sábado, 20 de outubro de 2012

Sabedoria de Velório

por Gustavo Gitti 

    A gente não faz a mínima ideia de como lidar com a morte. [...] Ninguém sabe o que fazer. Ficamos ali perambulando, conversamos sobre qualquer coisa, rezamos, esboçamos algum ritual, batemos palma e enfim enterramos. Saímos do cemitério meio zonzos, sem saber direito o que aconteceu, como se tudo fosse um sonho. E depois vamos comer em alguma lanchonete.
    Mas nenhum lugar está preparado para ser um lugar de luto. Não há espaço para o reconhecimento do fim. Todos os locais são felizinhos demais. Igual Facebook, Twitter, Instagram. Entre placas de trânsito e anúncios de lingerie, o mundo não oferece nenhum lembrete assim: "Estaremos todos mortos daqui a pouco". Nosso desespero diante da morte é um grande sinal de nossa confusão na vida: não sabemos bem quem somos, por que sofremos.
    E por isso que considero aquela sala de velório um local raro e poderoso de contemplação. Quanto mais nos aproximamos do corpo no caixão, maior o silêncio, o embaraço. Juntamos as mãos em prece, deixamos as mãos no bolso, cruzamos os braços? A presença imóvel do morto é avassaladora. Remove todo o besteirol que estávamos construindo por dentro. Em vez de certezas, brotam medo e curiosidade. Somos obrigados a nos curvar diante do mistério que faz seres surgirem e se apagarem. Fica difícil dar uma de espertinho. O mínimo de exposição ao cheiro da morte já nos deixa mais humildes.
    Quando vamos apoiar familiares (como amigo ou namorado, por exemplo), o aprendizado pode ser maior. Para acompanhar o processo do outro, é preciso interromper nossas projeções e interpretações, soltar os músculos do rosto, relaxar a ponto de não rir nem chorar logo de saída, além de alegria e tristeza a priori, até apenas estar ali, sereno, presente. Não faz sentido empurrar nossas crenças espirituais. Melhor desistir de tentar saber o que fazer. Às vezes, tudo de que o outro menos precisa é alguém que reprima o luto tentando distraí-lo, consolá-lo - ou de alguém adicionando uma seriedade trágica ao sofrimento.
    Ao sair do cemitério, em todas as relações, eu queria ser capaz de manter essa postura amansada pela morte.

Texto disponível na edição 122 da revista Vida Simples, p. 72, na coluna Quarta Pessoa de Gustavo Gitti.

6 comentários:

Anônimo disse...

Texto incrível, Bruninha!
Não que a gente precise viver pensando na morte, mas ignorá-la de todo torna o ser tão medíocre e mesquinho...
Enquanto ela não chega-pra mim, ou você ou quem quer que seja- vamos seguir a marcha.
Abração, mocinha!
Chris

Bruna Caixeta disse...

Chris,
legal que tenha gostado do texto.

Dele, o que achei interessante foi a observação ao estado desconcertado, sério e amansado no qual a morte nos coloca.

Inevitavelmente, diante da morte, há um arrebatamento que nos deixa com outra postura, que pode ser de humildade, seriedade ou mesmo serenidade.

A morte, na perspectiva do Gitti, é mais um momento de grande aprendizado para comportamentos empregados em vida - daí a ideia e o título sabedoria de velório - ou cemitério.

E, Chris, de fato, enquanto ela não está presente - e, depois da sua presença também, quem sabe até mais ensinados -, continuemos a "seguir a marcha".

Um abraço, minha amiga.

Anônimo disse...

Seu comentário rendeu um posto, poderia ser publicado no blog, de tão esmerado! Tá cada vez escrevendo melhor!
Abração
Chris

Bruna Caixeta disse...

Ah, Chris, isso é lá comentário generoso de amiga, que põe olhos bons em tudo!... De qualquer forma, obrigada por ele.

Abração.

Lívio disse...

Bruna, quando meu pai morreu, uma coisa me chamou a atenção: o quanto enterramos rapidamente os mortos. Não que isso esteja errado. Afinal, com o corpo ali, fazer o quê?...

Mas mesmo ciente de que não há outra coisa a fazer, ficou marcada em mim a rapidez com que enterramos os mortos...

Bruna Caixeta disse...

Lívio,
interessante observação a sua, motivada pelo falecimento do seu pai - em razão do qual não deixo de prestar aqui e agora os meus pêsames.

Penso que a rapidez com que enterramos os mortos não deixa de ter um laivo de desconsideração (desconsideração? Não sei se isso é descaso exagerado demais para a ocasião, enfim, algo do tipo, ou parecido, mas mais brando, talvez). No entanto, acredito que o gesto rápido é, em profundeza, o melhor para o morto e para os que em vida continuam. Não sei por que, mas não consigo acreditar que seja algo bom, se prolongando ou duradouro - ainda que, emocionalmente, na maioria dos casos, desta forma desejam que seja os que eram mais próximos do falecido (e ainda que você não tenha sugerido o prologamento da morte ou das cerimônias que a acompanham).

E, depois, há de se considerar que a morte, analisada “laboratorialmente”, é mesmo um instante de egressão veloz da vida...