sexta-feira, 20 de abril de 2012

De Borges, um evangelho apócrifo

Fragmentos de um evangelho apócrifo


3- Desventurado o pobre de espírito, porque sob a terra
será o que agora é na terra.
4- Desventurado aquele que chora, porque já tem o hábito 
miserável do pranto.
5- Felizes os que sabem que o sofrimento não é uma coroa
de glória.
6- Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7- Feliz aquele que não insiste em ter razão, porque
ninguém a tem ou todos a têm.
8- Feliz aquele que perdoa aos outros e aquele que perdoa a
si mesmo.
9- Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem 
com a discórdia.
10- Bem-aventurados os que não têm fome de justiça,
porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra 
do acaso, que é inescrutável.
11- Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua 
felicidade está no exercício da misericórdia e não na
esperança de um prêmio.
12- Bem-aventurados os de coração puro, porque vêem Deus.
13- Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa 
da justiça, porque lhes importa mais a justiça que seu 
destino humano.
14- Ninguém é o sal da terra, ninguém, em algum 
momento de sua vida, não o é.
15- Que a luz de uma lâmpada se acenda, ainda que 
nenhum homem a veja. Deus a verá.
16- Não há mandamento que não possa ser infringido,
e também os que digo e os que os profetas disseram.
17- Aquele que matar pela causa da justiça, ou pela
causa que ele acredita ser justa, não tem culpa.
18- Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem
os céus.
19- Não odeies teu inimigo, porque, se o fazes, és de 
algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será
melhor que tua paz.
20- Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo
e és tua alma, e é árduo, ou impossível, definir a 
fronteira que os divide...
24- Não exageres o culto da verdade; não há homem que
no final de um dia não tenha mentido com razão
muitas vezes.
25- Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26- Resiste ao mal, mas sem assombro e sem ira.
A quem te ferir na face direita, podes oferecer
a outra, sempre que não te mova o temor.
27- Não falo de vinganças nem de perdões;
o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28- Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça e
não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29- Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de 
satisfazer tua vaidade.   
30- Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai
do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31- Pensa que os outros são justos ou o serão, e, se não
for assim, não é teu o erro.
32- Deus é mais generoso que os homens e os medirá
com outra medida.
33- Dá o santo aos cães, atira tuas pérolas aos porcos; 
o que importa é dar. 
34- Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar...
39- A porta é a que escolhe, não o homem.
40- Não julgues a árvore por seus frutos nem o homem 
por suas obras; podem ser piores ou melhores.
41- Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia,
mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia...
47- Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48- Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo 
similar a derrota ou as palmas.
49- Felizes os que guardam na memória palavras 
de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz
a seus dias.
50- Felizes os amados e os amantes e os que podem
prescindir do amor.
51- Felizes os felizes.


BORGES, Jorge Luis. Poesia/ Jorge Luis Borges. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 67-69.

4 comentários:

Nélio Lobo disse...

Olá, Bruna, que venham mais postagens de Borges. Abração.

Bruna Caixeta disse...

Manoel,

essas postagens do Borges ficam dedicadas a você - quem um dia, em resposta a um comentário meu no Epitaphius, pediu mais histórias do mestre argentino.

Um abração.

Nélio Lobo disse...

Obrigado por lembrar-se do pedido, Bruna, e atendê-lo. A propósito, o epitaphius CCXV será um trecho de "El instante". Abraço.

Bruna Caixeta disse...

De nada, Manoel.

Também deixo para você meu agradecimento por comunicar que teremos um trecho do "El instante" para as próximas leituras.

Abração.