quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A invenção de Hugo Cabret


Hugo: Monsieur Labisse me deu um livro.
Isabelle: Está sempre fazendo isso. "Mandar os livros a um bom lar". É assim que ele fala.
- Ele tem um... propósito.
- O que quer dizer?
- Tudo tem um propósito. Até as máquinas. Os relógios dizem as horas. Os trens levam a lugares. Servem a seus propósitos. Como o Monsieur Labisse. Por isso máquinas quebradas me deixam triste. Não servem a seus propósitos. Talvez seja assim com as pessoas. Perder o nosso propósito é como estar quebrado. 
- É esse o seu propósito? Consertar as coisas?
- Não sei. 
[...]

[Hugo e Isabelle olhando um autômato parado]

Isabelle: Ele parece triste.
Hugo: Acho que está só esperando.
- O quê?
- Trabalhar de novo. Fazer o que deve fazer. [...]

    Esses são diálogos copiados do filme A invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA, 2011), de Martin Scorsese, cujo enredo versa, entre outros assuntos, sobre o restabelecimento dos própositos das pessoas e sobre os sonhos induzidos pelas telas de cinema, os quais muitas vezes capacitam seus espectadores a tornarem aos seus desígnios particulares.

    A história do primeiro filme "infantil" de Scorsese é a de um menino órfão, Hugo (Asa Butterfield), que mora e se esconde numa grande estação de trem em Paris e vive atrás de engrenagens para consertar um autômato. 
    
    Após perder o pai (Jude Law) num incêndio, ele fica sob a tutela do tio beberrão (Ray Winstone), que logo o abandona, mas antes, o obriga a aprender e seguir seu ofício: diariamente dar corda em todos os relógios da estação. O que seria chato e monótono para uma criança, para Hugo é animador, pois vê na ocupação do tio uma oportunidade para aprender a manusear e reparar engrenagens para o autômato que ele e o pai haviam estado consertando até então. A engenhoca, como confidenciara o pai, se restaurada, seria capaz de escrever. 

    O autômato, depois de um tempo sendo recuperado por Hugo, encontra-se com apenas uma peça faltante, uma espécie de fechadura em formato de coração. O pai de Hugo havia deixado registrado esta peça restante em um caderninho onde há desenhos de todos os passos seguidos e faltantes para a recuperação do autômato.  Tal caderninho, certa vez, em um dos flagras de roubo de brinquedos de Hugo (que o fazia para tentar encontrar nas peças de brinquedos diversos, as faltantes ao autômato), é descoberto por Georges, o dono da loja de brinquedos da estação (Ben Kingsley). Logo que o homem folhea a caderneta, toma-a de Hugo e, mais tarde, tenta convencê-lo de que a transformara em cinzas, o que faz o menino ficar desalentado. 

    O desespero do menino pelo aniquilamento do caderninho dura poucos minutos, até Isabelle (Chloë Grace Moretz), a filha adotada de Georges, confessar-lhe que seu "papa" havia mentido a ele. A declaração reconfortante da menina abre espaço para aproximação maior de Hugo à ela - quem somente conhecia de vista na loja de brinquedos - e também para uma fiel amizade entre os dois. Isabelle, uma entusiasmada leitora de romances de aventura e igualmente amante dessa, logo interessa-se em confortar o garoto porque vê nos segredos e mistérios que acompanhavam a figura de Hugo - em função do enigmático caderno dele retido por Georges -, uma chance de viver como os personagens aventureiros dos livros que lia. Tem esses seus desejos materializados, já que o menino, para começar as aventuras, a leva para conhecer sua inusitada morada no alto de um relógio da estação e a permite ver um autômato não só escrevendo, mas desenhando. Na verdade, Isabelle é quem irá proporcionar que o autômato de Hugo volte a funcionar, pois eles descubrirão que ela traz no pescoço a chave da fechadura em formato coração; esta chavinha restante ao conjunto que simbolicamente traz o desenho de coração e dá movimento ao serzinho de metal (a representar a vida que faltava ali).

    Novamente em funcionamento, o autômato surpreende os garotos desenhando uma lua de rosto humano atingida no olho esquerdo por uma espécie de bala de revólver. A ilustração não é nada menos que a icônica cena de um dos poucos e lendários filmes restados (o Le Voyage dans la Lune, 1902) de Georges Méliès, ilusionista e cineasta francês da década de 30, famoso não só pela inventividade de efeitos de ilusão levado às telinhas, como também pela criação de mundos fantásticos ou de ainda possibilidades para os homens, como a própria ida à lua e às profundezas oceânicas. O "alquimista da luz", como o nomeava seu admirador Chaplin, ficou também lembrado pela frase: "Venha sonhar comigo", que acaba por resumir sua intenção e estilo de cinema.

     Então, com o desenho de uma cena de filme de Mélièrs e também a assinatura do mesmo, as crianças passam à descoberta de quem é o tal Georges Méliès e que relação tinha com o "papa" de Isabelle, já que ele tinha o mesmo nome do dono da loja de brinquedos da estação. Dirigem-se primeiro à "mãe" de Isabelle, Jeanne (Helen McCrory). A ela mostram o papel e questionam se a figura tem relação com seu marido. Jeanne, surpresa, ralha com eles e lhes pede que esqueçam o desenho e o assunto, além de exigir a eles que em hipótese alguma o mostre a Georges (que ficaria muito bravo se visse tal figura). As crianças a obedecem por alguns momentos, mas vão em busca de decifrar o mistério por outros meios. Acabam por visitarem uma biblioteca de cinema, por indicação de Monsieur Labisse (Christopher Lee), onde encontram um livro que, entre outras imagens, tem a da lua atingida pela bala. O livro conta a vida e a obra do cineasta e mágico francês Georges Méliès, e enquanto é folheado pelos garotos, em uma das cenas mais especiais do filme de Scorsese, são transmitidos alguns trechos de variados filmes de Méliès. Este volume foi escrito por um professor chamado Rene Tabard (Michael Stuhlbarg), quem se aproxima dos leitores no momento em que estão na biblioteca e é conhecido pelos meninos por causa de sua foto na última página do livro que têm em mãos. As crianças confidenciam a ele o motivo do interesse pelo livro e Tabard leva-os para conhecer seu museu particular de objetos e películas do mestre francês. Após a visita ao museu, Isabelle e Hugo o convence, com dificuldade, que seu mestre e muito admirado mágico cineasta ainda encontrava-se vivo, e pedem que vá visitá-lo um dia. Tabard, claro, aceita o que assemelhava-se já mais que um convite, era um desafio.

    Na casa de Méliès, a esposa do astro, avisa que Tabard não o poderá ver porque este se encontra muito triste e não desejoso de visitas. O professor se conforma, mas propõe a Jeanne que já que estava ali pelo menos o permitisse rodar um filme de Méliès - que será o Le Voyage dans la lune - a fim de poderem novamente se deliciarem com os universos de sonho e fantasia criados por Georges. Surpreendentemente, ao fim da transmissão do filme, Méliès, por ter ouvido o barulho do projetor de filme, junta-se a eles e alegra-se de ter um filme seu novamente em exibição; pensara que com a Grande Guerra não apenas tudo havia se perdido, como também as pessoas haviam se desinteressado pelos seus filmes. Pela recepção do mágico do cinema mudo, Tabard propõe uma sessão dos seus filmes na Academia de Cinema da qual era membro e um discurso público de Méliès na ocasião. Isso se realiza, dando novamente, ao espectador virtual e empírico, contato com os filmes do frânces. Assim termina o filme Hugo, de Scorsese.

     Voltanto à questão inicial deste texto, que, pelas epígrafes, referiu-se ao restabelecimento de própositos, notamos que o menino Hugo, na companhia de Isabelle, Jeanne e Tabard, de novo motivou o triste (ou à espera) Méliès a fazer o que deve fazer; a trabalhar de novo; a recuperar seu belo propósito: o de possibilitador de sonhos por meio das lentes (se não mais produzindo filmes, pelo menos revelando-os, dando-os ao conhecimento do público). Hugo, que neste gesto pode facilmente ser tomado por Scorsese, um cineasta que também trabalha com paixão pela recuperação de filmes antigos, - e é também o nome original do filme aqui em discussão -, sem dúvida é uma homenagem bela ao cinema e ao cineasta que foi Georges Méliès. Também o filme, reproduzindo com os efeitos mais modernos de hoje (maiormente o 3D) cenas como a do curta dos irmãos Lumière "A chegada do trem na estação", faz não só homenagem aos clássicos e pioneiros das lentes, mas permite ao espectador moderno, principalmente se assistindo o filme com os óculos 3D, o gostinho de reviver emoções como a do público de 1895, que diante do trem chegando na estação, apavorou-se, pensando que a máquina os atingiria em realidade.

   Um filme muito gostoso de ser visto, Hugo Cabret certamente agrada adultos e crianças, seja pelas aventuras que Hugo e os demais personagens vivem, com cor, som e cenários de fantasia, seja pelo prazer de estar novamente diante dos filmes incríveis de Georges Méliès. Scorsese, se se passando por Méliès, ou se apenas homenageando-o, fez o cinema, como o mágico queria, (re)produzir sonhos e conduzir seus espectadores a envolventes aventuras. Além de que, usando o alegórico autômato, robozinho tão cópia de humanos, que na história precisa ser consertado pois a sua pecinha de coração anda à espera de corda, vida, Scorsese, ou o seu narrador, assinala para o público a importância de estarmos "consertados", fazendo o que devemos fazer, com o nosso propósito bem firme e ativo. Realiza-se assim uma das maiores mensagens morais que se acha no filme na companhia de outras belas mais que volta e meia conseguimos flagrar nas cenas.

  Para os que ainda não conferiram a maravilha, deixo a minha entusiasmada recomendação. 
       
    Vamos sonhar com eles!

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