por Leonardo Avritzer. Carta Capital, 10/10/2012 | 10:48
O segundo semestre de 2012 estabeleceu uma conjugação de fatores que
irá marcar a política brasileira por um longo tempo. Iniciou-se sob a
égide do julgamento da ação penal 470, o escândalo do “mensalão”, que
poderia colocar em questão alguns pilares do sistema político
brasileiro, em especial a hegemonia do Partido dos Trabalhadores.
Setores da grande imprensa que já haviam feito forte pressão pela
coincidência entre as eleições e o julgamento sonhavam com um resgate do
ambiente político vivido em 2005. Ou seja, queriam que o julgamento
fosse um linchamento público do Partido dos Trabalhadores capaz de
alterar a relação do eleitorado com o partido que ganhou as três últimas
eleições presidenciais. Enganaram-se rotundamente.
Três fatos principais diferenciam a atual conjuntura daquela vivida em 2005.
Em primeiro lugar, o fato do ex-presidente Lula não só ter
sobrevivido ao escândalo como ter feito um excelente governo e
terminá-lo com índices inéditos de aprovação política. A aprovação do
governo Lula ao que parece não foi abalada pelo julgamento da ação
penal 470 e as tentativas de implicá-lo diretamente fracassaram.
Em segundo lugar, a conjuntura pós-2005 tem sido marcada pelo Partido
dos Trabalhadores ter consolidado uma identificação partidária em torno
de 20% das preferências, em torno da soma da preferência por todos os
outros partidos conjuntamente. Mais uma vez, a tentativa de tornar o
julgamento da ação penal 470 um julgamento do PT, ainda que apenas 3
entre os julgados tenham mandato neste momento, também parece ter
fracassado.
Em terceiro lugar, a conjuntura atual é diferente daquela de 2005,
porque todos os quatro grandes partidos brasileiros, o PT, o PSDB, o DEM
e o PMDB, estão envolvidos em escândalos de caixa 2, o que impede a
singularização do PT e coloca a questão da urgência da revisão da lei de
financiamento de campanha.
Os três fatos conjuntamente apontam para uma estratégia incorreta por
parte da oposição de voltar a 2005. Parte da imprensa se mostrou
incapaz de mobilizar a opinião pública. Dito isso, seria importante
analisar qual tem sido a relevância do julgamento para o controle da
corrupção e como pensar a configuração política que saiu das urnas no
último domingo.
Evidentemente que o “mensalão” definido tanto como caixa dois quanto
como compra de apoio político (já que a compra de votos no Congresso
Nacional não ficou comprovada e foi deixada de lado por quase todos os
ministros do STF em seus votos) foi um erro e implicou em crimes que
teriam que ser julgados. Vale a pena, porém, deixar claro dois elementos
do “mensalão” completamente esquecidos pela cobertura da grande
imprensa.
Em primeiro lugar, o “mensalão” foi um escândalo de um núcleo
bastante importante, porém bastante delimitado no primeiro governo Lula
que podemos chamar da máquina política petista. Nos 15 dias que se
seguiram ao “mensalão” Lula descentralizou o seu governo deste núcleo e
nacionalizou-o em torno de figuras como Tarso Genro, Patrus Ananias,
Fernando Haddad, Dilma Roussef e Jaques Wagner. Aqui se encontra o
segredo do sucesso do governo Lula: a separação entre governo e máquina
petista. Eis onde se encontra a raiz do sucesso do PT na última década.
Entre os nomes que compuseram a reorganização do núcleo político do
governo Lula, um (Dilma) se tornou presidente, dois se tornaram
governadores (Genro e Wagner) e dois foram candidatos a prefeito, um
deles podendo se tornar o novo prefeito da cidade de São Paulo (Haddad).
Todos eles acabaram reconhecidos como excelentes administradores, além
de políticos de excelente quilate. Assim, não há como identificar o
núcleo político do “mensalão” com a estrutura do Partido dos
Trabalhadores, esta última muito mais ampla que os membros do esquema
político envolvido no escândalo. Talvez esse último fenômeno muito pouco
entendido pela grande imprensa seja o mais importante. É com base nele
que irei em primeiro lugar, analisar os resultados da última eleições
para posteriormente fazer alguns comentários sobre o julgamento.
As eleições do último domingo se inserem em um
processo de consolidação da democracia brasileira no qual o PT e o PSDB
se tornaram os principais partidos no país tem se revezado no executivo
federal desde 1994.
Cada um tem suas características: o PSDB tem forte concentração em
São Paulo, e presença forte ainda que mais contestada em Minas Gerais
(onde ele ganhou eleição em BH mas perdeu em oito dos dez principais
colégios eleitorais do estado) e no Ceará. O principal problema do PSDB é
a sua nacionalização, em especial quando se vê a decadência de longo
prazo dos Democratas que tiveram um desempenho pífio nesta eleição
(venceram em Aracaju e foram ao segundo turno em Salvador, mas perderam
mais da metade das suas prefeituras).
Ao mesmo tempo, o PT começou a seu crescimento através de prefeituras
de capitais e cidades de médio porte nas regiões Sul e Sudeste. Apenas
nas eleições de 2004, o PT teve um crescimento significativo fora destas
duas regiões e a partir daí se torna uma força política nas eleições
das capitais do Nordeste. As eleições do dia 07 de outubro mostram uma
continuidade relativa deste quadro: o PT segue forte em capitais da
região Nordeste, em especial em Salvador e Fortaleza, se recuperou na
cidade de São Paulo e obteve importantes vitórias em cidades de grande
porte nas regiões Sul e Sudeste do país, Osasco, São Bernardo do Campo,
Guarulhos, Canoas, Rio Grande, Bagé, Ipatinga, Governador Valadares,
além de estar bem colocado para o segundo turno em cidades como Juiz de
Fora, Campinas, Santo Andre, Contagem, entre outras.
Assim, percebemos um fenômeno importante completamente ignorado no
atual debate: o PT não só nunca se reduziu ao grupo de pessoas que se
encontra em julgamento na ação penal 470, como, pelo contrário, os
setores não envolvidos são aqueles responsáveis pelo sucesso do governo
Lula e pelo sucesso do PT nas eleições de 2012. É neste contexto de
separação relativa entre o PT e sua máquina política até o ano de 2005,
que devemos avaliar o julgamento da ação penal 470.
O julgamento do ‘mensalão’ se insere no núcleo do
atual processo de judicialização em curso no Brasil e no mundo. Se
tomarmos a definição mais importante de judicialização, aquela defendida
por Tate and Vallinder, ela comporta dois elementos: a mudança de
posição entre poder legislativo e poder judiciário com um reforço da
capacidade de decisão do judiciário em relação aos membros do sistema
político em geral e, em segundo lugar, o aumento da influência da método
jurídico de decisão, baseado na lei e nas evidências empíricas. É neste
ponto que podemos perceber o que há de mais estranho na ação penal 470:
ela certamente contempla o primeiro ponto, ou seja ela significa mais
uma vez o reforço do poder político do judiciário que vem ocorrendo
desde 1988 e tem muitos elementos significativos no que diz respeito à
ampliação de direitos ou ao controle do legislativo.
No entanto, o comportamento do STF no julgamento do mensalão não
significou um reforço da forma jurídica de decisão. Principalmente nos
casos limite, os do ex-deputado João Paulo e do ex-presidente do PT José
Genoino, o que temos visto é o contrário: uma enorme politização do
judiciário com aspectos claros de julgamento político baseado em meras
opiniões.
Muitas vezes temos visto também um julgamento moral do sistema
político brasileiro por pessoas que não entendem ou entendem muito mal o
seu funcionamento. Ficamos, assim, no meio do caminho no que diz
respeito ao terceiro tópico deste artigo que é o combate à corrupção:
ele constitui um pólo importante da política brasileira mas, ao mesmo
tempo, este polo só irá se estabelecer com força se o judiciário em
geral, e o STF em particular, não sucumbirem à inclinação de
partidarização do sistema de justiça no Brasil.
Tal fato se tornará claro nos próximos meses quando entrarão em
julgamento processos por corrupção que envolvem o PSDB e o DEM. O
resultado desses processos irá determinar o momento em que vivemos na
democracia brasileira. Se ele está marcado pela judicialização da
política com ampliação de direitos ou se ele está marcado pela
politização do judiciário com o objetivo de demonizar a principal força
política existente no Brasil neste momento.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-julgamento-do-mensalao-as-eleicoes-municipais-e-o-controle-da-corrupcao-no-brasil/
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