domingo, 4 de março de 2018

O dom-juanismo segundo Albert Camus

A terceira e última temporada de Merlí, seriado do Netflix, estreou há algumas semanas. Ficou boa tanto quanto as anteriores: contando com as saídas criativas e inteligentes do professor de Filosofia para as situações do cotidiano escolar e pessoal, e as suas desenvoltas e curiosas exposições em aula. Um dos episódios mais atraentes, para mim, foi o terceiro. Nele, Merlí menciona Albert Camus e comenta sua obra "O mito de Sísifo". Ele começa sua aula da seguinte forma: "Levamos vidas chatas, monótonas e repetitivas até que um dia nos perguntamos: 'qual o sentido da minha vida'?" Segundo ele, é justamente essa pergunta pelo sentido da vida que norteia a obra do escritor francês Albert Camus.
Para Camus, querer imprimir um sentido profundo às coisas e esperar daí que a vida tenha um sentido grandiloquente representaria o grande absurdo da existência. Segundo o escritor, a pretensão de dar sentido às coisas é o motivo por excelência da infelicidade na vida cotidiana e um indício de que ainda não aprendemos a viver. Quando paramos de pensar que há coisas que dão, ou devem ser capazes de dar sentido à vida, e, ao contrário, simplesmente aceitamos que a existência é incoerente, superficial e entediante, e deste modo deve ser encarada e também vivida, finalmente passamos a viver bem, ou, ao menos, melhor. Aquele que será capaz aceitar o absurdo da existência, viverá bem; o que confrontar essa verdade, aprenderá a viver. Eis a lição. Eis a oportunidade de repetir um pouco menos a sina de Sísifo. A exposição de Merlí me levou ao livro "O mito de Sísifo" de Albert Camus. No início da obra, Camus se vale de uma figura lendária para exemplificar alguém que aprendeu a viver. Essa figura é - inesperadamente! -, Don Juan, o famoso sedutor e mulherengo. Don Juan visto por Camus, no entanto, tem por trás desses atributos conhecidos, um modo de vida condizente com a forma de vida ideal para esta existência. Ele simultaneamente ensina e vive o que postula a frase de David Trueba no romance "Blitz": "o sentido da vida é viver seguindo o sentido da vida." Don Juan não vive esperando da vida, nem vive esperando. Fez dela uma ciência sem ilusões, sem profundidade, do agora. Don Juan não enfrenta um problema moral, não é condenado por desejo de ser santo, não vive de esperanças. Don Juan não espera ser nada, somente se apronta para viver o que está no cotidiano; vive e caminha segundo a nota do presente, o percurso ditado pelo tempo e a ocasião. Camus amplia o sentido "moral-cristão" da imagem de Don Juan mulherengo e, por isso, imoral, e explica: "seria um erro igualmente grande considerá-lo um imoralista. [...] Seduzir é sua condição. Somente nos romances as pessoas mudam de condição ou se tornam melhores. Mas pode-se dizer que ao mesmo tempo nada mudou e tudo se transformou. O que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende à qualidade. A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. [...] O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan não pensa em "colecionar" mulheres. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. [...] Amar e possuir, conquistar e esgotar, e só - eis sua maneira de conhecer, de viver." A apresentação que Albert Camus faz de Don Juan, alcunhando-a "dom-juanismo" (justamente por se remeter a um modo de vida - ao modo de viver condizente com a realidade da vida), faz-nos entender Don Juan por outros olhos, olhos menos cristianizados, e mais crus, superficiais e secos, ao modo bastante consonante com a realidade.
O "dom-juanismo" de Camus é uma oportunidade de avaliação interessante sobre modos de existir, sobre uma forma melhor de viver. Sem dúvidas o capítulo vale uma leitura completa! Aqui abaixo transcrevo o trecho todo.
Antes dele ainda, contudo, uma última informação relevante e oportuna neste momento que remeto a Albert Camus: boa parte da sua obra, tanto aqueles títulos mais conhecidos - "O estrangeiro", "A peste", "A queda" -, quanto os menos - como esse "O mito de Sísifo" -, estão ganhando edições fresquinhas pela Editora Record. Quem interessar pelo autor e/ou obra(s), é um bom tempo para conhecer ambos. Ao trecho "Dom-juanismo", de "O mito de Sísifo": 2 O dom-juanismo Se amar bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam profundamente e só conseguem fazê-lo sentir necessidade dessa repetição. "Por fim", exclama uma delas, "te dei o amor". Não surpreende que Don Juan ria dela: "Por fim? Não" - diz ele -, "outra vez." Por que seria preciso amar raramente para amar muito? DON JUAN ESTÁ TRISTE? Não é verossímil. Quase não vou apelar para a crônica. Esse riso, a insolência vitoriosa, os pulos e o gosto pelo teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se multiplicar. Don Juan também. Mas, além do mais, os tristes têm duas razões para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança. Don Juan sabe e não tem esperança. Faz lembrar esses artistas que conhecem seus limites, nunca os ultrapassam e, no intervalo precário onde seu espírito se instala, possuem a maravilhosa facilidade dos mestres. E está justamente aí o gênio: a inteligência que conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física, Don Juan ignora a tristeza. A partir do momento em que sabe, seu riso explode e consegue que tudo lhe seja perdoado. Foi triste no tempo em que esperou. Hoje, na boca dessa mulher, torna a encontrar o sabor amargo e reconfortante da ciência única. Amargo? Quase: essa necessária imperfeição que torna perceptível a felicidade! É um grande engano pretender ver em Don Juan um homem que se nutre do Eclesiaste. Porque, para ele, a única vaidade é a esperança de outra vida. Ele o prova, porque aposta contra o próprio céu. O lamento do desejo perdido no deleite, esse lugar-comum da impotência, não lhe pertence. Isto funciona para Fausto, que acreditou suficientemente em Deus para se vender ao diabo. O "Trapaceiro" de Tirso de Molina responde sempre às ameaças do inferno: "Que prazo grande você me dá!" O que vem depois da morte é fútil, e que longa série de dias para quem sabe que está vivo"! Fausto exigia os bens deste mundo: o infeliz só precisava estender a mão. Já era vender sua alma o fato de não saber desfrutar dela. Don Juan, pelo contrário, busca a saciedade. Se abandona uma bela mulher não é de maneira alguma porque não a deseje mais. Uma bela mulher sempre é desejável. Mas acontece que, nela, deseja outra, o que não é a mesma coisa. Esta vida o completa, não há nada pior que perdê-la. Esse louco é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança se sentem pouco à vontade nesse universo onde a bondade cede seu lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a comunhão à coragem solitária. E todos dizem: "Era um fraco, um idealista ou um santo." É preciso rebaixar a grandeza que insulta. O DISCURSO DE DON JUAN provoca bastante indignação (ou a risada cúmplice que degrada aquilo que admira, assim como aquela frase que serve para todas as mulheres. Mas, para quem busca a quantidade de prazeres, só interessa a eficácia. Para que complicar as fórmulas que funcionaram bem? Ninguém, a mulher ou o homem, as ouve só ouvem a voz que as pronuncia. São a regra, a convenção e a cortesia. Elas são ditas, e depois o mais importante ainda falta fazer. Don Juan já se prepara para isso. Por que teria um problema moral? Não é condenado por desejo de ser santo, como o Mañara de Milosz. O inferno para ele é coisa provocada. Só há uma resposta para a cólera divina: a honra humana: "Sou um homem honrado", diz ele para o Comendador, "e cumpro minha promessa porque sou um cavalheiro." Mas seria um erro igualmente grande considerá-lo um imoralista. Neste sentido, ele é "como todo mundo": tem a moral de sua simpatia ou sua antipatia. Para entender bem Don Juan, é preciso referir-nos sempre ao que ele simboliza vulgarmente: o sedutor comum e o mulherengo. Ele é um sedutor comum. Com uma diferença: é consciente, e portanto é absurdo. Um sedutor que adquiriu lucidez não mudará por isso. Seduzir é sua condição. Somente nos romances as pessoas mudam de condição ou se tornam melhores. Mas pode-se dizer que ao mesmo tempo nada mudou e tudo se transformou. O que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende à qualidade. A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan não pensa em "colecionar" mulheres. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser capaz de viver do passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira de esperança. Não sabe contemplar os retratos. SERÁ POR ISSO EGOÍSTA? À sua maneira, sem dúvidas. Mas, também aqui, precisamos nos entender bem. Há gente que é feita para viver e gente que é feita para amar. Don Juan, ao menos, diria isto de bom grado. Mas para escolher precisaria de um atalho. Porque o amor de que ele fala é aqui adornado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas em paixão nos ensinam isso, não há amor eterno a não ser o contrariado. Não existe paixão sem luta. Um amor assim só termina com a última contradição, que é a morte. Você tem que ser Werther, ou nada. Aí também há várias maneiras de suicidar-se, uma das quais é a doação total e o esquecimento da própria pessoa. Don Juan, como qualquer um, sabe que isso pode ser emocionante. Mas ele é dos poucos a saber que não é o mais importante. Sabe muito bem: aqueles que são afastados de toda a vida pessoal por um grande amor talvez se enriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo seu amor. Uma mãe, uma mulher apaixonada têm necessariamente o coração seco, porque afastado do mundo. Um único sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo acaba devorado. É outro amor o que faz Don Juan estremecer, e este é libertador. Traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor provém de saber-se perecível. Don Juan escolheu não ser nada. Para ele, a questão é ver claro. Só chamamos de amor o que nos une a certos seres por influência de um ponto de vista coletivo gerado nos livros e nas lendas. Mas do amor só conheço a mistura de desejo, ternura e entendimento que me liga a determinado ser. Tal composto não é o mesmo em relação a outro. Não tenho o direito de revestir todas essas experiências com o mesmo nome. Isto dispensa de realizá-las com os mesmos gestos. Também aqui o homem absurdo multiplica o que não pode unificar. Assim, descobre uma nova maneira de ser que o libera tanto quanto libera o próximo. Não há amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular. São todas essas mortes e esses renascimentos que constituem para Don Juan o eixo de sua vida. É a maneira que ele tem de dar e de fazer viver. Será que se pode falar de egoísmo? PENSO AGORA EM TODOS os que desejam um castigo para Don Juan seja como for. Não apenas na outra vida, mas também nesta. Penso em todas as histórias, lendas e brincadeiras sobre Don Juan envelhecido. Mas Don Juan está preparado para isso. Para um homem consciente, a velhice e o que esta pressagia não são nenhuma surpresa. Ele é consciente dela na medida em que não oculta de si mesmo o seu horror. Em Atenas havia um templo consagrado à velhice, aonde levavam as crianças. No caso de Don Juan, quanto mais se ri dele, mais se destaca sua figura. Ele recusa, assim, a imagem que os românticos lhe atribuíram. Ninguém quer rir desse Don Juan atormentado e lastimável. Têm compaixão dele, será que o próprio céu o redimirá? Mas não se trata disso. No universo que Don Juan vislumbra, o ridículo "também" está incluído. Ser punido lhe parece normal. É a regra do jogo. E sua generosidade consiste, justamente, em ter aceito inteiramente a regra do jogo. Mas ele sabe que tem razão e que não pode tratar-se de castigo. Um destino não é uma punição. Este é o seu crime, e se entende que os homens do eterno exijam um castigo. Don Juan chegou a uma ciência sem ilusões que nega tudo o que eles professam. Amar e possuir, conquistar e esgotar, eis sua maneira de conhecer. (Tem sentido esta escolha das Escrituras, que chamam de "conhecer" o ato do amor). Na medida em que ignora, é pior inimigo deles. Um cronista informa que o verdadeiro "Trapaceiro" morreu assassinado por franciscanos que quiseram "dar fim aos excessos e impiedades de Don Juan, cujo nascimento garantia a sua impunidade." E depois proclamaram que o céu o tinha fulminado. Ninguém provou esse estranho fim. Ninguém tampouco demonstrou o contrário. Mas mesmo sem questionar se isso é verossímil, posso dizer que é lógico. Quero grifar aqui o termo "nascimento" e jogar com as palavras: o que garantia a sua inocência era viver. Só na morte ele adquiriu uma culpa, agora lendária. Que outra coisa significa o Comendador de pedra, essa fria estátua animada para castigar o sangue e a coragem que ousaram pensar? Nele se resumem todos os poderes da Razão eterna, da ordem, da moral universal, toda a grandeza externa de um Deus acessível à cólera. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza apenas os poderes que Don Juan sempre negou. Mas a missão do Comendador para aí. O raio e o trovão podem voltar ao céu fictício de onde foram chamados. A verdadeira tragédia se desenrola à margem deles. Não, Don Juan não morreu sob uma mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada insensata do homem sadio provocando um deus que não existe. Mas acredito, principalmente, que na noite em que Don Juan estava esperando na casa de Ana, o Comendador não apareceu e o ímpio deve ter sentido, depois de meia-noite, a terrível amargura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento. Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como serviu a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem eloquência e, como ele sabe, também sem profundidade. Vejo Don Juan numa cela daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para os fantasmas dos amores passados, mas, talvez, por uma seteira ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um alto diante dessa imagem melancólica e radiante. O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível."
Albert Camus. "O mito de Sísifo". Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 75-81.

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