terça-feira, 1 de maio de 2012

O Conto de Chaucer sobre Melibeu

Chaucer inicia aqui o Conto de Melibeu.

1. Um jovem chamado Melibeu, rico e poderoso, concebera em sua mulher, que se chamava Prudência, uma filha que se chamava Sofia.
2. Aconteceu um dia que ele foi para o campo em busca de entretenimento. Deixou a mulher e a filha em casa, com as portas bem fechadas. Três de seus inimigos, que estavam à espreita, colocaram então escadas junto aos muros da casa e entraram pelas janelas. Em seguida, bateram em sua mulher, e feriram sua filha com cinco feridas mortais, em cinco lugares diferentes, - a saber, nos pés, nas mãos, nas orelhas, no nariz e na boca. Deixaram-na como morta, e depois foram-se embora.
3. Quando Melibeu voltou para casa e viu toda essa maldade, pôs-se a chorar e gritar como louco, rasgando as próprias vestes.
4. Prudência, sua mulher, até onde podia ousar, suplicou-lhe que se acalmasse; em vez disso, mais copiosos se tornaram seus lamentos e suas lágrimas.
5. Lembrou-se então a nobre senhora Prudência de uma frase de Ovídio, em sua obra chamada Os Remédios do Amor, que dizia: "É tolice tentar impedir a uma mãe de chorar a morte do filho enquanto ela não chorar livremente pelo tempo necessário; somente então deve-se buscar consolá-la com palavras amigas e convencê-la a estancar o pranto." Por essa razão, a nobre senhora Prudência permitiu que seu marido chorasse e gritasse durante certo tempo; mas, assim que viu a ocasião oportuna, falou-lhe desta maneira: "Ai, meu senhor, por que te comportas como um tolo? Em verdade, não é próprio do sábio entregar-se a tais lamentos. Tua filha, com a graça de Deus, irá salvar-se e viver. Mas, ainda que agora estivesse morta, não deverias destruir-te por causa de sua morte. Diz Sêneca: 'O sábio não deve desesperar-se pela morte de seus filhos, mas deve suportá-la com a mesma paciência com que aguarda a morte de sua própria pessoa'."
6. Imediatamente Melibeu retrucou e disse: "Quem pode parar de chorar com tão grande motivo para chorar? O próprio Jesus Cristo, nosso Senhor, chorou pela morte de Lázaro, seu amigo." Respondeu Prudência: "Sei muito bem que o pranto moderado não é, de modo algum, vetado aos que sofrem; pelo contrário, é um direito que lhes é concedido. O apóstolo Paulo, na epístola aos Romanos, escreve: 'Alegrai-vos com os que se alegram, e chorai com os que choram'. Mas, se o pranto moderado é permitido, o pranto excessivo é certamente condenado. Não devemos no pranto desprezar o comedimento, de acordo com o que Sêneca nos ensina: 'Na morte de teu amigo, não permitas que teus olhos fiquem muito úmidos de pranto, nem muito secos; se as lágrimas te vierem aos olhos, não deixes que rolem'. Se perdes um amigo, esforça-te para arranjares outro; é uma atitude mais sábia que chorar pelo amigo que se foi, pois isso nada aproveita. Por isso, se desejas guiar-te pela sabedoria, afasta a tristeza de teu coração. Lembra-te do que dizia Jesus Siraque: 'O coração alegre e feliz conserva a juventude, mas o espírito abatido faz secar os ossos'. Também dizia assim: 'A tristeza no coração é a morte de muitos homens'. Salomão afirma que 'assim como as traças na lã das ovelhas fazem mal às vestes, e os pequenos vermes às árvores, assim a tristeza faz mal ao coração'. Por tudo isso, seja na morte dos filhos, seja na perda de nossos bens materiais, precisamos ter paciência".
7. "Recorda-te do paciente Jó, que, depois de haver perdido os filhos e as posses temporais, e depois de conhecer e suportar em seu corpo muitas enfermidades dolorosas, assim mesmo dizia: 'o Senhor os deu para mim, o Senhor os tirou de mim; assim como quis o Senhor, assim se fez; bendito seja o nome do Senhor'. " A essas palavras, acima referidas, respondeu Melibeu a sua mulher Prudência: "Tudo o que disseste é verdade e, portanto, de muito proveito; meu coração, porém, acha-se tão profundamente perturbado por essa dor, que não sei o que fazer." "Convoca", disse Prudência, "todos os teus amigos verdadeiros e teus parentes mais sábios, conta-lhes o teu infortúnio, e ouve o que têm para te aconselhar, seguindo então a sua orientação. Diz Salomão: 'Pede conselho em tudo o que fizeres, e nunca te arrependerás'."
8. Aceitando a sugestão de sua mulher Prudência, Melibeu convocou uma grande congregação de pessoas, como cirurgiões, médicos, anciãos e jovens, além de alguns de seus velhos inimigos, aparentemente reconciliados com ele e reconduzidos à sua estima e ao seu favor. Também compareceram alguns de seus vizinhos, que o respeitavam, como acontece muitas vezes, mais por medo do que por afeto. Vieram igualmente muitos aduladores astuciosos, e sábios advogados versados na lei.
9. E quando todas essas pessoas se reuniram, Melibeu, com o semblante entristecido, deu-lhes a conhecer sua história, deixando a impressão, por sua maneira de falar, de que trazia no peito uma ira cruel, estando pronto a vingar-se de seus inimigos e ansioso para iniciar imediatamente a guerra. Apesar disso, pediu a todos que o aconselhassem sobre o que fazer.
75. E quando Dona Prudência viu a ocasião oportuna, perguntou e indagou a seu senhor Melibeu como pretendia vingar-se de seus adversários.
76. Ao que Melibeu respondeu e disse: "Na verdade, penso e tenciono confiscar tudo o que possuem e exilá-los para sempre".  
77. "Sem dúvida," observou Dona Prudência, "é uma sentença cruel e inteiramente contrária à razão. Pois és bastante rico, e não tens necessidade alguma dos bens de outros homens; e, dessa forma, poderás facilmente adquirir a pecha de ambicioso, o que é coisa vergonhosa, ganhando por conseguinte o desprezo de todos os homens de bem. Pois, segundo o que ensina a palavra do Apóstolo, 'a cobiça é a raiz de todos os males'. É melhor, portanto, renunciar à maior parte daquilo que possuis que tomar o que é deles desse modo. Pois é melhor perder as posses com boa fé, que enriquecer-se através da felonia e da vergonha. E todo homem deve cuidar e diligenciar para que tenha um bom nome. E não só deve fazer de tudo para preservar esse bom nome, mas também esforçar-se constantemente para praticar atos que renovem seu bom nome; pois está escrito que "a boa reputação antiga ou o bom nome de um homem passam e se acabam num instante, se não forem reforçados e renovados'. Quanto à tua pretensão de exilar os teus adversários, parece-me contrária à razão e fora de propósito, em vista do poder que te confiaram ao se entregarem em tuas mãos. E está escrito que 'merece perder seus privilégios o que abusa da força e do poder que lhe são dados'. E, admitindo-se que possas, por direito e pela lei, impor-lhes aquela pena, - apesar de eu não acreditar em tal coisa, - afirmo-te que não poderás aplicá-la na prática, pois isso apenas nos levaria de volta ao estado de guerra que existia anteriormente. Portanto, se desejas conquistar o respeito dos homens, deves julgar com mais brandura, ou seja, deves amenizar teus julgamentos e tuas sentenças. Pois está escrito que 'recebe maior obediência quem comanda com mais brandura'. Rogo-te, portanto, que, neste transe e nesta contingência, procures dominar teu coração. Pois Sêneca diz: 'Aquele que domina o próprio coração, vence duas vezes'. E Túlio afirma: 'Nada é tão elogiável num grande senhor quanto um espírito benigno e compreensivo, que se deixa facilmente apaziguar'. Peço-te que renuncies agora à vingança, para que teu bom nome possar ser mantido e preservado; e para que os homens tenham motivo e razão para louvar-te a piedade e a misericórdia; e para que não te arrependas dos teus atos. Pois Sêneca diz: 'Vence mal quem se arrepende de sua vitória'. Por isso é que te imploro: deixa a misericórdia dominar-te a mente e o coração, para que Deus todo poderoso também tenha piedade de ti no dia do juízo. Pois São Tiago afirma em sua Epístola: 'O juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia'. "
78. Depois que Melibeu ouviu os argumentos e as razões de Dona Prudência, e seus sábios ensinamentos e instruções, seu coração, refletindo sobre o verdadeiro significado do que fora dito, se inclinou para as opiniões de sua mulher; e ele então se sujeitou a ela, aceitando plenamente os seus conselhos; e agradeceu a Deus, de quem procede toda virtude e toda bondade, o ter-lhe dado uma esposa tão sensata. E quando chegou o dia em que os seus adversários deveriam comparecer à sua presença, falou-lhes com bondade, assim dizendo: "Embora em vosso orgulho e presunção e loucura, por vossa negligência e ignorância, tenhais vos conduzido muito mal e ofendido a mim, sou levado a conceder-vos graça e perdão em vista da grande humildade, da contrição e do arrependimento que agora demonstrais. Por isso, recebo-vos agora em meu favor e vos perdoo plenamente as ofensas, injúrias e males que cometestes contra mim e contra os meus, para que também Deus, em sua infinita misericórdia, nos perdoe, na hora de nossa morte, os pecados que cometemos contra Ele neste vale de lágrimas. Pois Deus nosso Senhor é tão bom e misericordioso que, se nos arrependermos dos pecados e faltas que em sua presença cometemos, Ele certamente perdoará as nossas dívidas e nos conduzirá à eterna bem-aventurança. Amém.."

Aqui termina o Conto de Chaucer sobre o Melibeu e Dona Prudência.


CHAUCER, Geoffrey. Os contos de Cantuária. Trad. Paulo Vizioli. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988, pp. 108-111.    

2 comentários:

Manoel Almeida disse...

Olá, Bruninha, só concordo com o trecho que diz: "Pois é melhor perder as posses com boa fé, que enriquecer-se através da felonia e da vergonha."

Posso parecer reacionário nesse ponto, mas sou incapaz de entender a magnanimidade de D. Prudência, pois se de fato uma autoridade deva abster-se de julgar por emoções pessoais, também é verdade que não podem os autores de uma atrocidade ficar impunes.

Grande abraço.


(Manoel)

Bruna Caixeta disse...

Olá, Manoel!

Acredito que haja, na personagem de Dona Prudência, uma grande ironia.

Ainda que seja uma mulher que tenha um discurso respaldado em grandes escritores, e em frases de conteúdo moral desses mesmos escritores, o discurso dela, no fim, parece estar preocupado apenas com a reputação de Melibeu, quem, do início da história até então, é-nos apresentado como rico e poderoso. Dessa forma, Dona Prudência está preocupada só se o marido vai receber bens de outros menos ricos que ele e obter a "vergonhosa" alcunha de ambicioso. Preocupação que também não deixa de ser com os bens e o poder de Melibeu.

Chaucer consegue fazer com que Dona Prudência e, logo no fim, Melibeu, se passem por bons caráteres - um por falar palavras corretas moralmente, e outro, por se convencer e agir conforme elas -, quando, na verdade, a veste de bons caráteres está a serviço não da moral propriamente, mas do interesse financeiro e de admiração pública.

Grande ironia esta mulher ser nomeada de Prudência, não?!

Como você observou, e reafirmo: não há magnanimidade nenhuma na personagem.

E quanto ao ponto que destacou das atrocidades ficarem impunes, também concordo que não devam assim ficar - ao contrário, da, mais uma vez, "Prudência".

Obrigada por não ter deixado este conto sem comentário, caro Manoel, pois, diante da leitura dele, já notei que algumas pessoas se encantaram com D. Prudência - que perigo, não?! [Risos].

Cordiais abraços.