domingo, 9 de dezembro de 2012

Jano

ÉCLOGA QUARTA

JANO


Autor     UM PASTOR, Jano chamado,
               de amor da formosa Dina
               andava tão transportado*,            *fora de si; enlevado
               que por dita* nem mofina*           * fortuna  * infelicidade
               nunca era outro seu cuidado.
               Segundo o bem que queria,
               tão pouco do mal se guardou
               que, vendo a Dina num dia,
               logo da vista cegou,
              que dantes da alma não via.

               De si ela o desterrou,
               para longe terra estranha
               seu mal só o acompanhou.
               Sobre uma mágoa tamanha
               tamanha mágoa ajuntou
               vendo-se assim desterrado:
               muitas vezes se saía
               para um despovoado,
               onde ir ninguém podia
               senão desencaminhado.

              Ali triste se assentava,
              pascendo ao redor
              seu pobre gado o cercava
              e o coitado do pastor 
              nunca uma hora repousava.
              Encostado a uma mão,
              os olhos postos na terra
              e a Dina, no coração,
              assim entre aquela serra
              se estava queixando em vão.

Jano      Dina minha ou, se me engano,
              ao menos muito querida
              e com tanto desengano,
              já me vós fostes a vida,
              agora me sois o dano.
              Danos meus tão encobertos,
              aqui poderei sem medo 
              ser agora descobertos
              se ficou algum segredo
             al* de menos nos desertos.          * outra coisa

              A outro nenhum lugar,
             por minha desaventura,
             vos não posso já levar:
             levou-me tudo a ventura,
             deixou-me só o pesar.
             Pesar nunca me deixou
             depois que, por meu pecado,
             tudo me desamparou;
             e eu mais desamparado
             fico com o que me ficou.

            Andem pelos povoados
            os pastores que não têm
            cuidados* sobre cuidados*;     * preocupação; inquietação de alma
            logrem seu mal e seu bem,
            cansados ou descansados,
            que para mim não nasceram
            senão dores e pesares.
            Para os que dita* tiveram        *fortuna
            se fizeram os lugares
            que tanto mal me fizeram.

           Eu, pelo pé destas serras,
           de uma em outra vanidade,
           sofro andando as longas guerras
           que me fazem saüdade
           dela e de tão longas terras.
           Com cuidados me anoitece
           um dia, e outro dia
           com cuidados me amanhece:
           trás um vem a fantasia
           que tão longe me parece.

           Quem me meteu neste enleio,
           pois nunca mais saí dele,
           tem me cercado o receio:
           mal, se me creio por ele,
           mal também se o não creio.
           Certa está já minha fim,
           minha vida está em perigo,
           de mim eu me desavim,
           e pois eu me sou imigo
           quem me vingará de mim?

           Coitado, não sei que diga,
           a nenhuma parte vou
           que de lá não ache fadiga,
           que aquesta só me ficou
           de minha amiga ou imiga.
           O deserto e povoado,
           todo é cheio de meus males;
           vim a esta serra cansado,
           não há lugar nestes vales
           onde não tenha chorado.

          Donde vos começarei 
          mágoas minhas a contar?
          Por que palavras direi
          do mal que soube buscar?
          Queixar-me agora não sei:
          a língua e o sentido,
          tudo anda tão ocupado,
          tão cansado e destruído,
          que seria mal contado
          como foi mal merecido.

          Pela ribeira do Tejo,
          guardando andava meu gado,
          nunca inda vira desejo
          quando me de um vi levado
          onde me agora não vejo.
          E foi tamanha a mudança,
          que quando já me acordei 
          achei ida a esperança,
          e esta pouca que achei
          em outra maior balança.

         Deste mal outros vieram
         (era, parece-me, ordenado)
         pouco e pouco se puseram
         onde eles tinham lançado
         o bem que nunca me deram.
         Fizeram-se assim tão senhores
         de mim, ou não sei de quem,
         que foram os causadores 
         de eu tornar a pôr fé
         em outros enganos maiores.

        Não ficou coisa nenhuma
        desta vez para ficar;
        se antes tinha pena alguma,
        agora, por me matar,
        mil* se me faz cada uma.     * muitos
        Minha alma é desesperada
        com o mal que eu sempre sento,
        que triste, em hora minguada,
        um em tanto crescimento
        vi, que depois não vi nada.

        Este outubro fez um ano,
        quando eu, na vila era, 
        vi criar-se este meu dano
        que agora e então já era.
        Tirar-me o podia engano
        e, cuidando que o lugar
        fosse a causa principal,
        houve-o enfim de deixar;
        e o meu, para o meu mal,
        estava noutro lugar.

        Mudei terra, mudei vida,
       mudei paixão em paixão,
       vi a alma de mim partida,
       nunca de meu coração
       vi minha dor despedida.
       Entre tamanhas mudanças,
       de um cabo minha suspeita
       e de outro desconfianças,
       deixam-me em grande estreita
       e levam-me as esperanças.

       Nesta triste companhia
       ando eu, que tão triste ando;
       já não sou quem ser soía,
       os dias vivo chorando,
       as noites mal as dormia.
       Temo descanso tornado 
        mal, que por meu mal o vi,
       e eu, mal-aventurado,
       morro-me andando assim
       entre cuidado e cuidado.

       Por me nada não ficar 
       que não me fosse tentado,
       provei dar-me a trabalhar
       mas nunca me achei cansado
       para poder descansar.
       Quando mais cansado estava,
       ali meu mal, então,
       a meu mal se apresentava,
       e o corpo e o coração,
       ambos cansados levava.

      Não sabendo onde me iria
      que a me a mim lá não levasse
      roguei a Deus, não só um dia,
      que da vida me tirasse 
      pois me dá-la não queria.
      Mas com cuidados maiores
      crê que Deus se não cura
      cá dos pobres pastores
      como que eles por ventura
      não sentem lá suas dores.

      Ó quão bem-aventurado
      fora já se me matara
      minha dor ou meu cuidado!
      Eu morrera e acabara,
      e meu mal fora acabado.
      Não vira tal perdição
      de mim e de tanta coisa,
      perdido tudo em vão;
      porque uma paixão não repousa
      em outra maior paixão.

      A la fé*, de culpa sou,    * palavra de honra; juramento
      que bem mo disse Africano
      quando a Felipa falou
       e lhe deu o desengano
      com que lhe a vida tirou.
      Quantas vezes, na ribeira,
      tendo a sesta nossas cabras,
      me disse desta maneira.
      Eu ouvi bem as palavras,
      fi-lo mal à derradeira:

Africano   Sob a sombra deste freixo,
                  lembre-te isto que te digo,
                  e pois vês que assim me queixo,
                  saberás, Jano amigo,
                  que o melhor de mim te deixo.
                  O pior eu o levei,
                  por isso olha que sigas
                  somente o que te direi:
                  deixa-me a mim as fadigas,
                  pois me eu para elas deixei.

        Faze por viver isento,
        que esta é toda a verdade:
        se te creres pelo vento
        perderás a liberdade
        e mais o contentamento
        que tão má hora nasceu
        que neste mundo ruim
        por vaïdades se creu,
        que nunca deram o fim
        que ao começo prometeu.

       Guar-te do falso do amor,
       que viverás sempre em medo;
       não te engane seu favor,
       pode-lo-ás fazer com cedo,
       porque tarde tudo é dor.
       Aos seus contentamentos 
       não creias, se tu me creres,
       que não são senão tormentos,
       e não queiras seus prazeres
       por seus descontentamentos.

       Quem me viu hoje há dois anos!
       Ó Felipa, que fizeste?
       Deixaras-me meus enganos,
       e olha que não quiseste
       por me dar a mim mais danos.
       Quem havia de cuidar
       de ver tamanhas mudanças
       mas em fim tudo é pesar:
       trás as grandes esperanças
       está o despertar.

       Olha, Jano, bem por ti,
       não te arrependas tarde,
       crê-me a mim que sei e vi
       cousas de que Deus te guarde,
       que a elas e a mim perdi.
       Comerás sem dor teu pão,
       dormirás teu sono cheio,
       se fores sem afeição,
       que faz homem de si alheio,
       com razão e sem razão.

       Em tudo espera o pior,
       que, quando te o mal vier,
       não te faça o mal maior;
       tudo é leve de perder
       onde esperança não for.

Jano   Aqui triste se calava,
          ca dor grande que sentia
          já os seus olhos cegava;
          desta sorte me dizia
          depois que um pouco assim estava.

Africano   Outros muitos te dirão
                  que procures por riquezas,
                  mas que te aproveitarão,
                  Jano meu, se as tristezas
                  se tiverem o coração.
                  Se a ti mesmo tiveres
                  pouco ou nada, hás mister
                  para contente viveres;
                  por isso faze por te ter,
                  para tanta dor não teres.

Jano   Amores não guardam lei,
           quantas vezes o ouvi.
           Fazê-lo assim, lhe fiquei
           bem então lho prometi,
           e mal depois o guardei.
           Se eu, em minha mocidade,
           por seus conselhos regera,
           com tamanha crueldade
           tão longe me não pusera
           de mim a minha vontade.

           Isto onde o mereci eu?
           Ou a quem o mereci?
           Ó Dina, cuidado meu,
           quem me vos levou assim
           que tantos nojos* me deu?   *desgostos; danos
           Ó meus olhos e começo
           desta minha triste fim!
           Ó quantos males padeço!
           Como me tendes de mim
           longe, e não vo-lo mereço!

          Longe, em terras estranhas
          e de esperança alongado,
          pelos campos e pelas serras,
          entre mim e o meu cuidado
          são apregoadas guerras.
          Ó desventura minha, 
          começada de tão longe
          quanto me a mim mais convinha,
          convinha deitar-me a longe,
          eu com quantas cousas tinha?

          Onde posso já ir?
          Quem me será bom amigo?
          Mal em estar, mal em fugir,
          dentro cá trago comigo
          quem me a mim há destruir.
          Remédio a tanto dano
          mal se poderá tomar.
          Não foi tomado o engano
          quando, para o deixar,
          aborreci o desengano.

         Olho e nenhum cabo vejo
         onde me possa salvar;
         contra mim mesmo pelejo,
         já da parte do pesar
         é lançado o meu desejo.
         O fim não pode tardar.
         Coitado, gado, de ti,
         quem sem dono hás-de ficar,
         ainda que melhor é assim
         morrer eu, que te matar.

         Que esta dor longa que sigo
         traz-me assim tão transportado
         que a mim mesmo maldigo:
         que bem fará a seu gado
         quem tão mal o faz consigo?
         Quando me a mim melhor ia,
         que não sei se foi melhor,
          gordo e farto te trazia,
          agora é triste o pastor
          e triste o gado que o guia.

Africano   Já aquele tempo é passado,
                   quando à beira do meu trigo,
                   Jano, em te ver foi pasmado:
                   tu te ficas sem abrigo
                   e o pastor desabrigado.
                   Mesquinho pastor perdido,
                   quanto melhor já te fora
                   não ser no mundo nascido,
                   pois entre hora e hora
                   jaz tanto mal escondido.

Jano   Como se o bem passou
            e veio o mal tão asinha,
            coisa e coisa se mudou; 
            a vã esperança minha
            em que termos me deixou?
            Foi-te assim tudo a perder,
            perdeu-te o gado e o pastor;
            cansado sou de viver,
            trouxe uma dor outra dor,
            prazer nunca outro prazer.

           Ó meu amigo Africano,
           agora vejo a verdade,
           que me tem levado o engano
           toda minha liberdade:
           leva* o dia, leva o ano.   * desaparece; perde
           Mas pois que Deus assim quer
           ou a minha triste sorte,
           vá tudo como quiser,
           que não há mais de uma morte.
           Tarde ou cedo hei de morrer.


RIBEIRO, Bernardim. Obras de Bernardim Ribeiro. Helder Macedo e Mauricio Matos (org.). Lisboa: Editorial Presença, 2010, pp. 274-286. 
           

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