sábado, 15 de outubro de 2011

Fragmentos (6)




    Agora raciocinemos no que você fala de minha influência sobre você. Em última análise tudo é influência neste mundo. Cada indivíduo é fruta de alguma coisa. Agora, tem influências boas e tem influências más. Além do mais se tem que distinguir entre o que é influência e o que é revelação da gente própria. Muitas vezes um livro revela pra gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendência, processo de expressão, tudo. O livro não faz que apressar a apropriação do que é da gente. Digo isso pra você se sossegar nesse ponto. Eu sofri muito com isso, Drummond. Via em mim influências dos outros, queria tirá-las e ficava sem nada. Mas aquela frase da Pauliceia não saiu ao atá, não. "Sinto que o meu copo é grande demais e ainda bebo no copo dos outros." Não tem dúvida que você faz coisa da mesma categoria que a minha. Ora, mesma categoria implica uma identidade qualquer. O que carece é você não ver influência nessa identidade, mas resultância da mesma categoria. Se os meus exemplos declancharam alguma coisa em você, se lembre sempre que você nunca me olhou com mimetismo nem servilismo graças-a-Deus, porém me critica, me pesa, escolhe e ama o que é também seu. Amor, no sentido geral, isto é, isento de sexualidade, é uma questão de espelho. Este mundo está cheio de Narcisos. Nós todos. Sobre influência ainda queria escrever páginas. Só digo isto. Fuja dos processos muito pessoais de exteriorização dos outros. Nunca fuja de influências espirituais. Elas nos determinam a nossa categoria, desde que criticadas. Se você já tem coragem de escrever "de repentemente" tão brasileiramente, lembre que isso não é meu nem de ninguém, é brasileiro. Eu, adverbiando por demais na Pauliceia, inconscientemente segui uma tendência muito auriverde. "Parisanatolefrance" não gosto. Isso sim pela extravagância pode cheirar mário-de-andrade. Quanto a você começar a se interessar por coisas brasileiras, se lembre que eu não fui nem sou o primeiro nacionalista da nossa literatura. Eu se tenho algum mérito é que em vez de pregar só, fazer idealismo, fazer teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazer regionalismo, tal qual Veríssimo ou Lobato, agi prático, não prego faço, pelo muito de brasil que eu tenho desta merda de Brasil. Se lembre daquele passo do meu artigo sobre Osvaldo (Revista do Brasil) em que eu dizia isso e disse bem.
    Você me desculpe eu falar tanto de mim. Mas eu não posso tirar exemplo da vida dos outros. E também por vaidade não gosto de fazer proselitismo. Então pros mais amigos me conto. Eles que meçam a alma deles pela minha. E se eduquem e se engrandeçam mais do que eu. Sem humildade: isso é uma coisa bem fácil. E depois com os da nossa casa eu não sou o escritor Mário de Andrade. Sou o aluno Mário de Andrade que também aprendo. Como sou mais velho resolvi já algumas equações. Então, mostro não o resultado, mas como fiz elas. E depois, Drummond, quando a gente se liga assim numa amizade verdadeira tão bonita, é gostoso ficar junto do amigo, largado, inteirinho nu. As almas são árvores. De vez em quando uma folha da minha vai avoando poisar nas raízes da de você. Que sirva de adubo generoso. Com as folhas da sua, lhe garanto que cresço também. 

(Parte de uma das cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade)


ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, pp. 44-45.

2 comentários:

Lívio disse...

Que bonito, Bruna; bela escolha.

Bruna Caixeta disse...

Faço uso, com todo a licença, das palavras do Luís André Nepomuceno, que certa vez disse: "o Mário é sempre uma revelação, não?!".

Também gostei do trecho. Aliás, gosto demais de todas as cartas do Mário para o Drummond e para o Sabino. São muito belos e instrutivos os dizeres dele para os outros dois. No final da leitura das missivas, fico sempre com uma certeza: eu queria ter conhecido pessoalmente o Mário.

Que legal saber que tenha gostado do trecho, Lívio.

Um grande abraço.