Quando Mário deixou Benedito junto ao tronco do ipê, ele soltara estas palavras que revelavam no meio de suas tristes preocupações a travessura infantil.
- Vou brincar sozinho.
Não era natural que o preto velho deixasse Mário ir-se dele, em disposições de espírito bem próprias para inquietá-lo. Se Benedito obedecesse ao impulso de sua alma, sem dúvida acompanharia o menino, para distraí-lo de tão negros pensamentos, e evitar que, absorvido como ia, fosse vítima de algum desastre.
O negro porém sabia, desde muito, o que significava na boca do menino aquele simples desejo expresso em breves palavras. Era uma vontade inabalável, da qual não havia meio de demovê-lo. Esse jovem espírito sentia já naqueles primeiros anos, de ordinário tão despreocupados, a necessidade invencível da solidão, que é para a alma a sombra depois do sol, o descanso depois da luta, o abrigo depois do perigo.
Durante a maior parte do dia sofre o corpo a coação que lhe impõe o trajo e a polidez; carece por fim de sentir-se à larga, de se espreguiçar no leito, e de estender os músculos por muito tempo contraídos. A alma, igualmente tolhida pela prática e atenção dos estranhos, carece também como o corpo desses espreguiçamentos íntimos, de uma expansão franca. Para isso procura um refúgio. A solidão é a alcova para a alma.
Não era contudo esta necessidade moral o único móvel, que levava o menino a isolar-se nesses lugares.
Fora aquele o teatro da catástrofe que arrebatara seu pai de uma maneira tão imprevista e para ele inexplicável. O menino não compreendia como um cavaleiro dirigindo-se à Casa Grande, pudesse por engano desviar-se do caminho e precipitar-se no boqueirão; tanto mais quanto esse cavaleiro era um homem nascido e criado naqueles lugares, conhecendo perfeitamente a lagoa e os arredores.
Além de que na tradição do fato havia muito de vago e incerto. Notavam-se lacunas, que de ordinário procuravam preencher com suposições e conjeturas mais ou menos inverossímeis. Mário por vezes havia insistido com as pessoas que se diziam mais informadas da catástrofe; e nenhuma o satisfizera, nem mesmo Benedito, talvez de todos o que mais sabia, porém o que mais reservado se mostrava.
Uma circunstância ocorreu, que deixou no espírito do menino terrível suspeita.
Tempos depois da catástrofe, veio à fazenda um irmão de D. Francisca, morador na Estrela, onde era procurador de causas e meio rábula. A viúva lhe escrevera por vezes insistindo sobre a necessidade que tinha de falar-lhe. O Sr. Juvêncio levara dois anos a resolver-se: mas afinal sempre fez a prometida visita.
Mário tinha então sete anos, e assistiu a uma parte da conferência dos dois irmãos, que vendo-o entretido a brincar com um carrinho de cuia, não pensaram que lhes desse atenção.
- Donde lhe veio esta desconfiança? perguntou o rábula.
- Já lhe contei que meu marido foi chamado pelo pai e esteve com ele muitas noites seguidas sem que ninguém o soubesse, senão Benedito. Uma vez, quando voltava, achando-me a trabalhar, ralhou comigo: "porque não era preciso matar-me agora que a fortuna ia mudar e nós íamos ser ricos outra vez". Está-se vendo que o comendador tinha-lhe prometido deixar tudo.
- Não digo o contrário.
- Na véspera meu marido levou todo o dia a fazer contas e até por sinal deixou em cima da mesa um papel que eu conservei. Olhe!...
D. Francisca tirou do seio uma folha de papel já amarelado, sobretudo nas dobras; e o deu ao procurador para examiná-la.
- No dia seguinte amanheceu meu marido morto, de uma maneira que não se explica; e toda a riqueza do comendador passou para os estranhos.
- Para os credores!
A viúva sorriu amargamente:
- De que ninguém tinha notícia!
- Mana, disse o rábula com importância: tome o meu conselho: esqueça-se disso. No fim de contas você ainda foi muito feliz em achar um homem caridoso como o barão que a protege e a seu filho. Não tente a Deus!
D. Francisca tomou o conselho do irmão: e nunca mais falou de suas desconfianças. Quando mais tarde Mário a interrogou a esse respeito, ela espavorida procurou apagar a lembrança de suas palavras no espírito do menino.
Mas não conseguiu. A suspeita filtrara profundamente naquela alma.
Cansado de inquerir os homens debalde, passou o sôfrego menino, já então na idade de doze anos, a interrogar a natureza inanimada, os objetos materiais, que foram testemunhas da morte de seu pai. Começou desde então a luta heroica e admirável da criança contra as asperezas do sítio agreste e rude.
Debalde os rochedos erriçavam suas fragas e alcantis, como puas terríveis, ou abriam suas gargantas profundas e medonhas para sumir imprudente, cujo pé deslizasse à borda do precipício. Debalde o lago sombrio, povoado dos fantasmas que a tradição fazia vagar por suas margens, envolvia-se, como em um sudário, na solidão fria e glacial, exalando pelas fendas do penhasco o lúgubre estertor do redemoinho, a se estorcer em convulsões. Debalde pululava aí sob aquela vegetação linfática, a geração abundante de medonhos répteis, que sempre nos climas tropicais, o consórcio da água profunda com o rochedo cavernoso.
Nenhuma dessas ameaças do ermo, nenhuma dessas cóleras da natureza selvagem, fez recuar o menino.
Ele avançava, hesitando, é verdade; seu coração batia mais apressado; seus olhos inquietos moviam-se com extrema mobilidade de um a outro lado; frequentemente voltava a cabeça imaginando que um perigo qualquer o seguia passo a passo e estava prestes a cair-lhe sobre. As vezes parava para escutar os rumores indefiníveis da floresta, essa voz estranha que toma quase ao mesmo tempo todos os tons, desde o gemido até o grito humano, desde o zumbir do inseto até o rugir do tigre, desde a gota que borbulha até à catadupa que ribomba.
Mas a pouco e pouco, Mário foi-se familiarizando com essas ilusões do ermo, verdadeiras miragens da floresta; com a diferença que as miragens dos desertos da Arábia são produzidos pela luz; e as miragens de nossas matas virgens são o efeito da sombra nas horas mais esplêndidas desse clima brilhante.
Um perigo vencido é um degrau que sobe a alma do homem, e do alto do qual olha sobranceira as misérias que lhe vão ficando abaixo dos pés; é um apoio que se firma para arrojar-se avante. À medida que Mário afrontava a bruteza daquele sítio escabroso, sentia-se mais forte; a têmpera de sua alma apurava-se no atrito daquelas penhas broncas e porventura tomava a seu contato alguma cousa de ríspido e áspero.
O desenvolvimento físico de seu organismo apurava esse crisol do espírito. O corpo adquiria mais vigor e robustez que punha ao serviço das audácias de uma curiosidade infantil.
Mário conhecia todo o rochedo pelo direito como pelo avesso. [...]
O lago, apesar do terror de que o cercava a tradição, não escapou às investigações de Mário. Para ali sobretudo, para a voragem medonha, o arrastava sua ardente curiosidade. Aquela água, onde se tinha submergido o corpo de seu pai, talvez guardasse ainda o segredo da catástrofe.
O menino sabia nadar; muitas vezes tinha experimentado suas forças no Paraíba, cortando-lhe a veia; mas a correnteza do rio, ainda mesmo no tempo das enchentes, era suave em comparação com o torvelinho do lago. Aqui a água tinha um eixo em torno do qual volvia com a velocidade do tufão.
A princípio Mário arriscou-se unicamente nos lugares, onde o lago se espraiava, e a rotação das águas era ainda lenta, embora pesada. Circulou essas orlas do abismo, provando forças, e habituando-se a resistir ao ímpeto da corrente. Mais tarde, protegido por uma corda segura à margem do lago, sondou o redemoinho. Da primeira vez pareceu-lhe que o rodavam vivo. A onda agarrou-o como uma folha seca, e envolvendo-lhe o corpo levou-o ao fundo do abismo donde o vomitou atordoado.
Graças ao apoio da corda, e por um supremo esforço, pôde Mário ganhar a margem, onde se atirou extenuado; mas a luta se travara entre aquele menino audaz e aquele abismo terrível; um deles devia triunfar e vencer o outro, ou o abismo havia de devorar o menino, ou o menino submeteria o abismo e zombaria de sua cólera.
Mário triunfou. Como o rochedo, o lago recebeu seu jugo. [...]
Toda essa luta porém fora inútil. O lago, o rochedo, a floresta, se conservaram mudos. Mário não encontrou o menor traço da catástrofe que passara pela solidão sem deixar o menor vestígio. Se algum porventura havia ficado, os onze anos decorridos o tinham completamente desvanecido.
Contudo o menino não desanimava; uma esperança vaga, que, se às vezes amortecia, nunca extinguia-se de todo, o alimentava. Parecia-lhe que o mistério ali estava palpitante no seio da solidão; às vezes julgava ouvir-lhe as pulsações; mas alguma cousa o subtraía a sua curiosidade. O menino acreditava que, avançando na idade, sua razão mais vigorosa descobria aí mesmo, o que tinha escapado ao sei espírito de quinze anos.
[...]
Naquele fatal dia 15 de janeiro, já marcado pelo selo da desgraça na história de sua família, e destinado ainda para tão tristes acontecimentos; naquele dia, Mário, deixando seu bom e velho amigo, ganhou sob o peso das tristes preocupações a margem do rio que lambia naquela paragem as faldas do rochedo.
- Benedito diz que estou enganado. Se ele soubesse o que eu ouvi? Queria contar-lhe; mas para quê? Não acreditará...Ou talvez acredite, e esconda de mim!...
Mário subindo automaticamente pelo rochedo, foi ter à ponta que se projetava sobre o redemoinho. [...] Algum tempo depois de ali chegado, lançando os olhos para o redemoinho, viu uma sombra refletir-se nele; e reconheceu Alice.
A princípio Mário não sentiu mais do que a surpresa de ver a menina próxima daquele lugar, donde a deveriam afastar as ordens do barão e os cuidados das pessoas que o acompanhavam. Reparando porém na insistência com que Alice permanecia no lugar; na tenacidade de seu olhar fixo no torvelinho das águas, compreendeu que a menina era naquele momento presa da vertigem.
Outrora, quando mais criança, no começo de suas excursões, ele também sofrera esse encanto poderoso da sereia, que o fascinava e atraía irresistivelmente ao fundo do abismo. Para vencer a alucinação, o menino de propósito afrontou a vertigem, uma e muitas vezes, até que se acostumou a dominá-la.
Mário, conhecendo a força de atração do abismo, imaginou que Alice ia precipitar-se; o seu primeiro impulso foi chamá-la e preveni-la; mas ele tinha às vezes instintiva repugnância por essa menina, a quem envolvia na aversão que votava ao barão e a quanto lhe pertencia.
Nisso, por um fenômeno muito natural nos momentos de emoção, as impressões atuais se travaram e confundiram com as recordações do passado, produzindo uma espécie de nimbo moral, meio visão, meio realidade. Desenhou-se em sua imaginação, como uma lampejo, a cena da morte de seu pai, tragado pela voragem, enquanto o barão de pé, na margem, sorria com orgulho. No fundo desse quadro, como fantasia do menino via Alice por sua vez tragada pelo boqueirão; na margem, o barão sucumbindo ao peso de tamanha desgraça, e ele, Mário, em pé sobre o rochedo, sorrindo-se como o anjo da vingança.
Nesse momento, ouviu-se o soluço profundo da onda. Alice, atraída pela vertigem, acabava de precipitar-se.
O abalo que sofreu Mário vendo desaparecer o corpo de Alice, espancou de seu espírito a visão, para mostrar-lhe a realidade. Havia nesse menino um coração precoce como seu espírito, já capaz dos grandes ódios, como dos rasgos de heroísmo.
Diante da catástrofe ele esqueceu quem era a vítima, para só lembrar-se que uma vida corria perigo. A ideia de vingança, que afagara em um instante de cisma, agora o enchia de horror. Como pudera associar uma memória querida à desgraça de outrem?
Por isso o nome do pai lhe viera aos lábios, como um grito de perdão e ao mesmo tempo uma santa invocação, no momento em que ele se arrojava no redemoinho para salvar Alice, ou talvez morrer.
[...]
Naquela ocasião porém, a vida de Alice era presa para Mário; pertencia-lhe como cousa sua; ele a disputara ao abismo, à morte; e tinha-a afinal conquistado com uma coragem que o elevava perante a consciência. Essa existência arrancada ao boqueirão era o complemento de seu esforço; o remate de sua obra; a palma de seu triunfo. Sem ela, sua ação ficava truncada, sua vitória mutilada; ele teria salvado, embora com risco de vida, um cadáver apenas, um despojo inútil.
Como os conquistadores antigos, de que ele falava o seu Plutarco, ele carecia de um troféu; e esse troféu era Alice viva, e o barão humilhado no auge mesmo de sua felicidade, na viva expansão de seu amor paterno.
Imagine-se pois qual devia ser o seu abalo e irritação vendo a morte furtar-lhe perfidamente, de uma maneira vil e indigna, essa existência que ele havia arrebatado de suas garras em luta franca, rosto a rosto! Que tropel de pensamentos lhe tumultuavam no cérebro, lutando para arrojar-se em borbotões! Às vezes eram ímpetos de indignação contra o acontecimento que o espoliava de seu triunfo. Outras vezes eram ideias loucas de ressuscitar o cadáver, transmitindo-lhe metade da própria existência.
Que inextrincáveis são os fios dessa urdidura moral, com que se tecem as paixões humanas!
Esse menino inacessível à compaixão, indiferente ao sofrimento alheio, encerrado no frio egoísmo que formava um orgulho desmedido, essa aberração da infância, acabava de expor a vida, e daria sem hesitar metade dessa vida, para salvar uma criatura de sua aversão!
ALENCAR, José de. O tronco do ipê. In: [Uma de suas antigas Obras Completas (livro de capa dura, branco com verde, que não traz data, nem editora e reúne O Gaúcho e O Tronco do ipê] , pp. 199-208. (Capítulos XVI e XVII)
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