segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Um favônio do nevoeiro proustiano

   Logo abaixo, uma entrevista concedida por Marcel Proust ao jornal Le Temps no dia 14 de novembro de 1913, antevéspera da publicaçõa de No Caminho de Swann. Tradução de Guilherme Ignácio da Silva. Fonte: Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve (ed. Pierre Clarac), Paris, Pléiade Gallimard, 1971, pp. 604-5. 
[Entrevista reproduzida na 3ª edição revista, publicada em 2006, do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, No caminho de Swann; pp. 509-512].

   O que publico é apenas um volume, No caminho de Swann, de um romance que terá como título geral Em busca do tempo perdido. Gostaria de publicar tudo junto; mas não se editam mais obras em vários volumes. Sou como alguém que tem uma tapeçaria grande demais para os apartamentos atuais e que por isto foi obrigado a cortá-la.
  Alguns jovens escritores, com os quais me simpatizo em outros pontos, preconizam, ao contrário, uma ação breve com poucos personagens. Não é minha concepção do romance. Como lhes dizer isso? Sabem que existe uma geometria plana e uma geometria espacial. Pois bem, para mim, o momento não é somente da psicologia plana, mas da psicologia no tempo. Essa substância invisível do tempo, eu procurei isolá-la, mas para isto havia uma necessidade que a experiência pudesse durar. Espero que no final de meu livro, tal fato social pequeno e sem importância, tal casamento entre duas pessoas que no primeiro volume pertencem a mundos bastante diferentes, indicará que o tempo passou e assumirá a beleza de alguns dos chumbos patinados de Versailles, que o tempo envolveu de um revestimento de esmeralda.
  Então, como uma cidade que, enquanto o trem segue seu caminho enviesado, aparece-nos tanto a nossa direita quanto a nossa esquerda, os diversos aspectos que um mesmo personagem terá assumido aos olhos de um outro, a ponto de ser personagens sucessivos e diferentes, darão - mas por isto somente - a sensação do tempo decorrido. Tais personagens revelar-se-ão mais tarde diferentes daquilo que são neste volume atual, diferente daquilo que se acreditará ser, da mesma forma que acontece com muita frequência na vida, de resto.
  E não são somente os mesmos personagens que reaparecerão ao longo desta obra sob aspectos diversos, como em certos ciclos de Balzac, mas em um mesmo personagem - nos diz o sr. Proust - certas impressões profundas, quase que inconscientes.
  Quanto a isso, continua o sr. Proust, meu livro será talvez como um ensaio de uma sequência de "Romances do Inconsciente"; não teria vergonha nenhuma de dizer de "romances bergsonianos", se acreditasse nisso, pois em todas as épocas ocorre de a literatura tentar se ligar - naturalmente de forma tardia - à filosofia predominante. Mas (dizem isso) não seria exato, pois minha obra está dominada pela distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na filosofia de Bergson, mas é até mesmo contradita por ela.

   Como o senhor estabelece esta distinção?
  - Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da inteligência e dos olhos, não nos dá, do passado, mais do que faces sem realidade; mas se um cheiro, um sabor encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à nossa revelia, o passado, passamos a sentir o quanto este passado era diferente daquilo que acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem realidade. Já neste primeiro volume, vocês verão o personagem que narra, que diz: Eu (que não sou eu) encontrar de repente, jardins, seres esquecidos, no gosto de um gole de chá onde ele mergulhou um pedaço de madeleine; é provável que ele se lembrava deles, mais sem suas cores, sem seu charme; pude fazê-lo dizer como este pequeno jogo japonês onde se mergulham pedacinhos de papel que, tão logo imersos na tigela, se esticam, ganham contorno, tornam-se flores, personagens, todas as flores de seu jardim e as ninfeias da Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas casinhas e a igreja, e toda Combray e arredores, tudo isso que assume forma e solidez saiu, cidade e jardins, de sua xícara de chá.
  Vejam vocês, acredito que é apenas às lembranças involuntárias que o artista deveria requisitar a matéria prima de sua obra. Antes de mais nada, precisamente porque elas são involuntárias, que se formam por si próprias, atraídas pela semelhança de um mundo idêntico, elas são as únicas a possuir uma marca de autenticidade. Depois, porque nos trazem de volta as coisas numa dose exata de memória e esquecimento e, enfim, uma vez que nos fazem experimentar a mesma sensação em uma circunstância completamente diferente, elas a liberam de toda a contingência, e nos dão dela a essência extra-temporal, aquela que é exatamente o conteúdo do belo estilo, esta verdade geral e necessária que somente a beleza do estilo traduz.
   Se me permitem divagar sobre meu livro, continua o sr. Marcel Proust, é que não se trata em nenhum grau de uma obra de raciocínio, é que os seus mais ínfimos elementos me foram fornecidos pela minha sensibilidade, que os encontrei no fundo de mim mesmo, sem os compreender, tendo tanto trabalho em convertê-los em algo inteligível, como se eles fossem tão estranhos ao mundo da inteligência, como dizer?, como um motivo musical. Parece-me que vocês podem estar pensando que se trata de meras sutilezas. Oh, não! Eu lhes asseguro: ao contrário, de realidades. O que não tivemos de esclarecer nós mesmos, o que estava claro antes de nós (por exemplo, ideias lógicas) tudo isso não é realmente nosso, não sabemos nem mesmo se é real. É apenas uma parte do "possível" que elegemos arbitrariamente. Aliás, vocês sabem, isso se vê imediatamente no estilo.
   O estilo não é de maneira alguma um enfeite como creem certas pessoas, não é sequer uma questão de técnica, é - como a cor para os pintores - uma qualidade da visão, a revelação do universo particular que cada um de nós vê, e que não veem os outros. O prazer que nos dá um artista é de nos fazer conhecer um universo a mais. 

__________

   O vídeo que segue é um documentário sobre Proust e a sua obra. Rico, o breve filme apresenta os dados biográficos e as características de estilo proustianas acompanhados de referências históricas e culturais, além de trechos de textos de Proust. Bom proveito!



4 comentários:

Lívio disse...

Bruna, que beleza de postagem!

Conferi o vídeo, que é muito bom! E achei um barato a Céleste Albaret ser uma das pessoas entrevistadas. Tenho o livro “Senhor Proust – lembranças recolhidas por Georges Belmont”. O livro é de Albaret, que por anos trabalhou para Proust.

Tenho a primeira edição da obra, que é plena de erros. Acho até que já escrevi sobre isso em meu blogue. À parte isso, é um ótimo livro para quem se interessa pelo universo proustiano.

Parabéns pela postagem.

Bruna Caixeta disse...

Ei, Lívio,

que alegria saber que gostou da postagem!

Pois é, a presença de Albaret no filme é ótima. Afora os relatos afetuosos; a sua representação da felicidade (e alívio) de Proust ao terminar o romance, achei interessante, (forte, e um tanto poético) ela dizer que nos últimos tempos, Proust, não conseguindo comer, alimentava-se do próprio ser.

E, Lívio, muito bom você citar o livro “Senhor Proust – lembranças recolhidas por Georges Belmont”. Lembro-me de ter lido o que você escreveu na época sobre ele (e reli novamente agora), mas não cheguei a conhecer o livro. Felizmente, pela sua oportuna referência, agora procurarei-o para ler.

Obrigada por mais um gentil comentário.

Grande abraço.

Rafael Peres disse...

Colega, achei de grande valia esta entrevista de Proust, especialmente o trecho sobre o estilo do artista. A maneira deste de conceber o mundo ultrapassa as fronteiras da individualidade, expandindo universos alheios, oportunizando a pluralidade das sensações. Gostei também dos dizeres referentes às memórias voluntária e involuntária.... Belas e esclarecedoras palavras!

Bruna Caixeta disse...

Oi, Rafa!

Maravilha saber que gostou da entrevista.

Eu achei de grande valia também as palavras de Proust sobre o estilo e as memórias. Em suma, significativo demais, não, pensar que o artistá inaugura universos?!...

Obrigada pela presença.

Abraços.