terça-feira, 10 de maio de 2011

Fragmentos (3)

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.


No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.


O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.


O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.


Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.


Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. 


Este fragmento faz parte de um discurso de paraninfo proferido por David Foster Wallace, escritor norte-americano, há uns anos em Kenyon College.  

8 comentários:

Bruna Caixeta disse...

O "Fragmento 3" é simultaneamente uma homenagem e um agradecimento ao meu estimado amigo Ismael. Foi ele quem me forneceu o texto no qual está esta citação, e também apresentou mais um nome para mim desconhecido: David Foster Wallace, cuja obra ainda pretendo conhecer. Parece que Wallace aproxima-se do estilo de J.D Salinger. Ainda pretendo conferir.

Muito obrigada, I., por mais uma nova e boa indicação.

Grande abraço.

Lívio disse...

Bruna, eu nada sabia do David Foster Wallace.

Legal que a tabelinha entre você e o Ismael tenha ancorado no blogue.

Ismael disse...

Bruninha, fico contente em saber que vc gostou do discurso ao ponto de publicá-lo aqui no "Brumas" e, dessa forma, propocionar que mais pessoas possam ler o belo texto de David Foster Wallace.
Fiquei contente também pela menção. É um privilégio pra mim.
Muito obrigado.
Abraço,
I.

Bruna Caixeta disse...

Lívio,

Eu também nada conhecia deste escritor, ou melhor, ainda nada conheço, a não ser o texto do qual tirei esta citação.

Quanto à tabelinha com o Ismael, ela é muito legal, pois que ele sempre tem algo novo e interessante; um exemplo disso está neste fragmento.

Um grande abraço.
_________

...falando do I...

I.,
acabei por selecionar do texto um fragmento não tão perfeitamente coerente com o que conversamos na internet, mas acho que ele é também uma parte interessante da discussão do escritor. É que gostei muito dessa discussão dele sobre veneração e sobre liberdade.

Muito me honra saber que você compartilha um pouco do seu vasto conhecimento comigo, pessoa que está longe de corresponder as suas indicações, reflexões, discussões e inteligência.

Um grande abraço.
Obrigada.

Ana Amélia disse...

Bruninha,

Eu adorei esses fragmentos! :) Para mim foi um texto de muita valia para o dia de hoje. Obrigada.

Beijos, Anita.

Bruna Caixeta disse...

Que bom, Anita!

Abraços.

Márcia disse...

Bruna,
Estive muito ocupada nesta semana e só agora li este fragmento. Adorei! Também não conhecia. Fascinante a forma como ele descreve a relação de aprisionamento entre o homem e suas escolhas. Especialmente, adorei a frase "morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado."
Um abraço filha
Mamãe

Bruna Caixeta disse...

Também achei o Wallace de reflexões fascinantes, mãe. Que legal saber que também tenha gostado dele.

Abração.