sábado, 27 de agosto de 2016

Da atenção necessária às nossas ricas qualidades

                Iniciei, há poucos dias, a leitura do Doutor Fausto (1947) de Thomas Mann. O romance é um relato biográfico da vida de um fictício compositor de música clássica, chamado Adrian Leverkühn; feito pelo suposto amigo de infância de Adrian, Serenus Zeitblom. A estória de Mann faz uma recuperação da famosa lenda de Fausto - i.e. do pacto com o diabo - para tratar da história do talentoso músico que se envolve em um negócio faustiano para atingir o gênio criativo. 
           Entre uma série de curiosas referências iniciais, que a mim já vêm funcionando como prelúdios à história do artista que virá a travar um pacto faustiano - algumas delas: os inúmeros e curiosos diálogos entre Adrian e narrador sobre, por exemplo, a vida de compositores como Beethoven, sobre o conceito de "gênio" e sobre uma suposta natureza dupla de que a música seria dotada (caracterizada por um lado espiritual, e por um outro, demoníaco) - lê-se uma excelente admoestação que um dos professores de Adrian lhe faz no momento de sua despedida da escola para ingresso em uma faculdade. 
             O cumprimento final do professor ao aluno em despedida intenciona advertir Adrian sobre os perigos que os talentos natos podem oferecer. A elocução do dr. Stoientin, a despeito de sua evidente subserviência a uma concepção religiosa, é uma verdadeira e pertinente reflexão sobre a inclinação à soberba e à assunção de uma postura de autossuficiência, as quais todos os homens estão sujeitos a se curvarem e perderem sua humanidade, no momento em que descobrem em si alguma qualidade pessoal nata.
            Uma das qualidades do discurso do professor está em o dr. Stoientin se dirigir a Adrian tomando-o por um homem - "um homem ricamente dotado" , e, em nenhum momento, tomando-o por um "talento". O professor lembra-o de que as suas ricas qualidades, ainda que ricas, não o fazem algo além de um homem - simplesmente o fazem (novamente:) "um homem ricamente dotado". A sua intenção é principalmente advertir Adrian a não render-se à soberba e esquecer a humildade, e, assim, entregar-se às forças contrárias à humanidade do homem.
            O leitor mais detalhista, a essa altura da narrativa, no entanto, já terá percebido que Adrian, antes uma figura séria e introspectiva, ora já encontra-se bastante mudado, ri-se e debocha de muitas coisas, está com ares de grandiosidade e perdeu muito de sua humildade. O que virá a se dar com Adrian a seguir, um pouco, nós leitores já conseguimos suspeitar... 
              Ainda assim, será como é que Mann o descreverá? 
           A honesta e importante advertência do dr. Stoientin é a seguinte - acompanhada de uma (muito curiosa) reflexão sobre méritos natos, a partir da comparação das diferentes concepções sobre o assunto de Goethe e Schiller:

"[...] despedira-se de seus professores, agradecendo-lhes todo o apoio que deles recebera. É bem verdade que o respeito que tributavam à faculdade por ele escolhida reprimia neles os secretos melindres que a desdenhosa facilidade de Adrian sempre lhes causara. O digno diretor da douta Escola dos Irmãos da Vida Comum, o dr. Stoientin, um pomerano que fora seu professor de grego, médio alto-alemão e hebraico, não omitia, contudo, algumas admoestações nesse sentido, por ocasião da audiência particular que lhe concedia na hora de despedida.
                 - Vale! - disse. - Que Deus o acompanhe, Leverkühn! Essa bênção vem do fundo do meu coração, e sinto que você poderá necessitar dela, seja qual for a sua opinião sobre isso. Você é um homem ricamente dotado e o sabe muito bem. Como poderia ignorá-lo?! Sabe também que Aquele que trona lá nas alturas e do qual tudo provém lhe confiou esses dons já que você os deseja oferendar a Ele. Você tem razão: méritos naturais não são nossos próprios méritos, e sim os que Deus obteve em prol de nós. Quem tenta conseguir que nós nos esqueçamos disso é Seu adversário, ele mesmo caiu devido à sua soberba. É um hóspede maligno, um rugiente leão, que anda procurando a quem possa devorar. Você faz parte daqueles que têm muitos motivos para acautelar-se contra seus ardis. É um cumprimento que lhe faço, a saber, àquilo que você é pela graça de Deus. Seja-o com humildade, meu amigo, e não com renitência ou jactância. Lembre-se sempre de que a autossuficiência equivale à apostasia e à ingratidão para com o Doador de todos os talentos.
              Assim falou o honesto pedagogo, sob cuja égide eu mais tarde ainda exerceria o magistério no ginásio. Sorrindo, Adrian me comunicou o conteúdo da advertência, por ocasião de um dos numerosos passeios pelos campos e bosques da granja de Buchel que dávamos na época daquela Páscoa. [...] Bem me recordo dessa conversa que então travávamos a respeito das admoestações de Stoientin, e em especial sobre a locução "méritos naturais", da qual o diretor se servira no seu discurso de adeus. Adrian me demonstrou que ela fora tirada de Goethe, que gostava de usá-la e frequentemente falava também de "méritos inatos", privando, por tal associação paradoxal, o termo "méritos" de seu caráter ético, e, pelo contrário, elevando o dom natural, inato, à altura de um mérito aristocrático, desligado de qualquer moral. Por isso, Goethe se opôs ao postulado da modéstia, declarando que "somente os vagabundos são modestos". O diretor Stoientin, porém, empregara as palavras goethianas no espírito de Schiller, que se preocupava, antes de mais nada, com a liberdade, e por isso estabelecia uma diferença moral entre o talento e o mérito pessoal, distanciando mui nitidamente o mérito da boa sorte, ao passo que Goethe os considerava inseparavelmente entrelaçados. E o diretor fazia o mesmo, chamando a natureza de Deus e qualificando os talentos inatos de méritos de Deus em prol de nós, que deveríamos aceitar com humildade."

MANN, Thomas, Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Trad. Herbert Caro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015,  pp. 100-101.   

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