quinta-feira, 5 de julho de 2012

O amargo efeito da falta involuntária

   Um dia, eu estudava a lição só, no quarto contíguo à cozinha. A criada pusera os pentes da Srta. Lambercier a secar na chapa. Quando os veio buscar, notou que um estava com os dentes quebrados. Quem responsabilizar pelo estrago? Ninguém, afora eu, entrara no quarto. Interrogaram-me, e neguei ter pegado no pente. O senhor e a senhorita Lambercier reuniram-se, exortaram-me, apertaram-me, ameaçaram-me. Continuei teimando, porém a convicção deles era muito forte, e passou por cima dos meus protestos, ainda que fosse a primeira vez que me vissem mentir com tanta audácia. Tomaram a coisa a sério, como o merecia. A maldade, a mentira, a teimosia, pareciam igualmente dignas de punição. Mas, dessa vez, não foi a Srta. Lambarcier que me castigou. Escreveram ao meu tio Bernard, que acorreu. Meu pobre primo estava também acusado de um delito não menos grave, e nos uniram na mesma execução, que foi terrível. Quando, procurando no próprio mal um remédio, quiseram amortecer para sempre meus sentidos depravados, não poderiam ter agido mais acertadamente. E assim deixaram-me também em paz por muito tempo.
   Não me puderam arrancar a confissão que pretendiam. Repreendido diversas vezes, e posto na mais horrorosa situação, fui inabalável. Tivesse eu sofrido a morte, não cederia. E foi mister que a força cedesse à diabólica teimosia de uma criança, pois foi assim que chamaram minha firmeza. Saí enfim dessa prova, despedaçado, mas triunfante.
   Passaram já cinquenta anos sobre essa aventura, e não posso mais ter medo de outra vez ser punido por esse fato; pois bem, declaro à face do céu que estava inocente, que não quebrei nem toquei no pente, que não me aproximei da chapa, que nem sequer pensei nisso. Ninguém me pergunte como aconteceu esse estrago; ignoro-o e não o posso compreender. O que sei com toda certeza é que eu estava inocente.
 Imagine-se um caráter tímido e dócil na vida ordinária, porém ardente, orgulhoso, indomável, nas paixões; um menino governado sempre pela voz da razão, tratado sempre com doçura, equidade, complacência, que não tinha sequer ideia da injustiça, e que, pela primeira vez sofre uma injustiça tão terrível da parte, precisamente, das pessoas que ele mais respeita: que reviravolta de ideias! Que desordem de sentimentos! Que confusão no seu cérebro, no coração, em todo o seu pequenino ser inteligente e moral! Digo que se imagine tudo isso, se for possível; quanto a mim, sinto-me incapaz de discernir, de acompanhar o mínimo detalhe do que se passou em mim, então.
   Eu ainda não tinha razão bastante para sentir quanto as aparências me condenavam, e para me pôr no  lugar dos outros. Ficava no meu lugar. E o que sentia era o rigor de um castigo assustador por um crime que eu não cometera. A dor do corpo, viva embora, me foi pouco sensível. Eu sentira só indignação, raiva, desespero. Meu primo, em um caso semelhante, sendo punido por uma falta involuntária como por um crime premeditado, enfureceu-se ao meu exemplo e nós ficamos, por assim dizer, em uníssono. Ambos na mesma cama, nos abraçamos em convulsivos transportes, sufocamo-nos; e quando os nossos jovens corações, um pouco aliviados, puderam desabafar a cólera, erguemo-nos do leito e gritamos cem vezes, com todas as forças: "Carnifex! Carnifex! Carnifex! (carniceiro!)".
  Ao escrever isso, sinto que meu pulso se eleva ainda; terei sempre presentes esses momentos, ainda que viva cem mil anos. Esse primeiro sentimento da violência e da injustiça ficou-me tão profundamente gravado na alma que todas as ideias que com ele se relacionam me despertam a primeira emoção; e esse sentimento relativo a mim, na sua origem, tomou por si próprio uma tal consistência e de tal modo se desligou de qualquer interesse pessoal que meu coração se inflama ao espetáculo ou à narração de qualquer ação injusta, qualquer que seja o objeto ou o lugar onde se cometa, como se o seu efeito recaísse sobre mim. Quando leio as crueldades de um tirano feroz, ou as sutis atrocidades de algum padre velhaco, correria de boa vontade a apunhalar esses miseráveis, tivesse embora que morrer cem vezes. Já me tenho ensopado de suor, perseguindo a correr ou a pedradas um galo, uma vaca, um cão, um animal qualquer que vejo atormentando outro unicamente porque se sente o mais forte. Pode esse impulso me ser natural, e creio mesmo que o é; mas a lembrança profunda da primeira injustiça que sofri ligou-se durante muito tempo e muito profundamente a ele para o não ter reforçado muito.
  Foi esse o final da serenidade da minha vida infantil. Desde esse instante, deixei de gozar uma felicidade pura, e sinto ainda hoje que param aí as lembranças dos encantos da minha infância. Ficamos ainda alguns meses em Bossey. Ficamos lá tal como descrevem o primeiro homem: no paraíso terrestre, ainda, mas já sem dele gozar. Era na aparência a mesma situação, mas na realidade tudo era diferente.
   O afeto, o respeito, a intimidade, a confiança não mais ligavam os alunos aos mestres; não os olhávamos mais como a deuses que nos liam o coração; envergonhávamo-nos menos de proceder mal e tínhamos mais medo de ser acusados. Começamos a nos esconder, a birrar, a mentir. Todos os vícios da idade nos corrompiam a inocência e nos afeavam os brinquedos. O próprio campo perdeu aos nossos olhos a atração da doçura e da simplicidade que sobe ao coração: parecia-nos deserto e sombrio, cobrira-se como que de um véu que escondia-lhe as belezas. 
   Deixamos de cultivar nossos jardinzinhos, as ervas, as flores. Não nos punhamos mais a arranhar levemente a terra, e a gritar de alegria, descobrindo o germe do grão que semeáramos. Aborrecemo-nos dessa vida; desgostaram-se de nós. Meu tio nos retirou e nos separamos do senhor e da senhorita Lambercier, fartos uns dos outros, e com poucas saudades.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Trad. Rachel de Queiroz. Bauru: EDIPRO, 2008, p. 40-42.

4 comentários:

Lívio disse...

Como diria o Biquíni Cavadão: "Bem-vindo ao mundo adulto"...

Bruna Caixeta disse...

É isso aí mesmo, Lívio.

Abraços.

Nélio Lobo disse...

Paradoxalmente, Bruna, às vezes temos de assumir pequenas faltas que não cometemos a fim de não nos passar por grandes mentirosos. Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

De fato, Manoel.

Obrigada pela observação.

Grande abraço.