sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Coisa Boa

[...] Quem mais me atraía e fascinava era um inquilino chamado Coisa Boa. Ocupava um quarto na parte dos fundos da casa, pegado à cozinha, um cômodo comprido com duas janelas - voltadas para o pátio.
    Era um homem encurvado, magrelo, de cara branca, barba preta bifurcada, olhos bondosos e óculos. Calado, passava despercebido e, quando o chamavam para almoçar, para tomar chá, respondia invariavelmente:
    - Coisa boa.
    A avó, então, passou a chamá-lo assim, em sua presença ou não.
   - Lionka, vá chamar o Coisa Boa para tomar chá! E o senhor, Coisa Boa, por que está comendo tão pouco?
    O quarto dele era atravancado e entupido de caixotes com livros grossos, em caracteres laicos, desconhecidos para mim; havia frascos por todo lado, com líquidos de várias cores, pedaços de cobre e de ferro, e varetas de chumbo. Da manhã até à noite, vestido com uma japona ruiva de couro e uma calça cinzenta xadrez, todo manchado de tintas, com um cheiro desagradável, descabelado e estabanado, ele derretia chumbo, soldava pecinhas de cobre, pesava numa balança pequena, mugia quando queimava os dedos e os soprava às pressas, aproximava-se aos tropeções de uns desenhos na parede e, após esfregar as lentes dos óculos, cheirava os desenhos, quase tocava o papel com o nariz fino, reto e estranhamente branco. Às vezes, parava de repente no meio do quarto, ou junto à janela, e ficava ali por muito tempo, de olhos fechados, a cara levantada, estupefato, mudo.
    Eu subia no telhado do galpão e, por cima do pátio, observava-o através da janela aberta, via a chama azul da lamparina de álcool sobre a mesa e uma figura sombria; via como ele escrevia algo num caderno amarfanhado, seus óculos brilhavam frios e azulados como blocos de gelo; o trabalho de bruxaria daquele homem retinha-me durante horas em cima do telhado, atiçando uma curiosidade torturante.
    De vez em quando, parado na janela, como numa moldura, com as mãos nas costas, ele olhava direto para o telhado, mas parecia não me ver - e isso era muito humilhante. De súbito, afastava-se de um salto rumo à mesa e, muito curvado, revirava o que estava sobre ela.
     [...]
    Em casa, ninguém gostava do Coisa Boa; todos falavam dele com zombaria; a alegre esposa do militar o chamava de "nariz de giz", e o tio Piotr, de boticário e de bruxo, o avô, de praticante de magia negra e de franco-maçom.
    - O que é que ele faz? - perguntei para a avó. Ela retrucou, em tom severo:
    -  Não é da sua conta; fique calado e cuide da sua vida...
    Certa vez, tomando coragem, fui até a janela dele e perguntei, mal conseguindo esconder minha emoção:
    - O que está fazendo?
    Teve um sobressalto, fitou-me demoradamente por cima dos óculos e, após estender para mim a mão com chagas e cicatrizes de queimaduras, falou:
    - Suba...
    O fato de ter sugerido que eu entrasse não pela porta, mas pela janela, elevou-o ainda mais aos meus olhos. Sentou-se num caixote, me instalou na sua frente afastou-me um pouco, me aproximou de novo e, por fim, perguntou em voz baixa:
    - De onde você é?
    Aquilo era esquisito: quatro vezes por dia, eu sentava à mesa da cozinha, bem na frente dele! Respondi:
    - Sou o neto aqui da casa...
    - Aha, sim - respondeu ele enquanto observava os próprios dedos, e em seguida calou-se.
    Achei que era uma oportunidade para explicar:
    - Meu nome não é Kachírin, mas Piechkóv...
    - Piéchkov? - repetiu ele, de forma incorreta. - Coisa boa.
    Afastou-me para um canto, levantou-se e, dirigindo-se para a mesa, falou:
    - Bem, fique sentado e quieto...
    [...]
    - Que cheiro nojento, hein?
    - É.
    - Aí está! Isso é excelente, irmão!
    "Do que ele se orgulha tanto?", me veio à cabeça, e falei, em tom severo:
    - Se é nojento, não é tão bom...
    - Ah, é? - exclamou, piscando os olhos. - Isso, irmão, nem sempre é certo! E você, joga cucarne?
    - Com ossos?
    - É, com ossos.
    - Jogo.
    - Quer que eu molde uma peça para você jogar? Vai ficar boa!
    - Quero.
    - Traga aqui o ossinho que você usa para jogar.
    Veio na minha direção outra vez, com a xícara fumegante na mão, olhando para ele de vez em quando com o canto do olho, chegou perto e falou:
    - Vou fundir uma peça para você jogar cucarne; e você, em troca, não virá mais ao meu quarto, está combinado?
    Isso me ofendeu da maneira mais cruel.
    - Não precisa, não vou vir aqui nunca mais...
    Ofendido, saí para o jardim; lá, o avô estava atarefado, cobria com estrume as raízes das macieiras; era outono, já fazia tempo que as folhas tinham começado a cair.
    - Toma aqui, vá podar as framboesas - ordenou o avô, e me deu a tesoura.
    Perguntei:
    - O que faz o Coisa Boa?
   - Destrói a minha casa - respondeu o avô, irritado. - Queimou o chão, estragou o papel de parede, descascou. Qualquer dia, mando esse sujeito ir embora!
    - É melhor - concordei, e comecei a podar os ramos secos das framboesas.
    Mas falei cedo demais.
   Nas noites chuvosas, se o avô saía de casa, a avó promovia umas reuniões interessantes na cozinha, convidava todos para tomar chá: os carroceiros e o ordenança compareciam. [...]
    Pouco depois de Coisa Boa ter tentado me subornar para que eu não visitasse mais o seu quarto a avó promoveu uma dessas noitadas. Uma chuva de outono caía e choramingava sem cessar, o vento gemia, as árvores farfalhavam, arranhando a parede com os galhos - na cozinha, estava quente, confortável, todos estavam sentados pertos uns dos outros, todos se mostravam particularmente tranquilos e gentis, e a avó contava histórias com uma rara prodigalidade, uma melhor que a outra. [...]
     A avó contou uma história bonita sobre o Guerreiro Ivan e o Eremita Miron; as palavras suculentas, encorpadas, fluíam em cadência:

Era uma vez Gordion, um voievoda (governador militar, na Rússia dos séc. XVI e XVII) malvado,
Alma negra, consciência de pedra;
Epezinhava a justiça, atormentava as pessoas,
Vivia na maldade, feito a coruja no oco de um tronco.
Gordion odiava, mais que todos,
O velho eremita Miron,
Defensor da justiça serena,
Destemido benfeitor do mundo.
O voievoda convocou um fiel servidor,
O valente guerreiro Ivánuchka:
- Vá, Ivanka, e mate o velho,
O caduco e presunçoso Miron!
Vá e corte sua cabeça,
Agarre-a pela barba grisalha 
E traga-me: darei de comida aos cães! -
Ivan partiu, em obediência.
Caminhava e refletia com amargura:
"Não vou por minha vontade, sou obrigado!
Tal sina foi Deus quem me deu."
Mantendo oculta a espada afiada,
Chegou Ivan e curvou-se diante do eremita:
- Estás de perfeita saúde, honrado ancião? 
Tudo bem contigo, velho, com a graça de Deus? -
Perspicaz, este sorriu
E, com lábios sábios, lhe disse:
- Basta de esconder a verdade, Ivánuchka!
Deus Nosso Senhor tudo sabe.
O bem e o mal estão nas mãos dele!
Sei, portanto, para que vieste! - 
Ivanka sentiu vergonha diante do eremita,
Mas obedeceu ao medo que também sentia.
Da bainha de couro, secou a espada,
Limpou o ferro no largo manto.
- Eu queria, Miron, matar-te 
de modo que não visses a espada.
Mas, agora, reza por Deus,
Reza a ele, pela vez derradeira,
Por ti, por mim, por toda a gente,
E depois cortarei a sua cabeça!...-
Pôs-se de joelhos o ancião Miron,
Em silêncio, ao pé de um carvalho jovem,
E o carvalho curvou-se diante dele.
O ancião disse, com um sorriso:
- Ai, Ivan, cuidado, hás de esperar muito!
É longa uma prece por toda a gente!
Melhor seria matar-me de uma vez,
Para que tu não padeças em vão! -
Então, irritado, Ivan franziu a sobrancelha,
E vangloriando-se estupidamente:
- Não, o que está dito, está dito!
Reza quanto queiras, que esperarei um século! -
O eremita rezou até o anoitecer,
Do anoitecer, rezou até a aurora,
Da aurora, foi até à noite,
Do verão, rezou até a primavera.
Rezou o eremita ano após ano,
O carvalho jovem chegou às nuvens,
De seus frutos, nasceu uma densa floresta,
E a prece sagrada nunca terminava!
Assim continuam ambos até hoje:
O ancião reza a Deus em voz baixa,
Pede a Deus que ajude às pessoas,
E à Virgem Santíssima, pede felicidade,
E Ivan, o guerreiro, continua a seu lado,
Sua espada, há muito, desfez-se em pó,
A armadura foi comida pela ferrugem,
As finas roupas viraram poeira.
Inverno e verão, Ivan continua parado e nu,
O calor o resseca - mas ele não seca,
Mosquitos chupam o sangue - mas ainda tem sangue,
Lobos e ursos não o tocam,
O frio e as nevascas não o afetam.
Não tem forças para sair do lugar,
Erguer as mãos ou dizer uma palavra.
Pois, vejam, este é o seu castigo:
Por obedecer à ordem de um malvado,
Por esconder-se atrás da consciência alheia!
E a prece do ancião por nós, pecadores,
Continua a fluir, em paz, na direção de Deus,
Como um rio radiante corre para o mar!

    Desde o início da história da avó, notei que algo inquietava o Coisa Boa: ele mexia as mãos de modo estranho, convulsivo, tirava e colocava os óculos, balançava os óculos no ritmo das palavras cantadas, fazia que sim com a cabeça, esfregava os olhos, apertava-os com força com os dedos e, com movimentos rápidos da palma da mão, não parava de enxugar a testa e as faces, como se transpirasse muito. Quando um dos ouvintes se mexia, tossia ou arrastava os pés, nosso inquilino chiava com severidade:
    - Psss!
    E quando a avó chegou ao fim, ele se ergueu de um salto e, sacudindo os braços, pôs-se a rodar de modo estranho e começou a balbuciar:
    - Sabem de uma coisa? Isso é admirável, tinha de ser escrito, sem falta! É tremendamente autêntico, é nosso...
    [...] O tio Piotr sorria, olhando para ele, todos se mantinham calados, perplexos, mas a avó disse logo:
    - Pois então escreva, não há pecado nisso; ainda sei muitas outras como essa...
    [...]
   - Não se pode viver com a consciência alheia, sim, sim![...]
    Ele passou a noite fora de casa, mas veio no dia seguinte, depois do almoço - quieto, amarrotado, visivelmente constrangido.
    - Ontem fiquei agitado - disse para a avó, em tom de culpa, igual a um menino. - A senhora não se zangou?
    - Ora, por quê?
    - Bem, eu me intrometi, falei demais.
    - O senhor não ofendeu ninguém...
    Senti que a avó tinha medo dele, não olhava no seu rosto e falava de um jeito diferente - baixo demais.
    Ele se aproximou um pouco mais da avó e disse, com uma simplicidade surpreendente:
   - Veja, senhora, eu vivo terrivelmente só, não tenho ninguém! A gente fica mudo, fica mudo e, de repente, a alma ferve, estoura... A gente é capaz de falar até com uma pedra, com uma árvore...
    A avó se afastou um pouco dele.
    - O senhor devia se casar...
    - Ah! - exclamou, com o rosto enrugado, e saiu abanando a mão.
    A avó, de sobrancelha franzida, seguiu-o com os olhos, cheirou rapé e depois me disse, em tom severo:
    - Preste atenção, não fique muito com ele; só Deus sabe que tipo de gente ele é...
    Mas me senti atraído de novo pelo Coisa Boa. [...]
   Fui ao jardim e lá, no fosso, encontrei-o; curvado, as mãos juntas atrás da cabeça, cotovelos apoiados no joelho, ele estava sentado, de maneira desconfortável, na ponta de um tronco queimado; o tronco estava coberto de terra, mas a extremidade, brilhante por causa do carvão, se destacava no ar, acima dos absintos murchos, das urtigas e das bardanas. E a circunstância de estar sentado de maneira desconfortável me predispunha ainda mais em favor daquele homem.
    Por longo tempo, nem se deu conta de mim, olhava para longe sem me ver, com seus olhos cegos de coruja, e depois perguntou de repente, como que aborrecido:
    - Veio atrás de mim?
    - Não.
    - O que veio fazer aqui, então?
    - Nada.
    Tirou os óculos, esfregou com o lenço cheio de manchas vermelhas e pretas, e disse:
    - Sente... Vamos ficar sentados, sem falar, combinado? Isto é o mais... Você é teimoso?
    - Sou.
    - Coisa boa!
    Ficamos um bom tempo calados. O anoitecer era tranquilo, doce, uma dessas tardes tristonhas do início do outono quando tudo em redor é tão colorido e se desbota, empobrece, de forma muito visível, a cada hora que passa, enquanto a terra já exauriu todos os seus pródigos aromas de verão e sente-se apenas o cheiro da umidade fria, o ar se mostra estranhamente translúcido e, no céu avermelhado, surgem gralhas fugazes, que despertam pensamentos tristes. Tudo é quieto e silencioso; cada som - o rumor de um pássaro, o sussuro de uma folha que cai - parece mais forte, provoca um sobressalto, de novo recai no silêncio, que abarca a terra inteira e enche o peito. Em momentos assim, nascem pensamentos singularmente puros, leves, porém finos, transparentes, como uma teia de aranha, e inapreensíveis por meio de palavras. Eles acendem e apagam depressa, como estrelas cadentes, queimam a alma com uma aflição vaga, acariciam-na, inquietam-na, e então ela ferve, se funde, assume a sua forma própria para toda a vida, ganha um rosto.
    Apertando-me ao flanco quente do inquilino, eu olhava, junto com ele, para o céu vermelho, através dos galhos negros das macieiras, seguia o voo dos tentilhões buliçosos, via como os pintassilgos sacudiam a ponta das bardanas secas para apanhar suas sementes amargas, via como as nuvens azuladas e veludosas se arrastavam, vindas do campo, com bordas púrpuras, e os corvos, abaixo das nuvens, voavam pesados rumo aos ninhos, no cemitério. Tudo era bonito e também, de um jeito diferente - não o de sempre -, era compreensível e próximo.
    De vez em quando, o homem perguntava, depois de um suspiro profundo:
    - Não é bonito, irmão? Olha só. Não está úmido, não está frio.
   E, quando o céu escureceu e tudo em volta inchou, encharcando-se de uma penumbra azulada, ele disse:
    - Bem, já chega! Vamos...
    Parou na porteira do jardim e falou, baixinho:
    - Você tem uma avó muito boa... Ah, que terra!
    Fechou bem os olhos e, sorrindo, recitou em voz baixa, com muita nitidez:
    Pois, vejam, este é o seu castigo:
    Por obedecer à ordem de um malvado,
    Por esconder-se atrás da consciência alheia!
    - E você, irmão, lembre-se muito bem disso!
    E, empurrando-me para frente, perguntou:
    - Sabe escrever?
    - Não.
    - Aprenda. E, quando aprender, escreva o que sua avó conta. Vai ter grande serventia, irmão...
    Ficamos amigos. [...] Sem demora e com afinco me apaguei ao Coisa Boa, ele se tornou indispensável para mim, tanto nos dias de amarga humilhação como nas horas de alegria. Calado, não me proibia de falar o que me viesse à cabeça, enquanto o avô sempre me interrompia com um grito severo:
    - Pare de tagarelar, matraca do diabo!
    A avó mesma andava tão ocupada com os próprios pensamentos que não ouvia nem aceitava os dos outros. 
    O Coisa Boa sempre escutava minha tagarelice com atenção e muitas vezes me dizia, sorrindo:
    - Bem, irmão, não é assim, isso você mesmo inventou...
    E seus comentários sucintos eram sempre oportunos, necessários - ele parecia enxergar atráves das coisas e ver tudo o que se passava no meu coração e na minha cabeça, via todas as palavras excessivas, erradas, antes que eu tivesse tempo de dizê-las, ele via e as cortava na raiz, com três golpes carinhosos:
    - Está mentindo, irmão!
[...]
    Muitas vezes, quando ia à praça Siénnaia para pegar água, a avó me levava junto e, certo dia, vimos como cinco pequeno-burgueses surravam um mujique - derrubaram-no e o estraçalhavam como cães que atacassem outro cão. A avó desprendeu os baldes da canga e, brandindo-a no ar, investiu contra os pequenos-burgueses, depois de gritar para mim:
    - Corre, fogo! 
    Mas fiquei assustado, corri atrás dela e comecei a jogar seixos e pedras nos pequeno-burgueses, enquanto a avó, sem medo, arremetia com a canga na direção deles, golpeava-os nos ombros, na cabeça. Mais algumas pessoas também acudiram, os pequenos-burgueses fugiram, a avó começou a lavar o homem espancado; o rosto dele tinha sido pisoteado e até hoje revejo com repugnância como ele apertava, com um dedo enlameado, a narina rasgada, e uivava, e tossia, e o sangue espirrava por baixo dos dedos, no rosto da minha avó e no peito dela; a avó também gritava, tremia toda.
    Quando voltei para casa, entrei correndo no quarto do inquilino e comecei a lhe contar; o Coisa Boa largou o trabalho e ficou parado na minha frente, com a lima comprida levantada como um sabre, fitando-me por trás dos óculos de maneira fixa e severa, e depois me interrompeu de um jeito brusco, falando com uma seriedade incomum:
    - Ótimo, foi exatamente assim que tudo aconteceu! Muito bem! 
    Abalado com o que tinha visto, não consegui admirar-me com as suas palavras e continuei a falar, mas ele me abraçou e, caminhando pelo quarto, para um lado e para o outro, aos tropeções, desatou a falar:
    - Chega, não precisa mais! Já contou tudo, irmão, tudo o que é preciso... entende? Tudo!
[...]
    Às vezes, de forma inesperada, ele me dizia palavras que ficaram gravadas em mim pelo resto da vida. Contei-lhe a respeito de um adversário meu, Kliúchnikov, o lutador campeão da rua Nova, um menino corpulento, de cabeça grande, que eu não conseguia vencer, e nem ele a mim. O Coisa Boa escutou com atenção as minhas aflições e falou:
    - Isso é bobagem; uma força assim não é força! A força verdadeira está na rapidez dos movimentos; quanto mais rápido, mais forte, entendeu?
    No domingo seguinte, experimentei mover os punhos mais depressa e derrotei o Kliúchnikov com facilidade. Isso me levou a dar ainda mais atenção às palavras do inquilino.
    - É preciso saber pegar cada coisa ao seu jeito, entende? Isto é muito difícil: saber pegar!
    Eu nada entendia, mas, mesmo sem querer, lembrava-me dessas palavras e de outras semelhantes - justo porque, na sua simplicidade, havia algo de misterioso. [...]
    Enquanto isso, em casa, desgostavam cada vez mais do Coisa Boa; até a gatinha carinhosa da nossa alegre pensionista não saltava mais para o colo do Coisa Boa como subia no colo de todos, e não atendia ao seu apelo afetuoso. Por causa disso, eu batia na gata, sacudia suas orelhas e, à beira de chorar, tentava convencê-la a não ter medo do Coisa Boa.
    - Minhas roupas cheiram a ácidos, por isso a gatinha não vem para mim - explicava ele, mas eu sabia que todos, até a avó, explicavam o fato de outra maneira, com hostilidade ao inquilino, de uma forma errada e ofensiva.
    - Por que você vive metido no quarto dele? - perguntava a avó, zangada. - Cuidado para ele não lhe ensinar sei la o quê...
    E o avô batia em mim com crueldade, após cada visita ao inquilino de que o furão ruivo tomava conhecimento. Eu, é claro, não dizia ao Coisa Boa que me proibiam de ter contato com ele, mas contava com franqueza o que pensavam em casa a seu respeito.
    - A avó tem medo de você, diz que pratica a magia negra, e o avô também, diz que você é inimigo de Deus e um perigo para as pessoas...
    Ele sacudia a cabeça, como que para espantar uma mosca; em seu rosto cor de giz, inflamava-se um sorriso rosado, que dava um aperto no meu coração e embaçava os meus olhos.
    - Irmão, isso eu mesmo vejo! - falou, baixinho. - É triste, irmão, não é?
    - É.
    - É triste, irmão...
    Por fim o desalojaram.
    Certo dia, fui ao seu quarto depois do chá da manhã e vi que ele, sentado no chão, arrumava suas coisas dentro dos caixotes enquanto cantarolava em voz baixa sobre a rosa de Saron.
    - Bem, adeus, irmão, vou embora...
    - Por quê?
    Olhou-me fixamente, dizendo:
    - Você não sabe? Sua mãe vai precisar do quarto...
    - Quem disse?
    - O vovô...
    - Ele está mentindo!
    O Coisa Boa me puxou pela mão para junto de si e, quando me sentei no chão, começou a falar em voz baixa:
   -  Não fique zangado! Pensei que você sabia, irmão, e não me contou; isso é ruim, pensei...
    Fiquei triste e aborrecido com ele, sem saber por quê.
    - Escute - disse o Coisa Boa, quase num sussurro e sorrindo. - Lembra que eu disse para você não vir ao meu quarto?
    Fiz que sim com a cabeça.
    - Ficou magoado comigo, não foi?
    - Foi...
    - Mas eu não queria magoar você; veja bem, eu já sabia: se fizesse amizade comigo, os seus parentes começariam a ralhar com você... E não foi assim? Não foi ? Entendeu por que eu falei aquilo?
    Ele falava que nem um menino da minha idade; e me alegrei tremendamente com as suas palavras; me pareceu até que eu já havia compreendido aquilo muito tempo antes; e foi o que falei:
    - Eu já tinha entendido faz muito tempo!
    - Bem, aí está! É isso, irmão. Dito e feito, meu caro...
    Meu coração começou a doer de uma forma insuportável.
    - Por que nenhum deles gosta de você?
    Abraçou-me, apertou-me contra o seu corpo e respondeu, piscando os olhos:
    - Sou estranho, entende? É por isso. Não sou como eles...
    Sem saber o que dizer e incapaz de falar, eu o puxava pela manga.
    - Não fique zangado - repetiu e, com um sussurro no meu ouvido, acrescentou: - Também não é preciso chorar...
    E as lágrimas dele mesmo corriam, por baixo dos óculos embaçados.
   Depois, como sempre, ficamos muito tempo sentados e em silêncio, só de quando em quando trocando palavras curtas.
     Ao anoitecer, ele partiu, depois de se despedir de todos com carinho e de me abraçar com força. Cruzei o portão e vi como ele sacudia dentro da telega, cujas rodas amassavam os montinhos de lama gelada. 
[...]
Assim terminou a minha amizade com o primeiro de uma série interminável de estranhos em sua própria terra - as melhores pessoas que nela vivem...
  

GÓRKI, Maksim. Infância. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções; v. 32), pp. 139-160 (Capítulo 8).

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