domingo, 2 de dezembro de 2012

O lugar da aguada

    Como em todas as cidades à beira-mar, o cheiro de peixe a impregnava. As lojas de quinquilharias estavam cheias de conchas envernizadas, duras, no entanto frágeis. Até mesmo os habitantes tinham uma aparência conchoide - uma aparência frívola, como se o verdadeiro animal tivesse sido extraído na ponta de um alfinete e restasse apenas a concha. Eram conchas os velhos, no passeio público. Suas polainas, suas calças de montar, seus óculos-de-alcance pareciam reduzi-los a brinquedos. Tomá-los por marinheiros de verdade ou esportistas de verdade era tão impossível quanto considerar que as conchas aplicadas para orlar molduras de fotos e óculos-de-alcance tivessem jazido outrora nas profundezas do mar. Também as mulheres, com suas calças e seus sapatinhos de salto e seus colares de pérolas e suas bolsas de ráfia, pareciam conchas de mulheres reais que saíam de manhã para a compra de provisões para a casa.
    A uma da tarde essa frágil e egoísta população mariscosa envernizada amontoava-se no restaurante. Cheirava a peixe o restaurante, com o mesmo odor de uma traineira que arrastasse redes repletas de espadilhas e arenques. O consumo de pescado, naquele salão de almoço, deve ter sido sempre enorme. O cheiro impregnava até mesmo o cômodo designado às senhoras no primeiro patamar de escada. Apenas uma porta separava os dois compartimentos em que esse cômodo se dividia. De um lado dela, as exigências da natureza eram satisfeitas; e, do outro, na bancada da pia, ao espelho, a arte disciplinava a natureza. Três jovens damas haviam atingido esse segundo estágio do ritual diário. E ali exerciam seus direitos de aperfeiçoar a natureza, subjugando-a com seus pompons de pó-de-arroz e seus tabletinhos vermelhos. Ao fazer isso, conversavam; tal conversa foi interrompida como que pela irrupção de uma enorme maré invasiva; mas a maré logo refluiu e ouviu-se então uma dizendo:
    "Eu nunca liguei para ela - que é uma bobinha muito metida... Bert nunca ligou para mulheronas... Cê já viu ele depois qu'ele voltou?... Os olhos dele... são tão azuis... Que nem piscina... Os do Gert também... Os dois têm os mesmos olhos... A gente olha para eles... E os dois têm os mesmos dentes tão brancos, tão bonitos... O Gert também... Mas os dele, quando ele ri...são meio tortos...".
    Jorrou água... A maré, espumando e retrocedendo, pôs a sequência a descoberto: "Mas bem que ele devia ter mais cuidado. Se pegarem ele fazendo isso, vão levar ele pro conselho de guerra...". Rolou então outro aguaceiro no compartimento do lado. A maré, no lugar da aguada, parecia jamais parar de fluir e refluir. Ela deixa de fora esses peixinhos; e sobre eles se derrama. Quando refluiu, lá estão de novo os peixes, com seu odor fétido e forte, com seu estranho cheiro de peixe que parece permear todo o lugar da aguada.
    Porém à noite o aspecto da cidade é de todo etéreo. Há um brilho branco no horizonte. Há brincos de argola e diademas nas ruas. A cidade submerge. E nas mimosas lanternas decorativas somente sobressai seu esqueleto.

WOOLF, Virginia. Contos completos: Virginia Woolf. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp.427-428.    

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