segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Schooling the world

      


       Há séculos, as diferentes culturas passam por transformações e se alteram conforme as aspirações de uma época histórica. Em função disso, passa-se a constituir um desafio a continuação da existência das culturas tradicionais. A cada novo sistema de vida adotado pela sociedade, em determinada época histórica, são exigidas das culturas tradicionais encorporações e modificações que ameaçam seu estado de originalidade.

        Cultura é um termo indissociável de Educação. A existência de certa cultura pressupõe a passagem por um processo de educação. Em geral, aculturar significa a doutrinação de uma pessoa para determinada forma de saber, de aprender e ser. Tal processo, em essência e por finalidade, definirá nada menos que a maneira como um indivíduo, e uma coletividade, comportar-se-ão no mundo; como será sua interação com ela mesma, as pessoas e a natureza.

       "A cultura é o cobertor de valores morais e éticos com que o indivíduo é coberto". É ela, segundo essa afirmação, o elemento que formará um indivíduo e o definirá. Seu foco é no indivíduo, na construção de valores e qualidades que o definem. Portanto, a existência de um indivíduo está vinculada à existência da cultura. Ela não apenas dá à luz a ele, como orienta seus passos. A dissolução de uma cultura coincide com a dissolução de individualidades.

        Tal conjunto de valores e compromisso com o indivíduo e a coletividade, que definimos por cultura, atualmente talvez enfrente o seu maior período de extinção. O presente momento histórico, em que o sistema capitalista impera despoticamente em todos os setores sociais, age - como nunca em outra época histórica ocorreu de forma tão incisiva -, no sentido de anular as culturas tradicionais. Para esse sistema de vida, cuja ênfase e o fim de seus meios são apenas a estância econômica, com sua filosofia do curto prazo e do lucro, os costumes locais, as diferentes formas de alimentação, vestimenta e as múltiplas línguas, são uma barreira para o progresso material e a modernização, sendo, portanto, necessária sua eliminação. 

      Não é algo inédito na história, esse movimento que objetiva acabar com a multiplicidade, as diferenças culturais. Damos notícia dele desde a época da formação dos impérios romanos, quando alguns imperadores tomaram medidas para unificar a religião, a língua, a moeda, a lei, o governo e os costumes. Vivemos, quem sabe, a época avançada dessa iniciativas iniciadas milernarmente, e a época que traz uma consequência talvez mais danosa às culturas - ousaria dizer, mais traumática que os genocídios de inúmeros povos, para implantação de um determinado regime político, em épocas passadas. Hoje há uma política de anulação do indivíduo, e a tentativa de torná-lo simplesmente uma peça para alimentar um sistema industrial. A ação começa a partir da unificação de culturas, pela imposição da afamada cultura de massa (urbana e de consumo), produto do sistema capitalista moderno.

       Verifica-se que hoje, o ocidente já compartilha, e dissemina no oriente, um sistema que denominam "monocultura", que não objetiva nada mais que a eliminação das diferentes culturas tradicionais a favor da implantação de uma cultura igualitária, universal, de massa e correspondente aos anseios do mercado. Indispensável lembrar que essa monocultura tem por hino: o consumo, a valorização do sucesso material, e a oneração financeira como a finalidade da vida. O dinheiro é a medida de todas as coisas.

      A monocultura é ensinada e transmitida através do sistema educacional moderno. É ele o responsável pela manutenção e pelo fortalecimento dessa "cultura". Logo, ele tornar-se um aparato com a finalidade de educar pessoas para basicamente alimentar um sistema de consumo: para saberem usar produtos corporativos em uma cultura urbana de consumo, e desempenhar profissões que enriquecem a produção industrial. É hoje já estatisticamente comprovado que o crescimento da educação ocidental coincide com o crescimento da industrialização. E não por outra razão, grandes corporações, como a ONU, o Banco Mundial e ainda o McDonald's financiam o programa, hoje em voga no mundo inteiro, da educação para todos. Homens de negócio estão se preocupando com a educação porque descobriram que eles não conseguiam desenvolver suas indústrias porque havia escassez de mão-de-obra qualificada, isto é, educada para desempenhar determinada função em uma empresa. Logo, tornou-se patente não só investimento em educação, mas a propaganda incisiva para ela.

      Mais desolador do que saber que nossas escolas nos educam, ou educarão as futuras crianças, para uma cultura de massa, tecnicista; mais preocupante do que saber que daqui a pouco tempo (se é que já não agora) conviveremos quase exclusivamente com pessoas-autômatas, que apenas sabem desempenhar funções em um mundo mercadológico, isto é, apenas sabem ser consumidores, ou profissionais técnicos, desconhecem o que é ser pessoa e vivem angustiadas por isso, sem o saber que é por essa razão, é ter que imaginar o fim de um enorme patrimônio cultural que começa e reside na sabedoria das pessoas mais antigas, passa pelas inúmeras obras artísticas particulares a cada povo, e por fim, termina na constituição da individualidade. 

      Se esse atual sistema econômico (e educacional) não está recompensando as pessoas parte dele, no plano material - ao contrário do que promete todos os dias seus slogans de erradicação da pobreza, de maior distribuição de renda e possibilidade de conforto financeiro -, fico a imaginar o tamanho da tristeza e falta de recompensação que os indivíduos sentirão no plano pessoal - o vazio existencial acompanhado das angústias injustificáveis. 

     Talvez ao se descobrir, ou mesmo cansar da falta de eficácia desse sistema monocultural, a escolarização retorne para seu estado original, próximo da cultura, e do que realmente deve ser: focado nos ensinamentos espirituais, morais, primeiro e essencialmente - tal como na comunidade perfeita de Thomas Morus, em Utopia, ou como nas previsões dos discursos de grandes filósofos e políticos mundiais, como Gandhi. Assim, antes de as pessoas aprenderem como desempenhar uma função técnica e profissional no mundo, urdirão primeiro a veste moral que as possibilitará ser preenchida como pessoa e agir no mundo e nas relações pessoais de forma sensata e não tão destruidora de valores, de espaços naturais, em suma, aniquiladora do homem e do mundo. A partir daí se agirá para edificar e avançar humanamente.  

   Todas essas questões discutidas acima foram motivadas, e se encontram melhor desenvolvidas, no ótimo, sério e importante documentário Schooling the world: the white man's last burden (EUA, 2010), dirigido por Carol Black. Filmado no povoado do interior da Índia, Ladakh, o documentário parte do contraste entre a cultura rural, sábia e simples das pessoas do povoado indiano, em contraposição às efervescências de interesses e busca por lucro da capital indiana, urbanizada, e hoje peça importante da economia mundial, por fim trazendo uma discussão geral do tópico, hoje já global, da monocultura.

       Eis o documentário:

 
      

       Mais sobre o documentário em: http://schoolingtheworld.org/

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