domingo, 9 de dezembro de 2012

A literatura consolatória de Bernardim Ribeiro


Desde que Teixeira Rego publicou seu artigo “Bernardim Ribeiro”, no Diário de Notícias, em 1925 (texto posteriormente compilado no volume Estudos e Controvérsias), apontando a arrojada hipótese de que o autor da Menina e moça era judeu, e “judeu de categoria”, o problema tem se arrastado e angariado as mais diversas opiniões críticas de filólogos e historiadores. [...]

Mesmo que algumas das interpretações judaizantes da obra bernardianina tenham sido vistas como inventivas ou eventualmente restritas à esfera biográfica, conforme têm observado críticos e historiadores, estamos de acordo que exista uma forte, senão dominante, essência judaica nos textos de Bernardim, a julgar pelo espírito sefardita que pairou em textos emblemáticos do renascimento português, e sobre os quais ainda falaremos. [...]
 

A afirmação se baseia em critério histórico, pensando-se na situação de exílio, motivação particularmente judaica. Anne-Marie Quint-Abrial está certa ao dizer que o drama do exílio, e especialmente, o drama da terra prometida, não é preocupação apenas de judeus, e no séc. XVI, isso se torna ainda mais evidente. Mas ao mesmo tempo, é preciso localizar no texto de Bernardim Ribeiro aquilo que essencialmente caracteriza a linguagem sefardita e aquilo que o aproxima dos livros místicos e consolatórios do judaísmo medieval e renascentista. Essa tarefa foi levada a cabo por Helder Macedo, que, apesar de ter rastreado a mística e a consolatória dos livros mais representativos do judaísmo, preferiu atribuir uma feição niilista para a condição dos pastores bernardinianos. Segundo o crítico, a vivência espiritual dos personagens de Bernardim, incluindo-se os pastores das éclogas, revela-se uma experiência de perda, já que a mulher, símbolo metafísico de uma divindade, entra em cena apenas para depois se retirar da trama, e deixar a sensação de um vazio espiritual. Portanto, é a amarga experiência de uma perda, é a compreensão da existência de um bem que se revela e que depois se ausenta, deixando no registro da memória a fatalidade de um encontro revelador. [...]

No presente artigo, de natureza histórica e sociológica, a intenção é identificar nas éclogas de Bernardim Ribeiro, publicadas numa editio princeps de 1554 em Ferrara (junto com a novela Menina e moça), os vestígios de uma literatura não exatamente niilista, mas consolatória, especialmente se aproximarmos o pastoralismo bernardiniano da Consolação às tribulações de Israel, de Samuel Usque, o livro consolatório mais referencial para os portugueses sefarditas do exílio quinhentista.
[...]

O disfarce pastoril, presente nas cinco éclogas de Bernardim, é expresso num enredo simples, apoiado em três ações consecutivas e interligadas: um pastor leva uma vida tranquila até se apaixonar pelos encantos de uma pastora; com a aparição e posterior distanciamento dessa mulher, a vida do pastor passa por uma súbita e estranha mudança, instalando-se uma crise psicológica; por fim, surge um pastor amigo que diz ter passado pela mesma circunstância, e que assim, revela sua experiência para consolar o pastor que está a lamentar seus infortúnios; ao fim desta conversa, o jovem pastorzinho terá refletido sobre a razão existencial de sua desventura. 

O que estará oculto, ou disfarçado, no enredo pastoril bernardiniano é exatamente o sentimento resultado da ausência da figura feminina, bem como a mudança por ela provocada. O corte existencial na vida desses personagens se torna mais dramático, porque a revelação de Deus, pela fulguração da imagem da mulher, mostra-se profundamente niilista, uma vez que essa mesma mulher amada se torna uma espécie de “divindade ausente”, gerando a desesperança fomentada pelo sentimento do “encontrar para perder”, no dizer de Helder Macedo. Curiosamente, o encontro com o mundo metafísico não gera a serenidade, porém a inquietude, situação em que o homem se torna o inimigo dele mesmo, ou alheio a si mesmo; em síntese, o retrato do homem alienado, estranho a sua própria cultura e identidade. A saudade, na obra de Bernardim, a exemplo de outros escritores ibéricos, assume aqui um sentido particular: será a saudade da pátria perdida, mas também a saudade de Deus, que teve como representante material a presença da mulher e a inquietude espiritual que ela desencadeia. O que constitui o sentimento da saudade, quando se pensa nos seus efeitos sensoriais e psicológicos, parece ser também aquilo que o caracteriza na sua vertente metafísica: uma mistura paradoxal de estados de ânimo que oscilam entre a dor e o prazer, como um sentimento de renúncia, que pode despertar a angústia e a dor pela perda, mas também o desejo e a doçura da lembrança.

No caso de Bernardim Ribeiro, conforme ainda discutiremos, a saudade adquire contornos diversos, que vão da esfera romanesca à dimensão metafísica (a saudade de Deus e da espiritualidade perdida), passando pela dimensão cultural (a saudade de uma identidade própria). A visão fulgurante de suas pastoras, mistura de erotismo e êxtase espiritual (lembre-se, por exemplo, a imagem de Joana nas águas do rio, na écloga II), será responsável por lembrar aos pastores a presença de Deus na terra, mas ao mesmo tempo, a amargura da dor amorosa. De qualquer forma, a missão das pastoras será a de revelar a seus amantes a condição de exilados do mundo divino, a partir da percepção de uma realidade de alheamento psicológico e desterro geográfico, conforme se percebe, por exemplo, na fala de Jano, na écloga II:


"De si ela o desterrou,
 
para longe terra estranha, 
seu mal só o acompanhou".

Revelada a condição de “desterro”, que aparecerá tanto numa mudança de terra (“para longe terra estranha”), quanto numa mudança interior (“De si ela o desterrou”), os pastores mudarão também de uma vida pastoril caracterizada pela amenidade para outra vida marcada pelo sofrimento e pelo estranhamento de si (“seu mal só o acompanhou”), sem compreenderem ainda a natureza desse exílio de Deus, o que será evidenciado apenas na parte consolatória de cada uma das éclogas. Mas a presença fugidia da mulher deixa uma certeza aos pastores: a de que a tranquila vida pastoril que levavam é sinônima de “engano”, e a tormentosa vida que depois irrompe é “desengano”, portanto uma existência que, a despeito da inquietude, revela-se o desengano de uma ilusão. [...]

 
Com tudo isso, ainda é difícil compreender quem foi Bernardim Ribeiro. O escasso conjunto de informações de sua biografia nos deixa a consciência de que boa parte do que lhe atribuímos é apenas uma possibilidade. Parece certo que suas éclogas muito tinham a dizer para as comunidades de judeus exilados, mas, ao contrário do niilismo proposto por Helder Macedo, é possível entrever nos diálogos entre seus pastores um forte apelo ao consolo, um caminho que assume ares proféticos e messiânicos, ampliando as chances de que aquele volume editado na oficina tipográfica de Abraão Usque em 1554 era também um livro consolatório para os judeus portugueses do exílio. Mesmo que o editor o tenha vinculado a seus interesses de sefardim exilado (quando da edição, Bernardim muito possivelmente já tinha falecido), o certo é que o livro tomou novos rumos, distanciou-se da resistência judaica e tornou-se um dos mais celebrados motivos literários do renascimento. Prova de que a literatura sobreviveu à resistência política. 

NEPOMUCENO, Luís André; CAIXETA, B. P. “Não cuides que minha dor me dá repouso”: as motivações judaicas nas éclogas de Bernardim Ribeiro. In: Cadernos de Estudos Sefarditas, v. 10-11, p. 423-450.

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