quarta-feira, 30 de maio de 2012

Um relampejo de um mundo pós-burguês

    
    Certo é que todo o ódio que Goethe teve de carregar, todas as acusações e queixas contra o seu egoísmo, sua arrogância, sua falta de moral e sua "força imensamente impeditiva", contra essa frieza com relação ao entusiasmo ideal, político - tanto faz se é a sua nuance nacionalista-bélica ou sua nuance revolucionário-humanista-, podem ser atribuídos ao fato de ele ter vivido obstinadamente na contramão do principal rumo tomado por seu século, ou seja, da ideia democrática e nacional. Com essa irritação e queixa, esqueceu-se que a indiferença de Goethe contra a raça política não significava absolutamente falta de amor: amor às pessoas - pois ele costumava dizer que a mera visão de um rosto podia curá-lo de sua melancolia, e ele cunhou a expressão altamente humana "o verdadeiro estudo da humanidade é o homem" -, e, o que é a mesma coisa, amor ao futuro. Pois homem, amor, futuro, tudo é a mesma coisa, é o mesmo complexo de sentimentos de simpatia e gentileza de viver que, apesar de toda a falta de política, caracterizavam a natureza mais profunda de Goethe e cunharam seu conceito de "digno da vida". Lembro-me da estranha impressão de paradoxo e audácia altaneira que tive quando, jovem ainda, tendo recebido de Schopenhauer a grande permissão para o pessimismo, compreendi pela primeira vez no "Epílogo ao 'Sino'" a expressão "digno da vida" - "A morte tomará aquele que é digno da vida" -, essa associação de palavras que, até onde eu sei, inexistia até então e é uma criação pessoal de Goethe. A vida enquanto critério mais elevado, e o fato de alguém ser digno dela representar a maior nobreza, nobreza que, se tudo correr bem, protege contra a destruição - tudo isso confundiu a minha compreensão juvenil de sofisticação, que de fato levava a uma sublime inabilidade e falta de vocação para vida terrena; essa estranha associação de palavras é prenhe de uma postura de vida positiva e rebelde, de uma afirmação de vida mais do que pessimista, que a meu ver constitui uma forma mais elevada e universal da vida burguesa, da condição de burguês: uma espécie de condição burguesa vital [Lebensbürgerlichkeit], a condição de quem vive com os dois pés plantados na vida, a aristocracia vital daquele que foi abençoado e privilegiado pela natureza e que, não muito longe do brutal, olha com desprezo para os "nostálgicos famintos pelo inatingível". [...]
    A dimensão burguesa possui uma certa transcendência espiritual em que ela mesma se anula e transforma. [...] Eu perguntei e volto a perguntar: de onde vieram os grandes atos libertadores do espírito transformador, "senão do burguês"? A vontade e a vocação para o "desburguesamento" [Entbürgerlichung], para a perigosíssima aventura da ideia ousada, essa é a carta branca que o próprio intelecto deu ao homem burguês. [...] E essa superação da condição de burguês graças ao espírito é o que encontramos no romance da velhice de Goethe, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister. [...]
   Na obra, relampejam ideias que se distanciam bastante daquilo que se entende por humanismo burguês, do conceito clássico e burguês de cultura que o próprio Goethe ajudou a criar e cunhar. O ideal da universalidade humana e particular é deixado de lado, proclamando-se uma era da unilateralidade. Aí se lê aquela insuficiência do indivíduo que hoje em dia está em vigor: somente muitas pessoas podem perfazer o humano, o indivíduo torna-se função, o conceito de comunidade vem para primeiro plano; e o espírito jesuítico-militarista da Província Pedagógica, por mais alegre e inspirado pelas musas que seja, praticamente não deixa sobrar nada do ideal individualista e "liberal", do ideal burguês.
    Esse olhar sonhador e ousado do Goethe maduro para um novo mundo pós-burguês foi tão insólito, tão grandioso, quanto a crescente participação do ancião em questões utópicas e tecnológicas mundiais, o seu entusiasmo por projetos como o canal no istmo do Panamá, do qual fala com intensidade e minúcia, como se isso lhe fosse mais importante do que toda a poesia - como de fato foi na fase final. A alegria esperançosa em relação a tudo o que era tecnológico e civilizatório, tudo que incentivava o comércio, não é de espantar em se tratando do poeta do último Fausto, que vivencia o seu instante máximo na realização de um sonho utilitarista, na drenagem de um pântano - um estranho afrontamento contra a tendência beletrística e filosófica da época. [...] 
   Na utopia tecnológica e racional, a dimensão burguesa se transforma em dimensão de comunidade global, torna-se conscientemente geral e não dogmática. Esse entusiasmo é sóbrio. Mas o que hoje falta é justamente uma grande sobriedade, num mundo que se consome em estados d'alma sombrios e hostis à vida. [...] O burguês está perdido, e perderá a passagem para o novo mundo que chega se não se obrigar a dizer adeus ao conforto mortal e às ideologias contrárias à vida que ainda o dominam, se não conseguir se professar, corajoso, em prol do futuro. O novo mundo, o mundo socializado, o mundo organizado da unidade e do planejamento, em que a humanidade estará libertada dos sofrimentos subumanos, desnecessários, que ferem o sentimento de honra da razão, esse mundo virá, e esse mundo será obra daquela grande sobriedade para a qual já hoje tendem todos os espíritos que não comungam com os estados d'alma decompostos, sombrios e pequeno-burgueses. Ela virá, pois uma ordem externa e racional adequada ao estágio atingido pelo espírito humano deve ser criada, no pior dos casos por uma subversão violenta, para que a alma volte a ter direito à vida e a uma boa consciência humana. Os grandes filhos da burguesia [Bürgertum], que nela nasceram e cresceram para o intelecto, o supraburguês, são testemunhos de que existem possibilidades ilimitadas na condição burguesa, possibilidades de autolibertação e de autossuperação. A nossa época conclama a burguesia a se lembrar dessas suas possibilidades inatas e se decidir por elas nos planos intelectual e moral. O direito ao poder depende da missão histórica cujo portador sentimos que somos, e podemos assim nos sentir. Quem a renegar ou não estiver à sua altura terá de desaparecer e abdicar em favor de um tipo humano livre das precondições, das relações e das amarras sentimentais que, como por vezes tememos, tornam a burguesia europeia incapaz de conduzir o Estado e a economia a um novo mundo. Não há dúvida: o crédito que ainda hoje a história da República burguesa concede, esse crédito de curto prazo, fundamenta-se na fé ainda existente de que a democracia também pode fazer o que seus inimigos sedentos de poder dizem ser capazes de fazer: assumir essa liderança rumo ao novo e ao futuro. A burguesia se revela merecedora de seus grandes filhos quando não se satisfaz com vangloriar-se solenemente deles. É o maior desses filhos, Goethe, quem a convoca:


   Entzieht euch dem verstorbnen Zeug
   Lebend'ges labt uns lieben!
   ("Deixem as coisas mortas/ Amemos o que é vivo!" Goethe, Zahme Xenien, III).



MANN, Thomas. "Goethe como representante da era burguesa". In: O escritor e sua missão: Goethe, Dostoiévski, Ibsen e outros. Trad. Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 97- 112.

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