sábado, 11 de fevereiro de 2012

Fragmento



El campanario de Douai, Jean-Baptiste Camille Corot, 1871.

    Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. [...] Sem saber bem por quê, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como o fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. Ignorante em arquitetura, dizia: "Meus filhos, podem rir-se de mim, essa torre talvez não esteja dentro das regras, mas agrada-me esse seu velho ar esquisito. Se ela tocasse piano, estou certa de que não tocaria sem alma". [...]
    Era o campanário que dava a todas as ocupações, a todas as horas, a todos os pontos de mira da cidade, seu aspecto, seu remate, sua consagração. [...] Até mesmo quando tínhamos de ir pelas ruas que ficavam atrás do templo e de onde não o avistávamos, tudo parecia ordenado em relação ao campanário, que surgia aqui e ali entre as casas, talvez ainda mais impressionante ao assomar assim sem a igreja. É verdade que existem vários outros que são muito mais belos vistos dessa maneira, e guardo na lembrança vinhetas de torres acima dos telhados, com outra feição artística que não as que acompanham as tristes ruas de Combray. [...] Mas como a memória, por mais gosto com que as executasse, não conseguisse pôr nessas [outras] pequenas gravuras o que eu de há muito havia perdido, isto é, o sentimento de que nos induz, não a considerar uma coisa como um espetáculo, mas a tê-la como um ser sem equivalente, nenhuma delas domina toda uma parte profunda de minha vida como a lembrança daqueles aspectos do campanário de Combray nas ruas que ficam atrás da igreja. Se algumas vezes, ao ir buscar às cinco horas as cartas no correio, a gente o avistava, a algumas casas da nossa, à esquerda, erguendo bruscamente, de um cimo isolado, a linha das cumeeiras; se outras vezes, ao ir saber notícias da sra. Sazerat, vendo que era preciso dobrar a segunda rua após o campanário, seguia-se com os olhos a mesma linha que, depois de se haver elevado, tornava a baixar em sua outra vertente; se outras vezes ainda seguíamos além, a caminho da estação, e o víamos obliquamente, mostrando de perfil arestas e superfícies novas, como um sólido surpreendido em um desconhecido momento de sua revolução; ou se, das margens do Vivonne, a abside, musculosamente retesada pela perspectiva, parecia brotar do esforço que fazia o campanário para arremessar sua flecha no coração do céu, era sempre a ele que cumpria voltar, a ele, que dominava tudo, admoestando as casas de um imprevisto píncaro, erguido diante de mim como o dedo de Deus, cujo corpo estivesse oculto na multidão dos humanos, sem que eu por isso o confudisse com ela. E ainda hoje, em alguma grande cidade da província ou em algum bairro de Paris que não conheço bem, quando um transeunte "que me mostra o caminho" me indica ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento a erguer a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua que eu devo tomar, por pouco que minha memória lhe possa obscuramente encontrar algum traço de semelhança com a figura amada e desaparecida, se acaso o transeunte se volta para ver se não me perco, há de espantar-se ao me surpreender, esquecido do passeio ou da obrigação, ali parado diante da torre, horas e horas, imóvel, procurando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e delineando seu perfil; e nesse instante, e mais ansiosamente do que ainda há pouco quando lhe pedia que me informasse, continuo a procurar o caminho, dobro uma rua... mas em meu coração...

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol I: No caminho de Swann. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006, pp. 93-97.

2 comentários:

Lívio disse...

Olá, Bruna. Bela escolha. Eu não me lembrava mais desse trecho.

Para mim, uma das mais belas coisas já escritas na literatura (é difícil um dia em que não me lembro do trecho) é a parte final do primeiro capítulo de "No caminho de Swann". É aquela parte em que o narrador fala que tudo o que seria narrado por ele veio à tona desde a memória mais profunda a partir de uma taça de chá servida para ele pela tia. Caso queira conferir para se lembrar, vá até o fim do primeiro capítulo e retroceda, até achar o parágrafo que começa com "morto para sempre? Era possível"; a partir daí, leia até o fim do primeiro capítulo.

É algo que não me canso de reler.

Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Oi, Lívio!

Também não esqueço da parte das lembranças animadas pela madeleine molhada no chá.

Aliás, gosto muito da ideia de Proust de buscar na realidade as experiências semelhantes a motivos musicais: aquelas que nos contam algo e passam a formar a nossa identidade por outro aspecto que não o exclusivamente lógico; também, o das sensações - se posso assim muito pobremente caracterizá-las.

Já no trecho que citei é destacada outra ideia proustiana que será cara até chegarmos ao final dos sete (extensos e intensos) volumes da obra: o Tempo. A atribuição de uma influência e imponência mais que humanas ao campanário, sinaliza para como as badaladas do Tempo variarão o cotidiano das pessoas (e elas próprias). O trecho também constitui-se como um outro aspecto pelo qual Marcel conhece mais um detalhe da personalidade da avó.

Obrigada pelo gentil comentário.

Grande abraço.