Acredito que poucas pessoas, poucos casais, receberam como positiva a chegada do estado de certa estagnação quase insossa que os relacionamentos passam a experimentar logo que deixam de se constituir puramente arroubos de paixão. Constatei que muitos acabaram nesse momento, aliás. Julga-se, em muitos casos, que essa calmaria em que o relacionamento se transforma é apenas sinônima do fim da graça da relação ou mesmo do gosto pela pessoa - essa que, não há muito tempo, surgia tão encantadora, cheia de qualidades, querida, disposta, amável -, embora, ela possa ser sinônima de uma experiência maior.
Se o relacionamento se tratar exclusivamente de um relacionamento de paixão, nada além disso, isto é, epidérmico puramente, não conter a amizade e o conforto entre o par, é mesmo uma regra que ele acabe quando as festividades e as euforias da paixão se esvaírem; pois que não sucede aos apaixonados outra coisa que uma lógica perda: a perda do único elemento que constituía sua relação: a paixão.
Todavia, por outro lado, se com a chegada da calmaria, que traz o costume, a rotina e a mesmice para o relacionamento, também vier com ela, o sentimento de repouso, abrigo, estabilidade, em um termo (talvez chulo): porto seguro, àqueles envolvidos, é provável que o amor é descoberto tal qual novidade, no relacionamento, pelos amantes, ou ainda, simplesmente descoberto (é retirada a manta da paixão que o cobria).
Se refletimos com um pouco mais de sinceridade e menos de emoção, entre tantas definições de amor, não poderia se constituir mais uma, ser o amor senão a serenidade, a constância e o conforto das afeições, combinadas a uma calmaria acolhedora? Não poderíamos admitir que é precisamente esse estado que, em muitos casos (quase todos eles), demarca para um relação entre apaixonados, o limite do início do amor, a passagem final do relacionamento de paixão para amor, se esse caminho tomou? Não é o amor também o responsável por comportar a amizade, o cuidado, a proteção e a segurança, sentimentos tão indissociáveis da constância e da rotina, e do que no outro buscamos em necessidade?
Estou cada vez mais convicta de que a realidade do amor, e o amor legítimo, só podem ser reais se sinônimos de repouso, porto seguro; para tanto, é inevitável que o amor seja rotina, repetição, sossego. Arriscaria a dizer ainda que é até necessário que ele não seja mais epidérmico, mas, assumido em outra forma, seja gosto incansável e nunca enjoado da pessoa enquanto ser, da sua irrenovada e habitual companhia.
Quero afirmar, por fim e sobretudo, que acima da sensação da rotina de um relacionamento, pode estar o benfazejo sentimento de abrigo; e se é mesmo ele que sobrevém à calmaria de uma relação, aos amantes - tanto aos novatos quanto aos maduros em relações -, é preciso uma percepção menos apressada e mais paciente do estado rotineiro do relacionamento, a fim de que se desfrute, em justeza ao seu caráter, o sentimento tão calmo, companheiro, igual, do amor. É preciso ainda essa atenção menos passional, para não só se perceber, mas aceitar, que a relação e a pessoa companheira estará, a cada dia passado na relação, mais distante das qualidades arrebatadoras de outrora, incapaz de produzir os mesmos encontros de arroubo de antes, e assumindo uma feição mais comum, diria: de simplesmente pessoa de novo - no entanto, sem perder o que de mais essencial houve nela para você: um particular distintivo das demais.
Instaurada a calmaria e a aceitação do outro, do que nele é de mais essencial (e menos epidérmico), com essa pessoa se verá possível cultivar uma relação íntima e de parceria, mas agora para algo mais substancioso nas relações humanas, a ser descrito como uma relação de companhia na caminhada no mundo, na difícil lida do dia-a-dia. A pessoa se tornará uma parceira de mundo, de existência; e o relacionamento, por isso, se tornará mais superior e nobre, valoroso de questões maiores e mais essenciais (por isso, menos de superfície). Em última instância, esse casal não voltará a ser mais que novamente duas pessoas simplesmente, mas que desfrutam a oportunidade de realizarem juntos a marcha do mundo, e por estarem não somente juntos, mas acompanhados do outro, capazes de realizar com mais leveza e conforto o vagar da vida. De volta à origem de pessoas, poderão ser um casal, e como casal, poderão fazer bom uso da rotina, fazer dela ora repouso, ora abrigo, e sempre, companhia confortável e reconfortante da existência do outro.
***
A ideia de apresentar o comum, ou mesmo, a mesmice dos relacionamentos entre casais como um aspecto positivo, e ainda fazê-lo ser visto como acolhida, foi-me apresentada pelo mais recente texto da psicanalista sulista (de Porto Alegre, RS) Diana Corso, para sua coluna da revista Vida Simples, do próximo mês (outubro: edição 135). Em uma passagem de seu texto, serão palavras de Diana: "A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso".
A sua concepção positiva e também bastante plausível (pelo menos em minha opinião) de um assunto já encarado de jeito banal de forma negativa, me levaram a refletir sobre o tema, e, por fim, me rendeu uma postagem. Em gratidão às ideias de Diano Corso, e também em atitude de querer partilhar um texto interessante com vocês, transcrevo o texto de Diana em minha página, e também deixo o link de acesso a ele (em versão um pouco alterada para a versão online da revista) aqui.
Amor é incompreensão
O que é necessário e importante para se viver uma verdadeira e duradoura história de amor
por Diana Corso
Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos acolhe como o café fumegante depois do almoço.
A duração de um amor não esbarra nisso. É a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: "pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente".
O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão.
Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença. Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade.
O problema é que amor e felicidade sofrem da mesma sina. São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, dispostos a um bom papo. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhecê-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância os protege.
Já a paixão e a euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos a seu lado. São barulhentas e somem sem que se saiba quando foi que a ressaca tomou seu lugar.
Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo dessas últimas. Como num parque de diversões, ficam em longas filas, por meses, anos, na chatice da espera, para viver instantes de vertigem. Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente diário. Um pacote que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.
Todavia, por outro lado, se com a chegada da calmaria, que traz o costume, a rotina e a mesmice para o relacionamento, também vier com ela, o sentimento de repouso, abrigo, estabilidade, em um termo (talvez chulo): porto seguro, àqueles envolvidos, é provável que o amor é descoberto tal qual novidade, no relacionamento, pelos amantes, ou ainda, simplesmente descoberto (é retirada a manta da paixão que o cobria).
Se refletimos com um pouco mais de sinceridade e menos de emoção, entre tantas definições de amor, não poderia se constituir mais uma, ser o amor senão a serenidade, a constância e o conforto das afeições, combinadas a uma calmaria acolhedora? Não poderíamos admitir que é precisamente esse estado que, em muitos casos (quase todos eles), demarca para um relação entre apaixonados, o limite do início do amor, a passagem final do relacionamento de paixão para amor, se esse caminho tomou? Não é o amor também o responsável por comportar a amizade, o cuidado, a proteção e a segurança, sentimentos tão indissociáveis da constância e da rotina, e do que no outro buscamos em necessidade?
Estou cada vez mais convicta de que a realidade do amor, e o amor legítimo, só podem ser reais se sinônimos de repouso, porto seguro; para tanto, é inevitável que o amor seja rotina, repetição, sossego. Arriscaria a dizer ainda que é até necessário que ele não seja mais epidérmico, mas, assumido em outra forma, seja gosto incansável e nunca enjoado da pessoa enquanto ser, da sua irrenovada e habitual companhia.
Quero afirmar, por fim e sobretudo, que acima da sensação da rotina de um relacionamento, pode estar o benfazejo sentimento de abrigo; e se é mesmo ele que sobrevém à calmaria de uma relação, aos amantes - tanto aos novatos quanto aos maduros em relações -, é preciso uma percepção menos apressada e mais paciente do estado rotineiro do relacionamento, a fim de que se desfrute, em justeza ao seu caráter, o sentimento tão calmo, companheiro, igual, do amor. É preciso ainda essa atenção menos passional, para não só se perceber, mas aceitar, que a relação e a pessoa companheira estará, a cada dia passado na relação, mais distante das qualidades arrebatadoras de outrora, incapaz de produzir os mesmos encontros de arroubo de antes, e assumindo uma feição mais comum, diria: de simplesmente pessoa de novo - no entanto, sem perder o que de mais essencial houve nela para você: um particular distintivo das demais.
Instaurada a calmaria e a aceitação do outro, do que nele é de mais essencial (e menos epidérmico), com essa pessoa se verá possível cultivar uma relação íntima e de parceria, mas agora para algo mais substancioso nas relações humanas, a ser descrito como uma relação de companhia na caminhada no mundo, na difícil lida do dia-a-dia. A pessoa se tornará uma parceira de mundo, de existência; e o relacionamento, por isso, se tornará mais superior e nobre, valoroso de questões maiores e mais essenciais (por isso, menos de superfície). Em última instância, esse casal não voltará a ser mais que novamente duas pessoas simplesmente, mas que desfrutam a oportunidade de realizarem juntos a marcha do mundo, e por estarem não somente juntos, mas acompanhados do outro, capazes de realizar com mais leveza e conforto o vagar da vida. De volta à origem de pessoas, poderão ser um casal, e como casal, poderão fazer bom uso da rotina, fazer dela ora repouso, ora abrigo, e sempre, companhia confortável e reconfortante da existência do outro.
***
A ideia de apresentar o comum, ou mesmo, a mesmice dos relacionamentos entre casais como um aspecto positivo, e ainda fazê-lo ser visto como acolhida, foi-me apresentada pelo mais recente texto da psicanalista sulista (de Porto Alegre, RS) Diana Corso, para sua coluna da revista Vida Simples, do próximo mês (outubro: edição 135). Em uma passagem de seu texto, serão palavras de Diana: "A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso".
A sua concepção positiva e também bastante plausível (pelo menos em minha opinião) de um assunto já encarado de jeito banal de forma negativa, me levaram a refletir sobre o tema, e, por fim, me rendeu uma postagem. Em gratidão às ideias de Diano Corso, e também em atitude de querer partilhar um texto interessante com vocês, transcrevo o texto de Diana em minha página, e também deixo o link de acesso a ele (em versão um pouco alterada para a versão online da revista) aqui.
Amor é incompreensão
O que é necessário e importante para se viver uma verdadeira e duradoura história de amor
por Diana Corso
Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos acolhe como o café fumegante depois do almoço.
A duração de um amor não esbarra nisso. É a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: "pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente".
O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão.
Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença. Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade.
O problema é que amor e felicidade sofrem da mesma sina. São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, dispostos a um bom papo. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhecê-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância os protege.
Já a paixão e a euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos a seu lado. São barulhentas e somem sem que se saiba quando foi que a ressaca tomou seu lugar.
Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo dessas últimas. Como num parque de diversões, ficam em longas filas, por meses, anos, na chatice da espera, para viver instantes de vertigem. Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente diário. Um pacote que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário