quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Para dizer quem sou, me cantarão

      Li recentemente que em alguma remota região da África - mas talvez fosse do Oriente - quando uma criança nasce, os adultos e os sábios da aldeia se reúnem e começam a entoar melopeias e canções numa espécie de transe, desfiando sons conhecidos até chegar a novos sons, até chegar aquela que será a música pessoal e exclusiva do recém-nascido. Burocraticamente, diríamos que para o novo cidadão aquela música passa a ser uma espécie de carteira musical de identidade. Mas é muito mais, é uma impressão digital auditiva, é um reconhecimento interior, é a identidade em si.
    A partir dali, a comunidade canta aquela música à criança em todas as ocasiões importantes da sua vida - os aniversários, os ritos de iniciação, as grandes perdas. E quando, passando progressivamente a adolescente, jovem e adulta, a pessoa se sentir desnorteada, sofrer os males da vida, ou ferir com seu comportamento as leis da comunidade, cantarão para ela sua música, a fim de que, ouvindo-a, se lembre de quem é, se respeite, e recupere seu eixo.
    Será que, ao enamorarem-se, os jovens cantam sua música em voz baixa ao ouvido da amada? Ou correm com isso o risco de engravidá-la?
     Uma música exclusiva cujo único registro está na memória dos que a criaram e dos que a repetem, mas que há de manter-se imutável, sob risco de, alterando-se, alterar a personalidade daquele que define, representa um perigo, e uma fé. Pois os outros, os outros todos são garantes daquela identidade. Se eu me perder, se em algum momento não mais souber quem sou, eles me contarão ou me cantarão.
    A música de cada um não é uma música como todas as músicas, não é música que se dance, ou que se cante quando se está embriagado, não é música para os corpos. Mais do que música, é uma convocação, a convocação do outro. Chegou através de transe coletivo, escolhida e doada por entidades maiores. É a voz do sagrado, testemunho inquestionável de filiação. Porque tenho uma música de fato existo, e pertenço à minha tribo. Minha música é minha proteção, os deuses velam por mim. 
    Na hora de enfrentar a fera ou o inimigo, de desembainhar a espada ou erguer a lança, o herói daquele povo ouve sua música latejando no sangue. E é sua música que a mulher canta em trabalho de parto, embora talvez, em segredo, ao longo dos nove meses, tenha criado uma música outra, que sem ser a sua também não é a que será da criança, uma música que é só dos dois enquanto estão fundidos, uma música cantada para dentro para ajudar a nova vida a acontecer.
    A identidade cantada está ancorada no ar, vai no vento sem sair do lugar. A identidade cantada é mensagem para ouvidos poucos. "Ó, você, que parte nessa caravana, ouça atentamente a minha música, leve-a consigo, e quando chegar ao caravançarai, entregue-a àquele tocador de flauta sentado à sombra do grande portão de entrada, para que ouvindo-a se enamore de mim e venha me buscar."
    O que é feito, entre aquelas gentes, das músicas todas dos mortos? Enterra-se a música com o corpo? Alguém canta à beira da urna antes que seja lacrada? Ou a música de cada um, tantas vezes repetida, continua vagando pelo ar como vagam as almas? Depois de quanto tempo é lícito esquecê-la? Nunca esquecendo-a de todo, porém, para que ao criar uma nova música para uma nova criança não venha a música de um morto misturar-se a ela indevidamente. Cantam à noite, baixinho, lembrando os seus mortos, como outros povos rezam?
     Entre eles, triste há de ser o destino dos desafinados.

COLASANTI. Marina. Os últimos lírios no estojo de seda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2006, pp. 9-11.

4 comentários:

Lívio disse...

Bruna, crônica é poética e brilhante.

O último parágrafo diz respeito a mim, um pobre desafinado...

Bruna Caixeta disse...

Lívio, gosto demais desta crônica e também demais do tema do resgate da identidade momentaneamente perdida e possível de ser recuperada.

A música apresentada como elemento a que se recorrer para refugiar a identidade perdida é uma opção narrativa, no mínimo, poética, lírica e bonita.

Eu também sou do grupo dos desafinados. Mas, certamente, a canção que necessitam entoar não exige grandes prodigalidades vocais não, apenas um cantar capaz de (re)afinar a identidade com seu portador.

Em tempo: conheci esta crônica, o livro que a carrega e Marina Colasanti, outrora com você, quando ao completar os 18 anos de idade, ganhei de ti este livro. Obrigada mais uma vez por ele.

Obrigada pela visita e pelas palavras.

Grande abraço, Lívio.

Lívio disse...

Olá, Bruna. Confesso que eu não me lembrava de ter dado a você este livro. De qualquer modo, fico contente em saber que uma crônica dele veio parar aqui.

Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Lívio,
como presenteada, é normal que lembre mais.

Obrigada.
Grande abraço.