quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"Vindica te tibi!"

                Antes de se tornar uma disciplina universitária, ou mesmo se institucionalizar como área do conhecimento, ganhando divisões e especializações, a filosofia era assumida simplesmente como uma forma de viver, um modo de vida. Ainda pairava em sua prática, e naqueles que a praticavam, um espírito desinteressado, franco e perscrutador da vida e do ser humano. Constituía-se a tarefa principal da atividade filosófica realizar meditações em torno das situações cotidianas e dos sentimentos humanos, com o compromisso exclusivo de conhecer a verdade de cada acontecimento, cada reação ou cada sentimento existente, vivo, pressupondo que, ao tornar compreensível a existência, simultaneamente ela se tornaria mais bem vivida, feliz. Sem estabelecer uma doutrina para viver e ver a vida, e sem a intenção de se tornar uma, a filosofia pretendia-se um exercício, uma atividade, ou mesmo ainda, uma prática pessoal, que cada homem deveria assumir diante das situações e das emoções cotidianas de sua existência. 
               Nesse sentido, a filosofia era assumida como atividade, como exercício particular transformador, primeiro interior, e depois voltado à aplicação no exterior, no real, físico. No geral, era partindo de conversas francas (o famoso "falar aberto") com pessoas com a mesma preocupação, ou mesmo ainda, através da leitura de textos de sábios antigos, que se conseguia estabelecer reflexões sobre a vida e os homens, e então exercitar-se interiormente. Em textos e diálogos com sábios, circulavam um número de princípios de orientação ao ato de viver - pois que já tendo experienciado determinadas situações de vida e determinadas reações emocionais de dada situação, foram capazes de abarcar e formular máximas sobre situações. Todavia, para a autêntica filosofia, simplesmente ler esses princípios ou mesmo debatê-los em conversas ou diálogos, enfim, conhecê-los (ainda que muito profundamente), não se tornava suficiente para alcançar a verdade da vida e então vivê-la bem. Era necessário experimentá-los por si, em exercícios individuais. As orientações de vida comuns ofertadas pelos sábios e os livros, somente teriam valia se realizadas particularmente por cada homem; os princípios pressupunham, sempre, a participação do homem no entendimento e na ação de sua existência. Somente assim haveria um contato efetivo com a verdade; e somente pelo exercício de descobrir a verdade, se alcançaria a melhor forma de viver. 
            A filosofia deixava nítido que recobrava do homem uma prática individual de meditação da vida, de descoberta por si só de suas verdades (aqui, as verdades da vida). E essa cobrança filosófica, ainda exigia do homem que cuidasse para que seus exercícios, ou a sua prática da verdade, fossem feitos diariamente - para não dizer, a todo momento, ou a cada instante de vida. Sem cessar, constante e continuamente, o homem deveria assumir a sua existência, isto é, tomá-la nas mãos e configurá-la ao modo verdadeiro de viver, que não deverá pretender ser outra coisa que, a cada instante, a busca pela verdade: agir corretamente, em conformidade com a realidade (verdade) dos fatos. Uma tal maneira de existência tomava a direção de não largar a vida, dispensá-la ou deixá-la se seguir por si, estabanada, sem compromisso ou responsabilidade com a verdade e o bem viver; já era suficiente a ação do acaso para dispersarmo-nos, que também não procurássemos ser somente conduzidos por ele, que fôssemos também conduzidos por nós mesmos. 
               Os estoicos, grandes cultuadores dessa legítima filosofia que estamos tratando, serão um dos principais preceptores dessa atitude de vida comprometida. Farão, em conversas ou textos, a defesa do desenvolvimento de uma atitude de atenção e não de dispersão para com a existência. Sugerirão, repetidamente, buscar a atenção e não a dispersão, a distração ou mesmo o esquecimento das sua experiências - sejam elas ruins ou boas. Esse era o sentido da afamada  "tensão estoica": estar atento, ou tensionado à vida, era saber o porquê e o como das situações, ponderar melhores formas de agir e comportar-se diante dos outros e das situações; era ter o controle de você mesmo e das situações; viver e não ser vivido, buscar a ciência e a consciência da vida. 
                 Nessa medida, vemos que o homem só é capaz de viver feliz, se reivindicar para si ele mesmo e a sua existência, e só assim o faz, exercitando-se na compreensão da realidade da vida. Desta feita, a recomendação austera de Sêneca, um dos maiores nomes do estoicismo, nas duas primeiras cartas a Lucílio (as quais compõem a obra Epistolae Morales ad Lucilium - Cartas a Lucílio) seria a recomendação primordial e central da nossa existência: Vindica te tibi ("Reivindica-te a ti mesmo").  
              A referência a essa máxima de Sêneca, às suas cartas a Lucílio e a relação dessas duas com a filosofia como atitude de vida, me fazem trazer para recordação as duas primeiras cartas da obra do mestre estoico. Através delas não apenas teremos um nítido exemplo da filosofia como modo de vida, como também, contato com princípios inaugurais da vida feliz. Nelas Sêneca falará de sua máxima citada, e tratará de dois temas caros à existência humana, cada um em uma carta respectivamente: o tempo desperdiçado e a dispersão existencial. 
               A rigor, essas duas tópicas são a mesma coisa, visto que assumindo o sentido estoico dos termos, o tempo desperdiçado não deixa de ser a dispersão existencial: o desperdício do tempo ocorre porque não o tomamos e o empregamos útil e atentamente, dispersos, simplesmente deixamo-lo passar, e com ele, a vida. A perda do tempo em Sêneca está indissociavelmente vinculada à perda da vida, à certa existência que se perde e não volta mais. Ele dirá que o nosso único verdadeiro bem é o tempo, "nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso", por essa razão é razoável que o conformamos às nossas mãos e o empregamos corretamente, sem deixá-lo perdido por negligência, pois se assim vier a ocorrer, nos reduziremos à miséria, não conseguiremos nada, nem saberemos aproveitar o que já temos. É preciso controle e decisão sobre o tempo, a vida. 
            Nesse sentido que também Sêneca passará ao outro tema, ao tema da dispersão. Exortará a Lucílio o foco e a firmeza dos ânimos para não querer mais que aquilo que lhe é suficiente, pois o desejo desmedido e a vontade de estar em muitos lugares, ou possuir muitos saberes, é sinônimo de dispersão, infelicidade e inconstância; não se determina um objetivo certo para a existência e fica-se a perambular, desperdiçando ou usando mal o tempo. É sensato, pois, que se se contente com o necessário e se baste ao suficiente. 
               Se refletimos profundamente: conseguir a obtenção desses dois princípios de Sêneca não nos livraria de boa parte de nossas angústias humanas? 
          Que tal passar para a ruminação (leitura como alimento, exercício) de suas cartas abaixo?
               Bom filosofar!
             


                  LIVRO I
                  (Cartas 1-12)

          1
  
          Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra vai-se sem nos darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente.
          Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado, toda a nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
         Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-te passando.
           Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso. A natureza concedeu-nos a posse desta coisa transitória e evanescente da qual quem quer que seja nos pode expulsar. É tão grande a insensatez dos homens que aceitam prestar contas de tudo quanto - mau grado o seu valor mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente recuperável - lhes é emprestado, mas ninguém se julga na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o único bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir. 
             Talvez te apeteça perguntar como procedo eu, que te dou todos estes preceitos. Dir-te-ei com franqueza: como alguém que vive bem, mas sem esbanjamento. Tenho as minhas contas em dia! Não te posso dizer que nunca perco tempo, mas sei dizer-te quanto, porquê e de que modo o perco. Posso prestar contas da minha pobreza. A mim, porém, sucede-me o mesmo que a muitos que, sem culpa própria, ficaram reduzidos à miséria: todos perdoam, mas ninguém ajuda. 
            Que mais há a dizer? Não considero pobre aquele a quem basta o poucochinho que tem. Prefiro, contudo, que tu preserves os teus bens e que o comeces a fazer quanto antes. Conforme diziam os nossos maiores, "já vem tarde a poupança quando o vinho está no fundo". É que o que fica no fundo, além de ser muito pouco, são apenas as borras!

                                                                                  Adeus.


         2

          Tanto aquilo que me escreves como o que oiço dizer de ti fazem-me ter boas esperanças a teu respeito: não viajas continuamente nem te deixas agitar por constantes deslocações. Um semelhante deambular é indício duma alma doente: eu, de facto, entendo, que o primeiro sinal de um espírito bem formado consiste em ser capaz de para e de coabitar consigo mesmo. Toma, porém, atenção, não vá essa tua leitura de inúmeros autores e de volumes de toda a espécie arrastar algo de indecisão e de instabilidade. Importa que te fixes em determinados pensadores, que te nutras das suas ideias, se na verdade queres que alguma coisa permaneça definitivamente no teu espírito. Estar em todo o lado é o mesmo que não estar em parte alguma! Ora a quem passa a vida em viagens acontece ter muitos conhecimentos fortuitos, mas nenhum amigo verdadeiro; o mesmo sucede logicamente àqueles que não se aplicam intimamente ao estudo de um pensador, mas sim percorrem todos de passagem e a correr. Um alimento que mal é ingerido, imediatamente é "devolvido", não aproveita nem dá força ao corpo; igualmente nada prejudica tanto a saúde como a frequente mudança de medicamentos; uma ferida não cicatriza quando se lhe aplicam tentativamente diversos remédios; uma planta nunca se robustece se continuamente a mudamos de lugar; nada enfim, por muito útil, conserva a utilidade em contínua mudança. Demasiada abundância de livros é fonte de dispersão; assim, como não poderás ler tudo quanto possuis, contenta-te em possuir apenas o que possas ler. Dirás tu: "Mas sinto vontade de folhear ora este livro, ora aquele". Provar muita coisa é sintoma de estômago embotado; quando são muitos e variados os pratos, só fazem mal em vez de alimentar. Lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros, regressa aos primeiros. Reflecte todos os dias em qualquer texto que te auxilie a encarar a indigência, a morte, ou qualquer outra calamidade; quando tiveres percorrido diversos textos, escolhe um passo que alimente a tua meditação durante o dia. É isso o que eu mesmo faço: de muita coisa que li retenho uma certa máxima. A minha máxima de hoje encontrei-a em Epicuro (é um hábito percorrer os acampamentos alheios, não como desertor, mas sim como batedor!). Diz ele: "É um bem desejável conservar a alegria em plena pobreza". E com razão, pois se há alegria não pode haver pobreza: não é pobre quem tem pouco, mas sim quem deseja mais. Que importa o que temos no cofre, ou nos celeiros, quantas cabeças de gado ou quanto capital a juros, se fizermos as contas não ao que possuímos, mas ao que queremos possuir? Queres saber qual a justa medida das riquezas? Primeiro: aquilo que é necessário; segundo: aquilo que é suficiente!

SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Gulbenkian, 1991, pp-1-4.

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