sábado, 7 de dezembro de 2019

"Entrevista com o professor" de Lívio Soares

Murilo é um professor de Inglês e Literatura do ensino regular recém-aposentado, que concede uma entrevista para a sua ex-aluna Jane, na ocasião em que ela está recolhendo conteúdo para sua tese de doutorado. Na varanda de um sítio, em um clima agradável e descontraído, Murilo relembra, entre outras coisas, os seus tempos de aluno, a sua postura como professor quando exercia a docência, a sua infância, adolescência e fase adulta, e manifesta sua opinião inteligente sobre assuntos variados: sobre o jeito de ser das pessoas de sua cidade natal (Terra das Almas) e do caudilhismo político que impera nela, sobre o atual cenário das escolas e da educação no Brasil, sobre os desgovernos e a violência da política e do cotidiano brasileiro e mundial; fala do poder e da importância da linguagem e da leitura; das recompensas humanas advindas do contato com as artes; cogita o sentido de amor e amar, e explica o sentido de ler e da educação, deixando relevantes insights sobre esses assuntos.

Essa conversa, que transita entre a autoficção e a crônica, é o enredo de "Entrevista com o professor" (Chiado Editora, Portugal), o mais recente livro de Lívio Soares de Medeiros, escritor natural de Patos de Minas. Do referido conteúdo, é bastante sobressalente o reconhecimento e agradecimento que Murilo faz aos professores que teve e às lições de vida e de boas pessoas que eles deixaram. Nesta época em que a profissão tem sido proscrita por regimes políticos mesquinhos e metodologias de ensino independentes, "Murilo" é um testemunho firme de reconhecimento da profissão professor, da sua importância real (não aquela falsa inventada por discursos de falastrões), mas do seu papel no desenvolvimento amplo de muitas pessoas.

Constatado na própria postura de respeito de Murilo à linguagem e à leitura, e na aversão à incultura e a mesquinhez humanas, a obra é também um manifesto de resistência branda e inteligente à falta de sentido da educação regular e da desvalorização da cultura.

Fiquei com muitas falas e "causos" do Murilo em mente. Recuperarei alguns para dar à conhecimento um pouco do conteúdo do livro.

Começo pela história do professor Tales.
Relata Murilo:


"Certa vez, durante a entrega de uma prova, Tales, com voz calma, disse algo assim: “Ué, Murilo, parece que você vai tirar zero. Nenhum resultado seu bate com os do gabarito.” Conferi os números corretos. Em comparação com as respostas certas, os números meus estavam exorbitantes. Além de mim, outros estudantes estavam em torno da mesa do Tales, que continuou: “Hum, vamos ver o que aconteceu... Ah, repare: sua conta está certa, não há erro nos cálculos, nas etapas que deveriam ser seguidas. Você chegou a esses resultados estranhos porque não fez a divisão por 1,5 dos dados iniciais. Se você tivesse feito a divisão, sua nota seria 10. Vamos fazer o seguinte: exceto pela divisão não feita, o restante dos cálculos estão certos; vou te dar 9,8. Pode ser?” Acho que até arregalei os olhos, tamanha minha surpresa. Perguntei para o Tales por que ele me tiraria só dois décimos. Ele argumentou dizendo que no mundo real eu refaria as contas, em virtude do resultado desmedido a que eu chegara. De acordo com o professor, eu me daria conta, estivesse de fato construindo uma casa, que meus cálculos implicariam comprar material em excesso para uma obra que era pequena. O Tales arrematou: “Foi só lapso seu. Por causa dele, vou tirar dois décimos.”

Noutra passagem relevante, Murilo comenta sobre a onda de exigência de professores “animadores de auditórios” e soterrados pelos atrativos das mídias.
A certa altura da conversa com Jane, ele afirma:

“O problema é que a educação tem exigido dos professores que eles sejam macaquinhos de auditório. Isso tanto se intensificou que boa parte dos alunos considera bom professor aquele que é o mais performático, o mais “engraçado”, o mais “carismático”. Um professor pode ser bom de conteúdo e ser ao mesmo tempo engraçado e carismático. A coisa se complica quando o teatro feito para, em tese, soar espirituoso soa mais importante do que o conhecimento. A escola está com medo de dizer para os estudantes que conhecimento dá trabalho. Ao querer soar engraçadinha, o mais comum é que ela negligencie o conhecimento, passando a investir num modelo de educação vazio, perigosamente fácil e desvirtuado. Nesse circo, quanto mais apalermado for o professor, mais competente e útil para o mercado ele será considerado. Numa atitude que nada tem a ver com educação, os que não conseguem dançar em consonância com essa música canhestra que é no fundo castradora e ilusória, por fazer da escola uma espécie de programa de auditório frívolo, acabam sendo pouco valorizados pelos chefes e pelos estudantes. A macaquice virou carisma, a dedicação necessária ao burilamento tornou-se caretice. A escola pode divertir, mas não deveria fazer disso uma estratégia obrigatória. O conhecimento não é lúdico o tempo todo, a vida não é lúdica o tempo todo. Não vejo sentido numa escola que alega preparar para a vida negar aos estudantes o fato ubíquo de que a vida é um negócio muito complexo. O excesso de ludicidade e o afã de fazer com que tudo seja leve e sem baques não cria gente preparada para a vida. É bem o contrário. Enquanto a escola insistir nesse modelo, os estudantes vão sair da escola ainda mais despreparados do que quando entraram.”

Em seguida, sobre as mídias e as tecnologias, ele diz:

“O mundo está cheio de coisas inúteis disputando a nossa atenção. Aplicativos, redes sociais, celulares, infrutíferas séries de TV, inúteis jogos eletrônicos. A escola não deveria ter como prioridade competir contra essas coisas. Ao querer para si essa competição, deixa de ser escola. Não faço um libelo contra a tecnologia, o que seria contraproducente. A tecnologia deve, sim, ser aliada, mas não pode ser um fim em si mesma nem pode ser uma ferramenta para maquiar falta de conhecimento.”

Por fim, em uma passagem que julgo a mais bela do livro, Murilo coloca o bom professor como aquele que “dá aulas com quem realiza um ato de generosidade”.
Murilo conta:


“Meus professores foram generosos comigo, a maioria de meus colegas professores foram generosos com os alunos deles. Só há um modo de melhorar a vida das pessoas, que é sendo generosas com elas. Ninguém há de negar que um sujeito como o Thomas Edison fez coisas que tiveram consequências boas na vida de muita gente. E nós, que não tivemos impacto na vida de tantas pessoas, como um Thomas Edison, temos condições de sermos grandes? Sim, temos, desde que sejamos generosos. O padeiro, o advogado, o gari ou o professor são grandes quando são generosos. A generosidade é um dos modos como cada um pode ser grande. É a grande contribuição que podemos dar ao mundo.”

Finalmente, Murilo revela que foi daqueles professores que não escolheu a profissão, mas não a levou como coisa sem sentido ou valor. O seu respeito às artes, à leitura e à linguagem, lhe deram uma postura que em sala de aula ao menos não deixaria os alunos pensar que estavam diante de algo irrelevante ou menor, ele se referia a leitura, ao legado dela e a trabalhos do gênero como possibilidades de o ser humano se tornar melhor.

Em outra bonita passagem, ele conclui:

“Quando em sala de aula, sempre me referi ao trabalho das pessoas. O que admiro nelas é o legado, pois não as conheci pessoalmente. Como era conviver com o Drummond? Não há como eu saber. O que eu exaltava sobre ele e sobre tantos outros, é o trabalho dele. Acredito mesmo que o que nos redime é o trabalho, o que deixamos. A tendência é sermos gentinha, gentalha. O talento exercido pode nos dar a possibilidade de nos elevarmos. Claro que há legados deploráveis, e evidentemente, há aqueles que admiro não por causa do legado, ou não somente por causa do legado, mas pelo que são. São poucos os que faço questão de estarem por perto. Mas somos todos assim, não?”

“Entrevista com o professor” é um livro cuja leitura é inspiradora, salutar, agradável.

MEDEIROS, Lívio Soares. Entrevista com o professor. Chiado Editora: Portugal, 2019.

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