Certa vez, comentando o seu famoso quadro "Carta Branca (1965)", aquele da amazona que passa a cavalo entre as árvores, provocando um efeito visível-invisível, ele disse: "Coisas visíveis podem ser invisíveis. Se alguém cavalga por um bosque, a princípio o vemos, depois não, contudo, sabemos que está lá. A amazona oculta as árvores e estas ocultam-na também. Todavia, os nossos poderes de pensamento abrangem tanto o visível quanto o invisível. Eu faço uso da pintura para tornar os pensamentos visíveis."
O quadro acima joga com essas noções de visível-invisível e inesperado. Um pintor está olhando um ovo, mas, ao contrário de fielmente representá-lo - como poderia ser esperado -, pinta um pássaro. A cena, numa demonstração metalinguística, mostra o ofício do artista. Este é quem toma o real (visível) apenas como motivo para criação da obra - resultado que suscitará (ou será) a visão do invisível. Neste caso, o trabalho do artista nem seria com ter o real como objeto de arte, mas como, quase exclusivamente, o seu motivo. Motivo é diferente de objeto. O objeto pressupõe uma retratação fiel, o motivo não, ele é apenas o ponto de partida para outro retrato, diverso.
Num outro contexto vi esta pintura. Ela está como capa de uma revista acadêmica (MORUS - Utopia e Renascimento, 2009) dedicada à compilação de trabalhos que discutem o tema da utopia. A pintura fez uma grande representação do que a utopia vem a ser. Ela é o mesmo que olhar o real, mas numa perspectiva mais apurada, e enxergar-lhe outro, até num (suposto) estado avançado que o próprio pássaro sugere, pois que, tudo indica, será o que virá após o ovo. (Parênteses: espaço para humor: isso, é lógico, se não nos enlouquecermos a tentar chegar à solução do que vem primeiro: ovo ou a galinha. E também se eu não dispor a minha opinião de que sempre primeiro existirá o criador antes da criatura).
Fato é: utopista ou artista - no fundo não tem muita diferença-, tomam o real como Magritte o sugeriu na tela: a ser algo que não é evidente, esperado, visível. No mais, os dois conhecem o autêntico sentido de perspicácia - como é o próprio nome do quadro-, que repousa grandemente em conceber o real como outro, como lugar de convivência do visível-invisível, e, acima de tudo, como possibilidade.n
2 comentários:
Legal, Bruna. Isso me fez lembrar daquela velha história: o sujeito perspicaz pode aprender muito mais indo até a esquina mais próxima do que o não-perspicaz que viajou pelo mundo todo...
De fato, Lívio: a conquista da perspicácia não é algo que esteja associada ao viajar pelo mundo todo. O cosmopolitismo não é sua garantia. A ida até a esquina mais próxima pode ser mais motivo para desenvolvê-la do que outros lugares.
Penso que tudo dependerá é da capacidade do individuo para absorver o que vem (explícito e implícito) em cada situação.
Obrigada pelo comentário.
Grande abraço.
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