disse:
"Me desculpe."
Peguei minhas coisas e, antes de sair, mandei:
"Pelo menos, a senhora agora sabe o meu nome."
[...]
Crusp, uma festa sem fim, mas eu passava a maior parte do tempo lendo e estudando no quarto. Era a primeira vez que eu tinha o meu canto. Queria ficar nele até esgotar o silêncio e a privacidade. Lia de tudo, o tempo todo. Nada dos livros indicados pelo departamento. Lia romances. E se caía na minha mão uma teoria, eu lia como se fosse um romance. Isso durou meses. Às vezes, lia dois livros ao mesmo tempo. Às vezes, três. As bibliotecas da USP e o Crusp eram a horta da minha melancolia. Não precisa se encantar por isso. Nem me elogiar. Quem lê assim, trancado num quarto imundo, é porque está deprimido. E foi nele que escrevi a carta:
"Querida professora Clara Braga. Espero que goste deste livro. Bem, a senhora já deve ter lido Hamlet. Esta é uma boa tradução. Desculpe as bobagens que falei na sua última aula. Serei reprovado. Paciência. Mas deixo aqui minhas dúvidas. Roma teria deixado de escravizar o Egito se seu imperador não sentisse uma irresistível atração e fascínio pela rainha do inimigo? Estranho. Roma escravizou todo o Mediterrâneo, mas não o reino de Cleópatra. Poder e afeto não estão ligados? Há várias maneiras de ler a História. Gosto da maneira shakespeariana: as guerras são desencadeadas por amor, ódio, ciúmes. Quando o príncipe da Dinamarca pergunta 'ser ou não ser', ela não está pensando apenas no trono que foi usurpado ou como ser por direito o herdeiro, mas ter poderes para exercê-lo. Acredito que esta pergunta se refere a algo mais amplo. Estar ou não estar vivo? Sonhar ou se acomodar? Ir ou ficar? Agir ou se retrair? Lutar ou ceder? Dilemas do dia-a-dia. Existe ciência nos pensamentos econômicos. Mas deve haver poesia na ciência. E o imponderável também faz a História. Não me sinto ambientado em suas aulas. Nem em seu departamento. A senhora me fez um grande bem. Vou largar esta faculdade e partir pra outra. Vou sonhar, ir, agir, lutar. Vou ser. Muito obrigado.
Luiz"
Deixei a carta com uma cópia de Hamlet em seu escaninho. Hamlet, que patético... Fui à Reitoria pedir transferência para outro departamento, o de História. Foi-me dito que eu teria de esperar, continuar a frequentar as aulas da Economia e ter boas notas. Só no final do ano eu seria transferido ou não. Mas não poderia abandonar a universidade, deveria ter presença nas aulas, nem ser reprovado. Tudo bem. Ficar, acomodar-se, retrair-se, ceder temporariamente. Não ser. Poderia adiantar algumas matérias que também faziam parte do currículo da História. Clássicos do Pensamento Econômico.
Hamlet? É, esta é a cultura de um sujeito metido a culto de 18 anos. Lia os clássicos apenas. E me sentia o sujeito mais erudito da Terra. Sem sequência, comparações. Eu lia os latino-americanos. E dois Dostoiévski, dois Kafka, dois Camus (estes caras estavam na moda), três Shakespeare, três Machado, um Flaubert, um Thomas Mann, Divina Comédia, Fausto, O vermelho e o Negro, Guerra e paz, alguns Balzac, Virginia Woolf e Clarice Lispector, li Walter Benjamin, Borges, Grande sertão:veredas, Os sertões (pulando a primeira parte). Macunaíma. Oswald e Lima Barreto eu tinha lido no colégio. Nelson Rodrigues li, com prefácio de Sábato Magaldi. Antonio Candido. Li os beats. Descobri Fitzgerald, mas me apaixonei por Hemingway. Li Racine. Meu avô não lia muito, mas gostava de comprar livros bonitos. Roubei alguns deles. Ele tinha aquela coleção Prêmio Nobel, exemplares de ganhadores do Nobel, li todos, na sequência. Minha erudição era profunda como uma frigideira, era sem método, era aparente. Citar Hamlet. Que vergonha...
Sim, fui à próxima aula de Clara Braga, a estrela do pensamento econômico. Sentei na primeira fila. Entrou solenemente, como sempre, ser superior, segura, vaidosa. Estava de preto. Mas com um lenço vermelho grande no pescoço. Deu sua aula como sempre, falando por 30 minutos e, depois, abrindo para a classe. Me ignorou. Completamente. Como sempre. Seus alunos favoritos continuaram a tagarelar. Estava tudo como sempre. Mas, ao final, ela não saiu apressada, como sempre. Sentada, observando os alunos saírem. Alguns traçaram ainda as últimas considerações. Demorei a sair. Conversa com dois alunos, quando passei bem perto de sua mesa. Nem me viu. Tudo bem.
Eu estava no corredor e escutei atrás de mim os inconfundíveis passos de Clara Braga, salto alto, apressada, dividir com outros suas conclusões sobre tantos pensamentos. Econômicos. Retardei minha caminhada para ficarmos lado a lado. Então, escutei:
"Achei que tinha desistido do curso."
"É, desisti."
"E vai fazer o quê?"
"Está curiosa?"
"Claro. Fui responsabilizada por tirar um economista do mercado."
"O mercado... É assim que vocês nos vêem, mais um para o mercado?"
"Você entendeu o que eu quis dizer. E se faz de vítima. Está tentando conflitar com o mundo?"
Diziam o mesmo de Hamlet. Até descobrirem que ele tinha a verdade nas mãos."
"O que causou uma grande desgraça ao seu reino. Qual verdade você quer revelar?"
"Você pinta as unhas do pé?"
Não respondeu. Caminhamos, mudos. Fora do prédio, virou à direita. Fiquei parado, observando se afastar."
Marcelo Rubens Paiva. Malu de bicicleta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. pp. 52-60.
Nenhum comentário:
Postar um comentário