José Castello, em uma lembrança delicada de um breve diálogo entre Caio Fernando de Abreu e Clarice Lispector, saúda a literatura dizendo que “o mundo nunca precisou tanto dela”. É ela, segundo o escritor carioca, o antídoto para uma época abarrotada de verdades prontas.
Contra os modelos de sucesso vendidos por uma avalanche de coachings e blogueiros de lifestlyle, que hoje disputam lugar com os livros de autoajuda, Castello resgata algo mais eficaz para lidar com os eventos cotidianos da realidade real: a dúvida, entendida na sua fala não só como o questionamento daquilo que está fechado, pronto, supostamente acabado, como também a postura de viver a vida sem buscar obediências, se a modelos, líderes, coachings, influenciadores, etc.
Por assim dizer, e no resgate aos objetivos da literatura, Castello nos lembra que ela, contrária à correnteza da certeza e das realidades forjadas e blindadas dos enredos de coachings, não trabalha com prescrições e alentos prontos. Seus enredos afeitos a revelar como as coisas são de fato na realidade do mundo e do homem, permite aos homens o exercício de lida e leitura do real - através de meios como a ficção, a fantasia, a poesia, o mito.
Assim, comparando os modelos prontos com a 'dúvida da literatura', Castello nos faz lembrar que o papel da literatura não é o de conduzir, ditar, dar pronto, mas munir os homens de perguntas e histórias para possibilitar-lhes serem menos desorientados em vida.
Castello:
"Caio Fernando de Abreu contava uma comovente história de Clarice Lispector. Em Porto Alegre, depois de uma mesa-redonda, ele a convidou para uma caminhada pela Rua da Praia. Vasculharam livrarias, visitaram lojas, até que, exaustos, pararam para um café. Ele percebeu, então, que o humor de Clarice mudara. Parecia inquieta. “O que está havendo?”, perguntou ele. E ela, serenamente, respondeu: “É que eu queria saber: em que cidade nós estamos mesmo?”.
A história, delicada, estimula interpretações psicológicas ou mesmo médicas: estresse, esgotamento nervoso, uma pequena desorientação. Para além disso, no entanto, resume um aspecto crucial da personalidade de Clarice: a fome, insaciável, de perguntas. Ela nunca se sentia inteiramente segura. O mundo a intrigava – e a desassossegava. Até hoje muitos a definem como uma mulher estranha.
Mas como enfrentar um mundo tão pronto como o nosso senão com a dúvida? Livros de autoajuda, fórmulas mágicas de felicidade, padrões estéticos opressivos, dogmas sagrados que não admitem refutação: nossa vida está empanturrada de verdades. Em um universo saturado de respostas, a literatura, que se alimenta da incerteza e do perigo, conclui-se, perdeu o sentido. Pois não penso assim. Contra todos os que dizem que a literatura está decadente e ultrapassada, afirmo: o mundo nunca precisou tanto dela."
CASTELLO, José. Sábados inquietos. São Paulo: Leya, 2013, p. 33.
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