segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A cessão de cotas como discurso de dominação

    A Revolução Cultural Chinesa de 1966, com todos os erros e crimes de que só tivemos ciência anos depois, despertou nos meios ocidentais de esquerda grande fascínio: a sua principal proposta era acabar com a opressão do trabalho manual pelo intelectual. Jacques Rancière escreveu textos notáveis a respeito. Todo intelectual, na China, era obrigado a passar um mês por ano trabalhando com as mãos como forma de se despojar dos preconceitos contra os não-intelectuais. Essa lei, hoje revogada, pode parecer bastante autoritária, mas não há diferença de natureza entre ela e as reservas de vagas, nas universidades americanas, a estudantes negros, ainda que de nível intelectual inferior a seus concorrentes brancos. Nos anos 60 e começo dos 70 difundiu-se a convicção de que não era justo o branco liberal falar pelo negro, o homem de mente aberta pela mulher, o europeu progressista pelo africano ou asiático; mas que era preciso reconhecer, a esses oprimidos, o direito de usarem a própria voz, ainda e sobretudo quando errassem. Afinal de contas o acerto resultava já de um acesso ao saber desde muito tempo monopolizado pela mesma classe social; portanto, se fosse preciso ter sempre o discurso adequado, este, mesmo que marxista, conservaria a dominação pelos detentores do discurso. Ou, por outra: menos importante do que o conteúdo do discurso, era quem o proferia. O discurso deixava de apontar simplesmente para o seu referente, na transparência - passava-se a ver como ele tinha investimentos ocultos, encobertos, de dominação. Um discurso marxista, revolucionário, enquanto fosse monopolizado por intelectuais de origem aristocrática ou burguesa, o que significaria de fato? Essa pergunta, e esse ceticismo, ficaram. Não é possível mais ler o discurso político com ingenuidade. O que não ficou foi a crença nas soluções do tipo maoísta. As cem flores, a revolução cultural funcionaram muito menos do que se supôs.

RIBEIRO, Renato Janine. "Apresentação". In: HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia das Letras, 1987; p. 17.  

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