sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A escrita de si

                A propósito do assunto da postagem anterior, inteiro abotoado na expressão exortatória de Sêneca Vindica te tibi -"Reivindica-te a ti mesmo" -, e sobre a relevância do exercício espiritual como forma de viver a vida desvendando-se continuamente a si e o mundo, recupero um excerto de Michel Foucault sobre um dos exercícios que ele julga mais indispensável à vida pessoal ascética: a escrita de si. Junto aos exames de consciência, à abstinência, o silêncio e as meditações, Foucault sugere a escrita de si como mais um exercício pessoal para a prática de vida filosófica. 
                      Passo às suas lúcidas palavras:

             "Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício; não se pode mais aprender a arte de viver, a techné tou biou, sem uma askesis que deve ser compreendida como um treino de si por si mesmo: este era um dos princípios tradicionais aos quais, muito tempo depois, os pitagóricos, os socráticos e os cínicos deram tanta importância. Parece que, entre todas as formas tomadas por esse treino (e que comportava abstinências, memorizações, exames de consciência, meditações, silêncio e escuta do outro), a escrita - o fato de escrever para si e para o outro - tenha desempenhado um papel considerável por muito tempo. Em todo caso, os textos da época imperial que se relacionam com as práticas de si constituem boa parte da escrita. É preciso ler, dizia Sêneca, mas também escrever. E Epicteto, que no entanto só deu um ensino oral, insiste várias vezes sobre o papel da escrita como exercício pessoal: deve-se "meditar" (meletan), escrever (graphein), exercitar-se (gummazein); "que possa a morte me apanhar pensando, escrevendo, lendo". Ou ainda: "Mantenha os pensamentos noite e dia à disposição [prokheiron]; coloque-os por escrito, faça a sua leitura; que eles sejam o objeto de tuas conversações consigo mesmo, com um outro [...] se te ocorrer algum desses acontecimentos chamados indesejáveis, encontrarás imediatamente um alívio no pensamento de que aquilo não é inesperado". Nesses textos de Epicteto, a escrita aparece regularmente associada à meditação, ao exercício do pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, torna presentes um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os, e assim se prepara para encarar o real. Mas também se percebe que a escrita está associada ao exercício de pensamento de duas maneiras diferentes. Uma toma a forma de uma série "linear"; vai de meditação à atividade da escrita e desta ao gummazein, quer dizer, ao adestramento na situação real e à experiência: trabalho de pensamento, trabalho pela escrita, trabalho na realidade. A outra é circular: a meditação precede as notas, que permitem a releitura, que, por sua vez, revigora a meditação. Em todo caso, seja qual for o ciclo de exercício em que ela ocorre, a escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de trinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiéitica: ela é a operadora da transformação da verdade em éthos." 

FOUCAULT, Michel. "A Escrita de Si". In: Ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 146-147. 

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