domingo, 18 de novembro de 2012

Juventude


    
    Juventude, ou mais fielmente, Interlúdio de Verão (Sommarlek, Suécia, 1951), a primeira das obras-primas do célebre Ingmar Bergman, é uma trama trágica, arranjada, paradoxalmente, nas mais belas e felizes cenas de lembranças de uma bailarina.
    
     Marie (a bela Maj-Britt Nilsson), uma bailarina de 28 anos, prestes a entrar no palco para realizar o ensaio final do espetáculo "O Lago dos Cisnes", recebe um envelope. Nele encontra o diário de Henrik (Birger Malmsten), outrora seu primeiro amor. Surpreendida, por uma surpresa amedrontadora e nostálgica, a moça fica a passar os olhos e as mãos nas páginas da caderneta preta, mas o faz somente nas primeiras páginas, pois tem o empreendimento de averiguação interrompido pelas convocações do seu coreógrafo ao ensaio. Marie já de semblante infeliz, tem seu humor modificado pelo diário, ficando pensativa e mais melancólica. Sugestivamente, no ínterim em que Marie fica entre o diário e a ida ao ensaio, o ajudante que ergue e desce a cortina do teatro, significativamente este responsável pela abertura e fechamento de um espetáculo, anuncia sua intuição de que há algo estranho e ruim naquela atmosfera, a insinuar que alguma coisa não dará certo. Alguns minutos seguintes, durante a dança das bailarinas, a luz é apagada e o ensaio interrompido, forçado a ser realizado no turno da noite, o que permite Marie ter mais contato com o diário e voltar aos lugares descritos nele. 

     Mais que este acidente físico, as palavras proféticas do homem da cortina, se fazem cumpridas com a mudança acontecida na vida de Marie, consequência da chegada do diário. A cardeneta preta causa o desmoronamento da vida que Marie levava até então: exclusivamente dedicada ao seu ofício de bailarina há 20 anos, com muita disciplina e dedicação aprisionadoras e fugidias, sem espaço para um casamento ou a construção de uma vida mais saudável, dividida entre outras atividades. O autoaprisionamento da dançarina se justifica pelo medo de ser novamente subtraída de uma grande felicidade por um enorme infortúnio. 

    Aos 18 anos, após viver momentos muito felizes com Henrik em um verão, perde-o quando, numa tarde em que nadavam num lago, este se atira do alto de uma pedra à água e cai sobre pedregulhos. Episódio trágico, ficará marcante na vida de Marie menos pela perda de um amor, que da sua juventude inteira. Desde então, ela, após questionar se nada faria sentido na existência, demonstrar ódio feroz para com Deus (com desejo de cuspir-lhe a cara), desenvolve como maneira de viver a vida, o que caracteriza por um "muro", na ilusão de ficar protegida de infortúnios. Tal saída foi escolhida por conselho de seu tio Erland (Georg Funkquist), um asqueroso tipo, que na frente da esposa triste e judiada (Renée Björling), não disfarçava a paixão que tivera (e mantinha bem viva) pela mãe de Marie, e que parecia ter sido tranferida à filha (Marie), dadas as insinuações e provocações abusadas que fazia à então garota de 18 anos. Erland, como que com esperança de um dia ter Marie como mulher, faz a ela esta sugestão de criar um "muro", resguardando-se das pessoas e da vida. Entretanto, talvez cansado de não ter a sobrinha como companheira e vê-la mal, passados muitos anos após o episódio da morte de Henrik, manda o diário deste a Marie, proporcionando à sobrinha novamente as lembranças felizes dos seus tempos de amante. 

    As belíssimas cenas (pela fotografia, pela beleza natural dos atores, da sonoplastia, das paisagens e gestos cândidos) que acompanham a leitura que Marie faz do diário (e ocupam a maior parte do filme) são as do seu relacionamento com Henrik; cenas de amor adolescente, ingênuo, cheio de pudores, sem nenhuma malícia de uma para outro e para outrem, nenhum conhecimento dos riscos da vida e muito carinho e sentimentos puros. Esta retratação de um dos episódios mais banais e muitas vezes descritos e caracterizados de forma tosca em muitos filmes, é neste bela. Bergman não anula as evidências e mesmices típicas do romance adolescente, mas não deixa isso em primazia, prioriza a psicologia, a inocência e os gestos engraçados, pueris e belos dos namorados. E, sobretudo, passa pela história do amor adolescente, grande marco da fase da juventude, para mostrar a perda dela e seus prejuízos para uma vida, maiormente para uma vida jovem, como a da bailarina de 28 anos.

    A ida de Marie ao local onde passara seu verão com Henrik, onde vivera uma vida muito distinta da de agora, muito viva, feliz, livre e cheia de planos, a faz confrontar-se com ela mesma, com seu estado existencial do presente. É memorável a cena em que indo visitar a casinha de bonecas à beira do lago onde costumava passar horas com Henrik, cruza o seu caminho uma velha vestida de preto. A personagem é um alegórico recurso bergmaniano, que permite-nos visualizar a condição em que Marie está e terminaria por permanecer se sua vida não se alterasse com o diário. Marie está como a velha de preto: uma velha tomada pela viuvez ou uma viúva envelhecida. Marie decretou para si, velhice na juventude, morte em vida. O muro que se impôs, conforme palavras dela mesma, não apenas a protegera, mas trancara-a. A jovem fez-se bailarina e foi esconder-se neste ofício com medo de viver. Como seu colega de coreografia disse, emblematicamente um palhaço, "Marie, você não ousa tirar a maquiagem e nem ousa ser maquiada. E seu traje? É como se não o tirasse do corpo!".  

    O filme de Bergman é uma história que, como observou Pauline Kael, contrasta decadência e juventude, corrupção e beleza; no entanto, mais que isso, é uma história sobre a perda da juvenilidade e da contração da velhice como estados psicológicos (não físicos) interiorizados - no caso de Marie, por medo e trauma. O namorico adolescente e a desventura sofrida por Henrik, ao contrário de apontarem para um enredo de romance romântico trágico, são apenas o mote de Bergman, um dos grandes cineastas da psicologia humana, para ilustrar emoções mais complexas e trágicas (com a maestria de não colocar em cenário nenhuma cena sanguinária de tragédia ou horror), como esta do estado interiorizado de viuvez e velhice que Marie fixara para si.

    A bailarina chega ao dia de apresentação do espetáculo, outra. Coincidentemente é neste dia da apresentação que finda o espetáculo da vida que levava até então. Marie termina por aceitar as reclamações de Nyström (Alf Kjellin), um audacioso jornalista com quem nos últimos tempos tinha se envolvido, de que ela não dava permissão para ele se aproximar dela, cuidar e ser seu amigo-amante, e, por fim, resgata seu viço de antes. Este desfecho, bem como outras falas, cenas ou personagens do filme, aludem à história de "O Lago dos Cisnes", em que a moça aprisionada no corpo de cisne é libertada diante do amor de um homem. Porém, este final feliz, que pode insinuar-se à romantismo melodramático, não o é, na medida em que não perdemos de vista a ideia do diretor sueco de sinalizar para o viço, novamente à juventude (aqui muito bem metonimicamente tomada pela relação amorosa entre jovens), em contraste à velhice e viuvez que Marie vivia. 

    Um belo filme, Juventude. Estou com Godard, quem disse que este é o filme mais bonito de Bergman.

2 comentários:

Lívio disse...

Que beleza de resenha, Bruna! Texto excelente e que nos deixa com vontade de assistir ao filme.

Parabéns pelo belo trabalho; parabéns pelo blogue.

Bruna Caixeta disse...

Ei, Lívio: grata pelas positivas palavras! E, assista ao filme, se puder. Vale a experiência.

Obrigada por ter conferido a postagem.

Um abraço.