terça-feira, 10 de julho de 2012

Alma &/X Espírito

    Especificamente no romance de José, Thomas Mann descreve o caminho de sofrimento e prazer da alma, que em tempos antigos ardia de anelo pela matéria informe, ávida por misturar-se com ela e suscitar formas a partir dela, nas quais pudesse alcançar prazer corporal. Deus, assim parece, a apoiava em sua luta de amor com a matéria, de forma que ele, por assim dizer, no pecado original - que é ao mesmo tempo uma ação altamente moral - a sustenta. Certamente, porém, obedecendo a um elevado plano, envia ao mundo o espírito, para que este desperte a alma adormecida no abrigo das pessoas e lhe mostre, por ordem de seu pai, que este mundo não foi um pecado por causa de suas cidades e de suas apaixonadas empresas sensíveis, cuja consequência deva ser considerada a criação do mundo das formas e da morte. Evidencia-se, porém, que o próprio enviado não é de todo invulnerável, pois em sua missão diplomática acontece-lhe a malheur de trair os interesses pátrios, já que, com o tempo, a dissolução do mundo da morte, que também é na verdade um mundo da vida, se lhe apresenta, de sua parte, como uma manobra mortal e ele mesmo nesta missão parece ser o princípio da morte. "Esta", diz Mann, "é de fato uma questão de ponto de vista e de interpretação; pode-se julgá-la de um modo e depois de outro".
    Assim o espírito se mostra, pois, em certa medida pervertido e fraco de caráter. Se a alma se apaixona pela matéria, ele volta a apaixonar-se, por seu turno, de uma maneira ilícita, pela alma e se torna, assim, traidor de sua missão. Não obstante, cabe esperar que ele próprio sirva a seus propósitos originais, especificamente à suspensão do mundo material através do resgate da alma, de seu poder. Todavia, mesmo isto é altamente discutível. Será desejável? Thomas Mann, o schopenhauriano, diria: Altamente desejável! Mas Thomas Mann, o nietzschiano, bradaria o contrário: Indesejável no mais alto grau! No fim, onde está a vida e onde está a morte?

...pois ambas as partes, a alma entrelaçada na natureza e o espírito extramundano, pretendem, cada um segundo seu sentido, ser a água da vida, e cada um culpa o outro de tomar o partido da morte: nenhum dos dois deixa de ter razão, pois natureza sem espírito ou espírito sem natureza dificilmente podem ser chamados de vida. O segredo e a silente esperança de Deus residem talvez na união, isto é, no autêntico ingresso do espírito no mundo da alma, na interpenetração recíproca de ambos os princípios e na santificação de um através do outro para tornar presente uma humanidade que seja abençoada com as bênçãos dos céus no alto e das profundezas embaixo.

    Vemos como Thomas Mann envolve seu humanismo de maneira irônico-pudica na roupagem da especulação gnóstica, pois ele quer simplesmente exprimir que um espírito alheado da vida nada mais é senão morte e uma vida alheada do espírito tampouco nada mais é senão morte. O lugar das pessoas, o foco moral é, por assim dizer, ali onde ambas as tendências se cruzam e se tocam em antagonismo dialético. E, sem dúvida, vivemos num tempo em que o abismo entre os dois princípios parece ser maior do que seria desejável.

ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva, 1994, pp.51-53 (Coleção Debates; v.259). 

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