quinta-feira, 5 de março de 2015

A "Pietá" de Milton Nascimento

 



        Ah, caro Milton, que enorme recompensa tive adiando tanto o momento de conhecer inteiramente ao lindo, lírico e monumental Pietá (2002, Warner). O disco não tem título mais apropriado à qualidade de êxtase de todas as canções e parcerias; existe, de fato, uma aura de graça nesse trabalho, na sua suave voz combinada às belas e doces vozes femininas de suas convidadas! Desde já, fique sabendo que esta obra tornou-se para mim um referência notável do seu trabalho. Pietá é graça, é pureza e encanto.

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         Pietá de Milton Nascimento foi o primeiro trabalho solo e inédito do cantor desde 1997, resgatando em muito o espírito das músicas da sua época de Clube da Esquina, sua natural afinidade com sonoridades como o pop e o jazz; é "um disco clássico, do bom e velho Bituca", como diria os produtores da Warner Music Brasil. O disco conta com 16 faixas e traz a participação de três cantoras que, segundo expressão de Milton, o deixam maluco; são elas: Marina Machado, Maria Rita (filha de Elis Regina) e Simone Guimarães. 
              Marina Machado divide com ele as faixas "Casa Aberta" e "Imagem e Semelhança". Simone canta com ele "Beleza e Canção" e "Boa Noite"; já Maria Rita fica com "Voa Bicho" e "Tristesse". Pietá também conta com um maravilhoso arranjo de cordas criado pelo maestro Eumir Deodato. Os arranjos de cordas combinados às vozes doces e femininas das jovens convidadas, e também à suavidade da voz do próprio Milton, imprimem uma aura de alegria doce e melancolia sutil ao disco. É uma verdadeira arte da poesia musical. A juventude, a feminilidade e os novos arranjos para os clássicos de Milton produzem um resultado sofisticado, delicado, lírico e belíssimo. 
              Outrora, Milton, muito ternamente, assim se expressou sobre o CD: “Eu que nasci no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, fui levado de volta à Minas, terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um garoto de pouco mais de um ano e fui recebido com muito carinho pela minha família, mas alguma coisa dentro de mim havia se partido, e sangrava. Pietá, pra mim, é a minha mãe de criação Lília que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio me socorrer. Me trouxe de volta ao Rio e daqui para Três Pontas. Foi ela quem cuidou de mim e continuou a cuidar por toda a vida, junto com meu pai Josino. Além de muito amor, dos dois eu recebi todas as forças de que precisei. Foi dela a primeira voz feminina que eu me lembro ter ouvido. Ela que já havia cantado no Rio em um coral regido por Villa-Lobos, cantava pra mim e com o tempo eu passei a acompanhá-la, com minha sanfoninha. Foi através dela que eu conheci no rádio Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Billie Holliday, Yma Sumac, Doris Day, Julie London e principalmente Ângela Maria, minha querida Sapoti. Esse disco é um beijo em todas essas cantoras, que me ensinaram a cantar e principalmente à Lília, minha mãe, a quem eu devo tudo que sou e para quem dedico esse trabalho.Como não podia deixar de ser."  
                A fala de Milton deixa em evidência a influência, ou mesmo, a educação da figura materna e feminina para o CD.  A ousada Rita Lee, em um depoimento sobre o disco, também destaca esse aspecto do feminino no disco e descreve em tons de muito encanto e mirabilia a experiência sonora de Pietá. Com seu jeito de combinar poesia, ironia, piada e mistério, Rita Lee assim depôs: "As minas de Milton. As minas amam Milton... minas de ouro, minas da esquina, minas voadoras não identificadas, minas gerais. Milton sempre amou as minas também. Certa vez uma mina baixinha, que cantava como ninguém, afirmou que se Deus tivesse voz certamente seria a voz de Milton. Pietá foi criada em homenagem às deusas que o ensinaram a cantar como Deus. É uma oração ao Espírito Feminino da Terra na voz feminina do cantor. A cena de um ritual de iniciação vem à cabeça: o menino solitário se embriaga nas belas canções que feiticeiras entoam enquanto o Universo dança nas noites de lua cheia ao redor de um caldeirão fumegante de sol. Induzido por tão generosas musas o pequeno aprendiz visualiza uma casa aberta onde entra sem qualquer medo. O cenário é só de beleza e canção. Há um caminho que se transmuta num mar de rosas tão logo o menino se deixa hipnotizar pelo canto das três encantadoras sereias: Marina, Simone e Maria Rita. É na companhia delas e de talentosas criaturas musicais que ele agora desvenda o mundo dos mortais transformando à sua imagem e semelhança o que há de mais puro na lágrima e no rio. Bonjour tristesse e boa noite. Às vezes Deus exagera, ou quem sabe isso quer dizer amor em outro lugar. Eis que contemplando um beira-mar novo o menino enfim escuta das vozes do vento o segredo da Vida. Pietá é uma viagem musical lisérgica cujo efeito colateral provoca uma metanóia existencial nunca d'antes navegada. Cantar o corpo da mulher o homem comum o faz, cantar a alma feminina só Deus é capaz. Que a Grande Mãe de todas minas cheias de graça do Universo abençoe Milton pelo século dos séculos, amém."  
                Diante de tanto encanto, consistiu uma tarefa difícil selecionar uma música para representar um convite ao disco. Mas como uma fã confessa de Led Zeppelin, das vozes femininas doces e também de combinações musicais inusitadas, eu resolvi escolher uma canção não do CD - o qual preferi deixar em sua totalidade -, mas da maravilhosa turnê homônima realizada por Milton; uma canção em que ele canta com Marina Machado "Going to California" do Led Zeppelin, combinando à clássica canção de rock, um poema hebreu do século XVII, "In Nin Alu" e também a canção "Pablo", uma composição de Milton com parceria de Ronaldo Bastos para homenagear o seu filho. A meu ver, essa canção resultou uma obra-prima, e ela sintetiza muito bem muitas das qualidades e características do trabalho de Pietá expostos na apresentação do disco feita acima: entre tantas coisas, é  possível abarcar através dessa canção, um pouco da parceria de muita sintonia de Milton e Marina, bem como notar a qualidade e gênero dos arranjos e combinações inéditas inauguradas no disco. 
             Fiquem então ao som de "Going to California" nas vozes de Milton e Marina, e, em seguida, com todo o disco Pietá. Por último, em glorioso adendo, deixo o vídeo completo da turnê Pietá. 
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 - "Going to California" (Led Zeppelin), nas vozes de Milton Nascimento e Marina Machado


 



- Álbum Pietá - Milton Nascimento
 




- Turnê Pietá - Milton Nascimento


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