sábado, 1 de março de 2014

O vermelho e o negro

      O carcereiro trouxe-lhe dois galerianos reincidentes que se preparavam para voltar às galés. Eram celerados alegres e notáveis pela esperteza, coragem e sangue-frio. [...]
     Depois que saíram, Julien não era mais o mesmo homem. Toda a raiva de si mesmo desaparecera. O sofrimento atroz, envenenado pela pusilanimidade da qual era presa desde a partida da sra. Rênal, transformara-se em melancolia. 
     "À medida que fosse me enganando menos com as aparências", pensava, "iria ver que os salões de Paris estão povoados de gente honesta como o meu pai ou de espertos pulhas como esses galerianos. Eles têm razão, nunca os homens dos salões acordam de manhã com essa preocupação pungente: como vou jantar? E se gabam de sua probidade! E, convocados para o júri, condenam altivamente o homem que roubou um talher de prata porque estava desmaiando de fome. 
     "Mas se houver uma corte, se for o caso de ganhar ou de perder um ministério, essa gente honesta dos salões entrega-se a crimes perfeitamente semelhantes àqueles que a necessidade de comer inspirou a esses dois galerianos...
     "Não existe um direito natural: essa expressão não passa de uma tolice antiga bem digna do promotor que me acusou naquele dia, e cujo antepassado foi enriquecido por um confisco de Luís XIV. Só há um direito quando há uma lei que proíba de fazer alguma coisa, sob pena de punição. Antes da lei, só eram naturais a força do leão ou a necessidade da criatura que tem fome, que tem frio, numa palavra, a necessidade... Não, as pessoas honradas não passam de velhacos que tiveram a sorte de não serem apanhados em flagrante delito. O acusador que a sociedade lança sobre mim foi enriquecido por uma infâmia... Atentei contra a vida de alguém e fui justamente condenado, mas, a não ser por essa ação, o Valenod que me condenou é cem vezes mais nocivo à sociedade.
     "Pois bem", continuou Julien, com tristeza mas sem raiva, "apesar de sua avareza, meu pai vale muito mais que todos esses homens! Ele nunca me amou. Acabo de ultrapassar os limites ao desonrá-lo com uma morte infame. Esse medo de ficar sem dinheiro, essa concepção exagerada da maldade humana que chamamos de avareza faz com que ele veja um prodigioso motivo de consolo e de segurança numa quantia de trezentos ou quatrocentos luíses que posso lhe deixar. Um domingo depois do jantar, ele mostrará seu ouro a todos os invejosos de Verrières. A esse preço, dirá o seu olhar, qual dentre vocês não ficaria encantado em ter um filho guilhotinado?" [...]
    "Amei a verdade... Onde ela está? Por toda a parte a hipocrisia, ou pelo menos o charlatanismo, mesmo entre os mais virtuosos, mesmo entre os maiores", e seus lábios assumiram a expressão de desgosto... "Não, o homem não pode confiar no homem.
    "A senhora de ***, fazendo uma coleta para os seus pobres órfãos, dizia-me que um determinado príncipe acabara de dar dez luíses; mentira. Mas o que eu estou dizendo? Napoleão em Santa Helena! Puro charlatanismo, proclamação a favor do rei de Roma.
    "Santo Deus! Se um homem desses, logo quando a desgraça deve chamá-lo severamente ao dever, rebaixa-se ao charlatanismo, o que se pode esperar do resto da espécie?
    "Onde está a verdade? Na religião... Sim", acrescentou ele com o sorriso amargo do mais extremo desprezo, "na boca dos Maslon, dos Frilair, dos Castanède... Talvez no verdadeiro cristianismo, cujos padres não seriam pagos como não o foram os apóstolos? Mas São Paulo foi pago com o prazer de comandar, de falar, de fazer falar de si...
   "Ah, se houvesse uma verdadeira religião... Como sou tolo! Vejo uma catedral gótica, veneráveis vitrais; meu coração fraco imagina o padre desses vitrais... Minha alma o compreenderia, minha alma precisa dele... Só encontro um néscio enfatuado de cabelos sujos...Tirando os enfeites, uma espécie de cavaleiro de Beauvoisis...
    "Mas um padre de verdade, um Massillon, um Fénelon... Massillon consagrou Dubois. As Mémorias de Saint-Simon estragaram Fénelon para mim, mas enfim, um padre de verdade... Então as almas brandas teriam um ponto de reunião no mundo... Não estaríamos mais isolados... Esse bom padre nos falaria de Deus. Mas que Deus? Não aquele da Bíblia, pequeno déspota cruel e cheio de sede de vingança... Mas o Deus de Voltaire, justo, bom, infinito...".
     Ele foi agitado por todas as lembranças desta Bíblia que ele sabia de cor, mas como, logo que reúnem três pessoas, acreditar nesse grande nome de DEUS, depois do horrível abuso que nossos padres fizeram dele?
     "Viver isolado! Que tormento!
    "Estou ficando louco e injusto", pensou Julien, batendo na testa. "Estou isolado aqui nesta cela; mas não vivi isolado na terra; eu tinha a poderosa ideia do dever. O dever me tinha prescrito, certo ou errado... foi como o tronco de uma árvore sólida na qual me apoiava durante a tempestade; eu vacilava, me agitava, afinal, não passava de um homem... Mas não era carregado.
    "É o ar úmido desse calabouço que me faz pensar no isolamento...
    "E por que continuar sendo hipócrita, amaldiçoando a hipocrisia? Não é nem a morte, nem o calabouço, nem o ar úmido [...] A influência de meus contemporâneos supera tudo" disse em voz alta e com um sorriso amargo. "Falando sozinho comigo mesmo, à beira da morte, ainda sou hipócrita... Ó, século XIX!
    "Um caçador dá um tiro numa floresta, sua presa cai, ele se lança para apanhá-la. Pisa, sem querer, num formigueiro de dois pés de altura, destrói a morada das formigas, espalha ao longe as formigas, seus ovos... Nem as mais filosóficas dentre elas jamais entenderão esse corpo negro, imenso, assustador: a bota do caçador que de repente penetrou em sua moradia com uma incrível rapidez, precedida por um batalhão assombroso, acompanhado de fagulhas de fogo avermelhado...
   "Assim também a morte, a eternidade, coisas muito simples para quem tivesse órgãos bastante amplos para concebê-las...
    "Uma efêmera mosca nasce às nove horas da manhã nos longos dias de verão, para morrer às cinco horas da tarde; como poderia compreender a palavra noite? Deem-lhe mais umas cinco horas de existência e ela vê e compreende o que é a noite.
   "Assim também eu, que morrerei aos vinte e três anos. Deem-me mais uns cinco anos de vida, para viver com a senhora de Rênal."
   E pôs-se a rir como Mefistófeles: "Que loucura ficar discutindo esses grandes problemas!"
   "Primeiro, sou hipócrita como se houvesse alguém aqui para me ouvir.
"Segundo, esqueço-me de viver e de amar, quando me restam tão poucos dias para viver..."

STENDHAL. O vermelho e o negro. Trad. Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003, pp. 534-537.

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