quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Contos (2)

O rio das Quatro Luzes

O coração é como a árvore - onde quiser volta a nascer.
                                                      (Adaptação de um provérbio moçambicano)


Vendo passar o cortejo fúnebre, o menino falou:
- Mãe: eu também quero ir em caixa daquelas.
A alma da mãe, na mão do miúdo, estremeceu. O menino sentiu esse arrepio, como descarga da alma na corrente do corpo. A mãe puxou-o pelo braço, em repreensão.
- Não fale nunca mais isso.
Um esticão enfatizava cada palavra.
- Porquê, mãe? Eu só queria ir a enterrar como aquele falecido.
- Viu? Já está falar outra vez?
Ele sentiu a angústia em sua mãe já vertida em lágrima. Calou-se, guardado em si. Ainda olhou o desfile com inveja. Ter alguém assim que chore por nós, quanto vale uma tristeza dessas?
À noite, o pai foi visitá-lo na penumbra do quarto. O menino suspeitou: nunca o pai lhe dirigira um pensamento. O homem avançou uma tosse solene, anunciando a seriedade do assunto. Que a mãe lhe informara sobre seus soturnos comentários no funeral. Que se passava, afinal?
- Eu não quero mais ser criança.
- Como assim?
- Quero envelhecer rápido, pai. Ficar mais velho que o senhor.
Que valia ser criança se lhe faltava a infância? Este mundo não estava para meninices. Porque nos fazem com esta idade, tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada para outras idades, outras vidas? Deviam-nos fazer já graúdos, ensinados a sonhar com conta medida. Mesmo o pai passava a vida louvando a sua infância, seu tempo de maravilhas. Se foi para lhe roubar a fonte desse tempo, porque razão o deixaram beber dessa água?
- Meu filho, você tem que gostar viver, Deus nos deu esse milagre. Faça de conta que é uma prenda, a vida.
Mas ele não gostava dessa prenda. Não seria que Deus lhe podia dar outra, diferente?
- Não diga disso, Deus lhe castiga.
E a conversa não teve mais diálogo. Fechou-se sob ameaça de punição divina.
O menino permanecia em desistência de tudo. Sem nenhum portanto nem consequência. Até que, certa vez, ele decidiu visitar seu avô. Certamente ele o escutaria com maiores paciências.
- Avô, o que é preciso para se ser morto?
- Necessita ficar nu como um búzio.
- Mas eu tanta vez estou nuzinho.
- Tem que ser leve como lua.
- Mas eu já sou levinho como a ave penugenta.
- Precisa mais: precisa ficar escuro na escuridão.
- Mas eu sou tinto e retinto. Pretinho como sou, até de noite me indistinto do pirilampo avariado.
Então, o avô lhe propôs o negócio. As leis do tempo fariam prever que ele fosse retirado primeiro da vida. Pois ele falaria com Deus e requereria mui respeitosamente que se procedesse a uma troca: o miúdo falecesse no lugar do avô.
- A sério, avô? O senhor vai pedir isso por mim?
- Juro, meu filho. Eu amo de mais viver. Vou pedir a Deus.
E ficou combinado e jurado. A partir daí, o menino visitava o avô com ansiedade de capuchinho vermelho. Desejava saber se o velho não estaria atacado de doença, falho no respirar, coração gaguejado. Mas o avô continuava direito e são.
- Tem rezado a Deus, avô? Tem-Lhe pedido consoante o combinado?
Que sim, tinha endereçado os ajustados requerimentos. A troca das mortes, o negócio dos finais. Esperava deferimento, ensinado pela paciência. Conselho do avô: ele que, entretanto, fosse meninando, distraído nos brincados. Que, ainda agora, o que ele se lembrava era o mais antigo de sua existência. E lhe contou os lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio, perseguiram borboletas, adivinharam pegadas de bichos. O menino, sem saber, se iniciava nos amplos territórios da infância. Na companhia do avô, o moço se criançava, convertido em menino. A voz antiga era o pátio onde ele se adornava de folguedos. E assim sendo.
Uma certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se na sala e ordenou que o neto saísse. Queria falar, a sós, com os pais da criança. E o velho deu entendimento: criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece - nascermos em outras vidas. E mais nada falou.
- Agora já me vou - disse ele - porque senão ainda adormeço com minhas próprias falas.
- Fique, pai.
- Já assim velho, sou como o cigarro: adormeço na orelha.
Se ergueu e, na soleira, rodou como se tivesse sido assaltado por pedaço de lembrança. Acorreram, em aflição. O que se passava? O avô serenou: era apenas cansaço. Os outros insistiram, sugerindo exames.
- O pai vá e descanse com muito cuidado.
- Não é desses cansaços que nos pesam. Ao contrário, agora ando mais celestial que nuvem.
Que aquela fadiga era a fala de Deus, mensagem que estava recebendo na silenciosa língua dos céus.
- Estou ser chamado. Quem sabe, meus filhos, esta é nossa última vez?
O casal recusou despedir-se. Acompanharam o avô a casa e sentaram-no na cadeira da varanda. Era ali que ele queria repousar. Olhando o rio, lá em baixo. E ali ficou, em silêncio. De repente, ele viu a corrente do rio inverter de direcção.
- Viram? O rio já se virou.
E sorriu. Estivesse confirmando o improvável vaticínio. O velho cedeu às pálpebras. Seu sono ficou sem peso. Antes, ainda murmurou no ouvido de seu filho:
- Diga a meu neto que eu menti. Nunca fiz pedido nenhum a nenhum Deus.
Não houve precisão de mensagem. Longe, na residência do casal, o menino sentiu reverter-se o caudal do tempo. E os seus olhos se intemporaram em duas pedrinhas. No leito do rio se afundaram quatro luzências.
Da feição que fui fazendo, vos contei o motivo do nome deste rio que se abre na minha paisagem, frente à minha varanda. O rio das Quatro Luzes.


COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 111-115.

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