sábado, 26 de setembro de 2015

Sobre duas artes da vida civil

               Uma tem presença ilustre na vida civil; para os cidadãos em sociedade, entender como conduzi-la se transforma em se dotar de uma virtude social. Já a outra, de início uma condição de desprestígio na vida civil apenas de alguns, os submissos, passou a modelo de comportamento das relações públicas no geral; um vício dos cidadãos em sua maioria. Assim Alcir Pécora alude à arte de conversar e à arte de ser obnóxio, respectivamente, em dois textos esmerados, para sua coluna na Revista Cult
            Alcir Pécora é professor do Departamento de Teoria e História Literária da Unicamp e também colunista da Folha e da Revista Cult. Publicou em 2014, neste último periódico referido, os textos: "A arte de conversar" e "Da arte de ser obnóxio". Com questões interessantes, esses dois textos de Alcir expõem detalhadamente certos aspectos da vida social que guardam tópicos relevantes para as reflexões do homem civil moderno sobre sua conduta em público. 
             No primeiro texto, a "A arte de conversar", Alcir apresenta-nos a dois nomes pouco conhecidos, dos círculos parisiense da época de Luís XIV, que foram importantes para definir a ideia de que a conversação é parte determinante da vida civil. São eles: Antoine Gombaud, Chevalier de Méré (1607-1684), com De la conversation, de 1677, e Madeleine de Scudéry (1607-1701), com as séries Conversations, escritas entre 1680 e 1688. Deles, nos fornece algumas das passagens principais de suas ideologias sobre em que consistiria a conversação ideal. 
           Do primeiro, por exemplo, aludirá à ideia de que uma "boa conversa supõe elocução fluente, sem grande ornamentação; supõe também simplicidade, que apenas existe no ar nobre e natural, oposto ao excesso de estudo, e ainda conformidade, isto é, uma acomodação do discurso às pessoas que se deseja conquistar. Convém sempre um humor afável e complacente com os amigos, além de um emprego comedido de provérbios, equívocos e agudezas, pois perdem a graça quando repetidos ou traduzidos para estrangeiros e visitantes. Gombaud aconselha adotar um ritmo de “pressa lenta” na conversa, que nunca demonstre afã de impressionar; com esse mesmo propósito, também cabe evitar o tom sentencioso, de gosto vulgar. Realça ainda o papel da desenvoltura, para que não pareça que apenas se consegue falar bem mediante muito esforço, e a importância de evitar o didatismo livresco nas conversas." 
              De Madeleine de Scudéry lembrará as afirmações de que "a utilidade e o prazer da conversação residem no estabelecimento de laços entre os homens. A isso se opõem vários maus hábitos correntes, como conversar sobre cuidados domésticos, sobre criados ou filhos, e ainda mais sobre roupas e o quanto elas custaram. Tampouco julga adequado falar cifradamente de intrigas; discutir genealogia e bens de família; falar da própria profissão, que em geral é maçante e só interessa aos que fazem o mesmo; e, de modo geral, entrar em assuntos graves, nos quais não cabe jovialidade." 
                    A versão, na íntegra, de "A arte de conversar" pode ser acessada aqui.
                   Já no que concerne a "Da arte de ser obnóxio", partindo da menção à aula inaugural do prestigiado historiador inglês Quentin Skinner, em Cambridge, em 1997, Alcir Pécora expõe as ideias de dois autores ingleses do século 17, Marchamont Nedham e Algernon Sidney, que, inspirados pela leitura de pensadores romanos, como Salústio, Tito Lívio, Sêneca, Tácito etc., defendiam a ideia de que só era possível ser livre num Estado livre. E, a partir da exposição das ideias desses autores, que apelida "neorromanos", dada sua influência, Alcir traça uma linhagem que mostra a alteração do sentido do termo de origem romana, "obnóxio", de “àqueles mais propensos à escravidão", "submissos", para “a conduta servil que se espera daqueles que vivem sob o domínio de príncipes e oligarquias governantes”, conforme foram se alterando os interesses e o poder do Estado, e, com eles, a noção de liberdade; a chegar a nossos dias, nos quais, depois de se ter ficado postulado "que a liberdade só é ameaçada em situações de coerção aberta ou de confinamento físico", o termo passou de sentido a modelo comportamental:  “ 'obnóxio' se tornou o modelo global de comportamento individual – o que vale para a vida civil, e, como não poderia deixar de ser, também para a vida cultural."  
            Em certo excerto, Alcir Pécora esclarece: "os neorromanos repudiam o pressuposto do liberalismo clássico de que a força é a única forma de interferência na liberdade individual, pois, para eles, a condição de dependência é “fonte” e “forma” de constrangimento constante. “Ser escravo” não é apenas trabalhar sem direito a pagamento ou sofrer coerção brutal, mas estar em dependência da vontade de outro. Viver em condição de dependência já implica em limitação drástica do que cada um pode dizer ou fazer. Quando tal condição se instala na sociedade civil, a principal “arte” de um cidadão passa a ser, como diz Sidney, “tornar-se subserviente e “submisso”. Citando Tácito, afirma que, em tal regime, todas as “preferências” são dadas “àqueles mais propensos à escravidão”, o que faz com que os adeptos do poder absoluto sejam basicamente gente de caráter “obnóxio”. Na Roma antiga, o termo latino obnoxius era usado para referir os que viviam a mercê de outros, os “subjugados”, ou, enfim, “os que não tinham vontade própria”. [...] "Relido pelos neorromanos ingleses, o termo passa a descrever “a conduta servil que se espera daqueles que vivem sob o domínio de príncipes e oligarquias governantes”. Ou seja, diz respeito não apenas à fraqueza do caráter privado, mas à combinação desta com a expectativa estrutural gerada por um Estado que fomenta e produz a condição de dependência de seus cidadãos em relação a ele. Neste raciocínio, bajuladores e gente servil não são mera contingência da vida dos Estados autoritários; ao contrário, são o modelo de cidadão sonhado por sociedades que não identificam a liberdade do Estado ou a comunidade livre com o autogoverno de cidadãos."
              A versão, na íntegra, de "Da arte de ser obnóxio" pode ser acessada aqui.
              Em síntese, dos dois textos com temáticas interessantes, "A arte de conversar" e "Da arte de ser obnóxio", parece sobressair em comum uma série de comportamentos a se evitar em público - pelo menos até onde é dado ao indivíduo o direito de escolha, se, de um lado não é solapado pelas contingências impremeditadas de uma conversa, ou se, de outro, não é solapado pela atitude obnóxia.

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