domingo, 12 de agosto de 2012

Um caso dos "inextrincáveis fios da urdidura moral"

   Quando Mário deixou Benedito junto ao tronco do ipê, ele soltara estas palavras que revelavam no meio de suas tristes preocupações a travessura infantil.
   - Vou brincar sozinho.
   Não era natural que o preto velho deixasse Mário ir-se dele, em disposições de espírito bem próprias para inquietá-lo. Se Benedito obedecesse ao impulso de sua alma, sem dúvida acompanharia o menino, para distraí-lo de tão negros pensamentos, e evitar que, absorvido como ia, fosse vítima de algum desastre.
   O negro porém sabia, desde muito, o que significava na boca do menino aquele simples desejo expresso em breves palavras. Era uma vontade inabalável, da qual não havia meio de demovê-lo. Esse jovem espírito sentia já naqueles primeiros anos, de ordinário tão despreocupados, a necessidade invencível da solidão, que é para a alma a sombra depois do sol, o descanso depois da luta, o abrigo depois do perigo.
   Durante a maior parte do dia sofre o corpo a coação que lhe impõe o trajo e a polidez; carece por fim de sentir-se à larga, de se espreguiçar no leito, e de estender os músculos por muito tempo contraídos. A alma, igualmente tolhida pela prática e atenção dos estranhos, carece também como o corpo desses espreguiçamentos íntimos, de uma expansão franca. Para isso procura um refúgio. A solidão é a alcova para a alma.
   Não era contudo esta necessidade moral o único móvel, que levava o menino a isolar-se nesses lugares.
   Fora aquele o teatro da catástrofe que arrebatara seu pai de uma maneira tão imprevista e para ele inexplicável. O menino não compreendia como um cavaleiro dirigindo-se à Casa Grande, pudesse por engano desviar-se do caminho e precipitar-se no boqueirão; tanto mais quanto esse cavaleiro era um homem nascido e criado naqueles lugares, conhecendo perfeitamente a lagoa e os arredores.
   Além de que na tradição do fato havia muito de vago e incerto. Notavam-se lacunas, que de ordinário procuravam preencher com suposições e conjeturas mais ou menos inverossímeis. Mário por vezes havia insistido com as pessoas que se diziam mais informadas da catástrofe; e nenhuma o satisfizera, nem mesmo Benedito, talvez de todos o que mais sabia, porém o que mais reservado se mostrava.
   Uma circunstância ocorreu, que deixou no espírito do menino terrível suspeita. 
   Tempos depois da catástrofe, veio à fazenda um irmão de D. Francisca, morador na Estrela, onde era procurador de causas e meio rábula. A viúva lhe escrevera por vezes insistindo sobre a necessidade que tinha de falar-lhe. O Sr. Juvêncio levara dois anos a resolver-se: mas afinal sempre fez a prometida visita.
   Mário tinha então sete anos, e assistiu a uma parte da conferência dos dois irmãos, que vendo-o entretido a brincar com um carrinho de cuia, não pensaram que lhes desse atenção.
   - Donde lhe veio esta desconfiança? perguntou o rábula.
   - Já lhe contei que meu marido foi chamado pelo pai e esteve com ele muitas noites seguidas sem que ninguém o soubesse, senão Benedito. Uma vez, quando voltava, achando-me a trabalhar, ralhou comigo: "porque não era preciso matar-me agora que a fortuna ia mudar e nós íamos ser ricos outra vez". Está-se vendo que o comendador tinha-lhe prometido deixar tudo.
   - Não digo o contrário.
   - Na véspera meu marido levou todo o dia a fazer contas e até por sinal deixou em cima da mesa um papel que eu conservei. Olhe!...
   D. Francisca tirou do seio uma folha de papel já amarelado, sobretudo nas dobras; e o deu ao procurador para examiná-la.
   - No dia seguinte amanheceu meu marido morto, de uma maneira que não se explica; e toda a riqueza do comendador passou para os estranhos.
   - Para os credores!
   A viúva sorriu amargamente:
   - De que ninguém tinha notícia!
   - Mana, disse o rábula com importância: tome o meu conselho: esqueça-se disso. No fim de contas você ainda foi muito feliz em achar um homem caridoso como o barão que a protege e a seu filho. Não tente a Deus!
   D. Francisca tomou o conselho do irmão: e nunca mais falou de suas desconfianças. Quando mais tarde Mário a interrogou a esse respeito, ela espavorida procurou apagar a lembrança de suas palavras no espírito do menino.
   Mas não conseguiu. A suspeita filtrara profundamente naquela alma.
   Cansado de inquerir os homens debalde, passou o sôfrego menino, já então na idade de doze anos, a interrogar a natureza inanimada, os objetos materiais, que foram testemunhas da morte de seu pai. Começou desde então a luta heroica e admirável da criança contra as asperezas do sítio agreste e rude.
   Debalde os rochedos erriçavam suas fragas e alcantis, como puas terríveis, ou abriam suas gargantas profundas e medonhas para sumir imprudente, cujo pé deslizasse à borda do precipício. Debalde o lago sombrio, povoado dos fantasmas que a tradição fazia vagar por suas margens, envolvia-se, como em um sudário, na solidão fria e glacial, exalando pelas fendas do penhasco o lúgubre estertor do redemoinho, a se estorcer em convulsões. Debalde pululava aí sob aquela vegetação linfática, a geração abundante de medonhos répteis, que sempre nos climas tropicais, o consórcio da água profunda com o rochedo cavernoso.
   Nenhuma dessas ameaças do ermo, nenhuma dessas cóleras da natureza selvagem, fez recuar o menino.
   Ele avançava, hesitando, é verdade; seu coração batia mais apressado; seus olhos inquietos moviam-se com extrema mobilidade de um a outro lado; frequentemente voltava a cabeça imaginando que um perigo qualquer o seguia passo a passo e estava prestes a cair-lhe sobre. As vezes parava para escutar os rumores indefiníveis da floresta, essa voz estranha que toma quase ao mesmo tempo todos os tons, desde o gemido até o grito humano, desde o zumbir do inseto até o rugir do tigre, desde a gota que borbulha até à catadupa que ribomba.
   Mas a pouco e pouco, Mário foi-se familiarizando com essas ilusões do ermo, verdadeiras miragens da floresta; com a diferença que as miragens dos desertos da Arábia são produzidos pela luz; e as miragens de nossas matas virgens são o efeito da sombra nas horas mais esplêndidas desse clima brilhante.
   Um perigo vencido é um degrau que sobe a alma do homem, e do alto do qual olha sobranceira as misérias que lhe vão ficando abaixo dos pés; é um apoio que se firma para arrojar-se avante. À medida que Mário afrontava a bruteza daquele sítio escabroso, sentia-se mais forte; a têmpera de sua alma apurava-se no atrito daquelas penhas broncas e porventura tomava a seu contato alguma cousa de ríspido e áspero.
   O desenvolvimento físico de seu organismo apurava esse crisol do espírito. O corpo adquiria mais vigor e robustez que punha ao serviço das audácias de uma curiosidade infantil.
   Mário conhecia todo o rochedo pelo direito como pelo avesso. [...] 
   O lago, apesar do terror de que o cercava a tradição, não escapou às investigações de Mário. Para ali sobretudo, para a voragem medonha, o arrastava sua ardente curiosidade. Aquela água, onde se tinha submergido o corpo de seu pai, talvez guardasse ainda o segredo da catástrofe.
   O menino sabia nadar; muitas vezes tinha experimentado  suas forças no Paraíba, cortando-lhe a veia; mas a correnteza do rio, ainda mesmo no tempo das enchentes, era suave em comparação com o torvelinho do lago. Aqui a água tinha um eixo em torno do qual volvia com a velocidade do tufão.
   A princípio Mário arriscou-se unicamente nos lugares, onde o lago se espraiava, e a rotação das águas era ainda lenta, embora pesada. Circulou essas orlas do abismo, provando forças, e habituando-se a resistir ao ímpeto da corrente. Mais tarde, protegido por uma corda segura à margem do lago, sondou o redemoinho. Da primeira vez pareceu-lhe que o rodavam vivo. A onda agarrou-o como uma folha seca, e envolvendo-lhe o corpo levou-o ao fundo do abismo donde o vomitou atordoado.
   Graças ao apoio da corda, e por um supremo esforço, pôde Mário ganhar a margem, onde se atirou extenuado; mas a luta se travara entre aquele menino audaz e aquele abismo terrível; um deles devia triunfar e vencer o outro, ou o abismo havia de devorar o menino, ou o menino submeteria o abismo e zombaria de sua cólera.
    Mário triunfou. Como o rochedo, o lago recebeu seu jugo. [...]
    Toda essa luta porém fora inútil. O lago, o rochedo, a floresta, se conservaram mudos. Mário não encontrou o menor traço da catástrofe que passara pela solidão sem deixar o menor vestígio. Se algum porventura havia ficado, os onze anos decorridos o tinham completamente desvanecido.
    Contudo o menino não desanimava; uma esperança vaga, que, se às vezes amortecia, nunca extinguia-se de todo, o alimentava. Parecia-lhe que o mistério ali estava palpitante no seio da solidão; às vezes julgava ouvir-lhe as pulsações; mas alguma cousa o subtraía a sua curiosidade. O menino acreditava que, avançando na idade, sua razão mais vigorosa descobria aí mesmo, o que tinha escapado ao sei espírito de quinze anos.
   [...]
   Naquele fatal dia 15 de janeiro, já marcado pelo selo da desgraça na história de sua família, e destinado ainda para tão tristes acontecimentos; naquele dia, Mário, deixando seu bom e velho amigo, ganhou sob o peso das tristes preocupações a margem do rio que lambia naquela paragem as faldas do rochedo.
   - Benedito diz que estou enganado. Se ele soubesse o que eu ouvi? Queria contar-lhe; mas para quê? Não acreditará...Ou talvez acredite, e esconda de mim!...
   Mário subindo automaticamente pelo rochedo, foi ter à ponta que se projetava sobre o redemoinho. [...] Algum tempo depois de ali chegado, lançando os olhos para o redemoinho, viu uma sombra refletir-se nele; e reconheceu Alice.
   A princípio Mário não sentiu mais do que a surpresa de ver a menina próxima daquele lugar, donde a deveriam afastar as ordens do barão e os cuidados das pessoas que o acompanhavam. Reparando porém na insistência com que Alice permanecia no lugar; na tenacidade de seu olhar fixo no torvelinho das águas, compreendeu que a menina era naquele momento presa da vertigem. 
   Outrora, quando mais criança, no começo de suas excursões, ele também sofrera esse encanto poderoso da sereia, que o fascinava e atraía irresistivelmente ao fundo do abismo. Para vencer a alucinação, o menino de propósito afrontou a vertigem, uma e muitas vezes, até que se acostumou a dominá-la.
   Mário, conhecendo a força de atração do abismo, imaginou que Alice ia precipitar-se; o seu primeiro impulso foi chamá-la e preveni-la; mas ele tinha às vezes instintiva repugnância por essa menina, a quem envolvia na aversão que votava ao barão e a quanto lhe pertencia.   
   Nisso, por um fenômeno muito natural nos momentos de emoção, as impressões atuais se travaram e confundiram com as recordações do passado, produzindo uma espécie de nimbo moral, meio visão, meio realidade. Desenhou-se em sua imaginação, como uma lampejo, a cena da morte de seu pai, tragado pela voragem, enquanto o barão de pé, na margem, sorria com orgulho. No fundo desse quadro, como fantasia do menino via Alice por sua vez tragada pelo boqueirão; na margem, o barão sucumbindo ao peso de tamanha desgraça, e ele, Mário, em pé sobre o rochedo, sorrindo-se como o anjo da vingança.
    Nesse momento, ouviu-se o soluço profundo da onda. Alice, atraída pela vertigem, acabava de precipitar-se.
    O abalo que sofreu Mário vendo desaparecer o corpo de Alice, espancou de seu espírito a visão, para mostrar-lhe a realidade. Havia nesse menino um coração precoce como seu espírito, já capaz dos grandes ódios, como dos rasgos de heroísmo.
   Diante da catástrofe ele esqueceu quem era a vítima, para só lembrar-se que uma vida corria perigo. A ideia de vingança, que afagara em um instante de cisma, agora o enchia de horror. Como pudera associar uma memória querida à desgraça de outrem?
   Por isso o nome do pai lhe viera aos lábios, como um grito de perdão e ao mesmo tempo uma santa invocação, no momento em que ele se arrojava no redemoinho para salvar Alice, ou talvez morrer.
   [...]
   Naquela ocasião porém, a vida de Alice era presa para Mário; pertencia-lhe como cousa sua; ele a disputara ao abismo, à morte; e tinha-a afinal conquistado com uma coragem que o elevava perante a consciência. Essa existência arrancada ao boqueirão era o complemento de seu esforço; o remate de sua obra; a palma de seu triunfo. Sem ela, sua ação ficava truncada, sua vitória mutilada; ele teria salvado, embora com risco de vida, um cadáver apenas, um despojo inútil.
   Como os conquistadores antigos, de que ele falava o seu Plutarco, ele carecia de um troféu; e esse troféu era Alice viva, e o barão humilhado no auge mesmo de sua felicidade, na viva expansão de seu amor paterno.
    Imagine-se pois qual devia ser o seu abalo e irritação vendo a morte furtar-lhe perfidamente, de uma maneira vil e indigna, essa existência que ele havia arrebatado de suas garras em luta franca, rosto a rosto! Que tropel de pensamentos lhe tumultuavam no cérebro, lutando para arrojar-se em borbotões! Às vezes eram ímpetos de indignação contra o acontecimento que o espoliava de seu triunfo. Outras vezes eram ideias loucas de ressuscitar o cadáver, transmitindo-lhe metade da própria existência.
   Que inextrincáveis são os fios dessa urdidura moral, com que se tecem as paixões humanas!
  Esse menino inacessível à compaixão, indiferente ao sofrimento alheio, encerrado no frio egoísmo que formava um orgulho desmedido, essa aberração da infância, acabava de expor a vida, e daria sem hesitar metade dessa vida, para salvar uma criatura de sua aversão!

ALENCAR, José de. O tronco do ipê. In: [Uma de suas antigas Obras Completas (livro de capa dura, branco com verde, que não traz data, nem editora e reúne O Gaúcho e O Tronco do ipê] , pp. 199-208.   (Capítulos XVI e XVII) 

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