ÉCLOGA QUARTA
JANO
Autor UM PASTOR, Jano chamado,
de amor da formosa Dina
andava tão transportado*, *fora de si; enlevado
que por dita* nem mofina* * fortuna * infelicidade
nunca era outro seu cuidado.
Segundo o bem que queria,
tão pouco do mal se guardou
que, vendo a Dina num dia,
logo da vista cegou,
que dantes da alma não via.
De si ela o desterrou,
para longe terra estranha
seu mal só o acompanhou.
Sobre uma mágoa tamanha
tamanha mágoa ajuntou
vendo-se assim desterrado:
muitas vezes se saía
para um despovoado,
onde ir ninguém podia
senão desencaminhado.
Ali triste se assentava,
pascendo ao redor
seu pobre gado o cercava
e o coitado do pastor
nunca uma hora repousava.
Encostado a uma mão,
os olhos postos na terra
e a Dina, no coração,
assim entre aquela serra
se estava queixando em vão.
Jano Dina minha ou, se me engano,
ao menos muito querida
e com tanto desengano,
já me vós fostes a vida,
agora me sois o dano.
Danos meus tão encobertos,
aqui poderei sem medo
ser agora descobertos
se ficou algum segredo
al* de menos nos desertos. * outra coisa
A outro nenhum lugar,
por minha desaventura,
vos não posso já levar:
levou-me tudo a ventura,
deixou-me só o pesar.
Pesar nunca me deixou
depois que, por meu pecado,
tudo me desamparou;
e eu mais desamparado
fico com o que me ficou.
Andem pelos povoados
os pastores que não têm
cuidados* sobre cuidados*; * preocupação; inquietação de alma
logrem seu mal e seu bem,
cansados ou descansados,
que para mim não nasceram
senão dores e pesares.
Para os que dita* tiveram *fortuna
se fizeram os lugares
que tanto mal me fizeram.
Eu, pelo pé destas serras,
de uma em outra vanidade,
sofro andando as longas guerras
que me fazem saüdade
dela e de tão longas terras.
Com cuidados me anoitece
um dia, e outro dia
com cuidados me amanhece:
trás um vem a fantasia
que tão longe me parece.
Quem me meteu neste enleio,
pois nunca mais saí dele,
tem me cercado o receio:
mal, se me creio por ele,
mal também se o não creio.
Certa está já minha fim,
minha vida está em perigo,
de mim eu me desavim,
e pois eu me sou imigo
quem me vingará de mim?
Coitado, não sei que diga,
a nenhuma parte vou
que de lá não ache fadiga,
que aquesta só me ficou
de minha amiga ou imiga.
O deserto e povoado,
todo é cheio de meus males;
vim a esta serra cansado,
não há lugar nestes vales
onde não tenha chorado.
Donde vos começarei
mágoas minhas a contar?
Por que palavras direi
do mal que soube buscar?
Queixar-me agora não sei:
a língua e o sentido,
tudo anda tão ocupado,
tão cansado e destruído,
que seria mal contado
como foi mal merecido.
Pela ribeira do Tejo,
guardando andava meu gado,
nunca inda vira desejo
quando me de um vi levado
onde me agora não vejo.
E foi tamanha a mudança,
que quando já me acordei
achei ida a esperança,
e esta pouca que achei
em outra maior balança.
Deste mal outros vieram
(era, parece-me, ordenado)
pouco e pouco se puseram
onde eles tinham lançado
o bem que nunca me deram.
Fizeram-se assim tão senhores
de mim, ou não sei de quem,
que foram os causadores
de eu tornar a pôr fé
em outros enganos maiores.
Não ficou coisa nenhuma
desta vez para ficar;
se antes tinha pena alguma,
agora, por me matar,
mil* se me faz cada uma. * muitos
Minha alma é desesperada
com o mal que eu sempre sento,
que triste, em hora minguada,
um em tanto crescimento
vi, que depois não vi nada.
Este outubro fez um ano,
quando eu, na vila era,
vi criar-se este meu dano
que agora e então já era.
Tirar-me o podia engano
e, cuidando que o lugar
fosse a causa principal,
houve-o enfim de deixar;
e o meu, para o meu mal,
estava noutro lugar.
Mudei terra, mudei vida,
mudei paixão em paixão,
vi a alma de mim partida,
nunca de meu coração
vi minha dor despedida.
Entre tamanhas mudanças,
de um cabo minha suspeita
e de outro desconfianças,
deixam-me em grande estreita
e levam-me as esperanças.
Nesta triste companhia
ando eu, que tão triste ando;
já não sou quem ser soía,
os dias vivo chorando,
as noites mal as dormia.
Temo descanso tornado
mal, que por meu mal o vi,
e eu, mal-aventurado,
morro-me andando assim
entre cuidado e cuidado.
Por me nada não ficar
que não me fosse tentado,
provei dar-me a trabalhar
mas nunca me achei cansado
para poder descansar.
Quando mais cansado estava,
ali meu mal, então,
a meu mal se apresentava,
e o corpo e o coração,
ambos cansados levava.
Não sabendo onde me iria
que a me a mim lá não levasse
roguei a Deus, não só um dia,
que da vida me tirasse
pois me dá-la não queria.
Mas com cuidados maiores
crê que Deus se não cura
cá dos pobres pastores
como que eles por ventura
não sentem lá suas dores.
Ó quão bem-aventurado
fora já se me matara
minha dor ou meu cuidado!
Eu morrera e acabara,
e meu mal fora acabado.
Não vira tal perdição
de mim e de tanta coisa,
perdido tudo em vão;
porque uma paixão não repousa
em outra maior paixão.
A la fé*, de culpa sou, * palavra de honra; juramento
que bem mo disse Africano
quando a Felipa falou
e lhe deu o desengano
com que lhe a vida tirou.
Quantas vezes, na ribeira,
tendo a sesta nossas cabras,
me disse desta maneira.
Eu ouvi bem as palavras,
fi-lo mal à derradeira:
Africano Sob a sombra deste freixo,
lembre-te isto que te digo,
e pois vês que assim me queixo,
saberás, Jano amigo,
que o melhor de mim te deixo.
O pior eu o levei,
por isso olha que sigas
somente o que te direi:
deixa-me a mim as fadigas,
pois me eu para elas deixei.
Faze por viver isento,
que esta é toda a verdade:
se te creres pelo vento
perderás a liberdade
e mais o contentamento
que tão má hora nasceu
que neste mundo ruim
por vaïdades se creu,
que nunca deram o fim
que ao começo prometeu.
Guar-te do falso do amor,
que viverás sempre em medo;
não te engane seu favor,
pode-lo-ás fazer com cedo,
porque tarde tudo é dor.
Aos seus contentamentos
não creias, se tu me creres,
que não são senão tormentos,
e não queiras seus prazeres
por seus descontentamentos.
Quem me viu hoje há dois anos!
Ó Felipa, que fizeste?
Deixaras-me meus enganos,
e olha que não quiseste
por me dar a mim mais danos.
Quem havia de cuidar
de ver tamanhas mudanças
mas em fim tudo é pesar:
trás as grandes esperanças
está o despertar.
Olha, Jano, bem por ti,
não te arrependas tarde,
crê-me a mim que sei e vi
cousas de que Deus te guarde,
que a elas e a mim perdi.
Comerás sem dor teu pão,
dormirás teu sono cheio,
se fores sem afeição,
que faz homem de si alheio,
com razão e sem razão.
Em tudo espera o pior,
que, quando te o mal vier,
não te faça o mal maior;
tudo é leve de perder
onde esperança não for.
Jano Aqui triste se calava,
ca dor grande que sentia
já os seus olhos cegava;
desta sorte me dizia
depois que um pouco assim estava.
Africano Outros muitos te dirão
que procures por riquezas,
mas que te aproveitarão,
Jano meu, se as tristezas
se tiverem o coração.
Se a ti mesmo tiveres
pouco ou nada, hás mister
para contente viveres;
por isso faze por te ter,
para tanta dor não teres.
Jano Amores não guardam lei,
quantas vezes o ouvi.
Fazê-lo assim, lhe fiquei
bem então lho prometi,
e mal depois o guardei.
Se eu, em minha mocidade,
por seus conselhos regera,
com tamanha crueldade
tão longe me não pusera
de mim a minha vontade.
Isto onde o mereci eu?
Ou a quem o mereci?
Ó Dina, cuidado meu,
quem me vos levou assim
que tantos nojos* me deu? *desgostos; danos
Ó meus olhos e começo
desta minha triste fim!
Ó quantos males padeço!
Como me tendes de mim
longe, e não vo-lo mereço!
Longe, em terras estranhas
e de esperança alongado,
pelos campos e pelas serras,
entre mim e o meu cuidado
são apregoadas guerras.
Ó desventura minha,
começada de tão longe
quanto me a mim mais convinha,
convinha deitar-me a longe,
eu com quantas cousas tinha?
Onde posso já ir?
Quem me será bom amigo?
Mal em estar, mal em fugir,
dentro cá trago comigo
quem me a mim há destruir.
Remédio a tanto dano
mal se poderá tomar.
Não foi tomado o engano
quando, para o deixar,
aborreci o desengano.
Olho e nenhum cabo vejo
onde me possa salvar;
contra mim mesmo pelejo,
já da parte do pesar
é lançado o meu desejo.
O fim não pode tardar.
Coitado, gado, de ti,
quem sem dono hás-de ficar,
ainda que melhor é assim
morrer eu, que te matar.
Que esta dor longa que sigo
traz-me assim tão transportado
que a mim mesmo maldigo:
que bem fará a seu gado
quem tão mal o faz consigo?
Quando me a mim melhor ia,
que não sei se foi melhor,
gordo e farto te trazia,
agora é triste o pastor
e triste o gado que o guia.
Africano Já aquele tempo é passado,
quando à beira do meu trigo,
Jano, em te ver foi pasmado:
tu te ficas sem abrigo
e o pastor desabrigado.
Mesquinho pastor perdido,
quanto melhor já te fora
não ser no mundo nascido,
pois entre hora e hora
jaz tanto mal escondido.
Jano Como se o bem passou
e veio o mal tão asinha,
coisa e coisa se mudou;
a vã esperança minha
em que termos me deixou?
Foi-te assim tudo a perder,
perdeu-te o gado e o pastor;
cansado sou de viver,
trouxe uma dor outra dor,
prazer nunca outro prazer.
Ó meu amigo Africano,
agora vejo a verdade,
que me tem levado o engano
toda minha liberdade:
leva* o dia, leva o ano. * desaparece; perde
Mas pois que Deus assim quer
ou a minha triste sorte,
vá tudo como quiser,
que não há mais de uma morte.
Tarde ou cedo hei de morrer.
RIBEIRO, Bernardim. Obras de Bernardim Ribeiro. Helder Macedo e Mauricio Matos (org.). Lisboa: Editorial Presença, 2010, pp. 274-286.
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