Após o escândalo de seu relacionamento homossexual, o escritor irlandês Oscar Wilde foi julgado e condenado à prisão por dois anos. Enquanto estava na prisão escreveu "De profundis" (Das profundezas), uma carta endereçada ao Lord Alfred Douglas (apelidado Bosie), seu amante.
Wilde se sentia abandonado por Bosie, que não lhe escrevera nenhuma linha durante os dois anos de cárcere, e, na carta reflete sobre a qualidade do relacionamento entre os dois. Segundo os relatos de Wilde, Bosie era o tipo incapaz de ficar sozinho, lhe roubava o tempo de trabalho, prejudicando sobretudo sua produção literária, e, quando contrariado, fazia cenas terríveis que deixavam Wilde esgotado.
A carta de Wilde, para além, mais do que uma exposição de seu relacionamento intenso, é uma reunião de avaliações do autor sobre algumas das melindrosas experiências humanas, no caso dele, sobretudo aquelas advindas de suas emoções e vivências fora e dentro da prisão. Wilde faz reflexões de seu modo de preparação para lidar com a "culpa da prisão", que estava certo que a sociedade impiedosamente lhe lançaria em sua saída do cárcere; e uma análise, uma reconsideração motivada pela experiência e o isolamento da prisão, de suas próprias conclusões sobre um número de conceitos humanos: sobre o que é o amor, a religião, a razão, o ódio, a tristeza, a compaixão, o indivíduo, as leis, entre tantos outros.
"De profundis" é um verdadeiro documento da confrontação de Wilde com a sua própria personalidade; e com personalidades: dela com Bosie, da de Bosie ele/e com ele mesmo; deles com o pai e a mãe de Bosie, e de algumas figuras canônicas e padrões de comportamento humano da História, como Jesus Cristo.
Wilde, ao longo do texto, comenta de sua vontade de que a Bosie, a carta, ao final da leitura, sirva de autoconhecimento. Não de modo diferente, ela deste modo lhe servira. Esse pedido é oportuno e, não à toa, a posfaciadora da edição da epístola publicada pela Editora Tordesilhas, Munira Mutran, revela que, para muitos críticos, "De profundis" ficou considerada a autobiografia do autor no gênero da confissão.
É um texto que nos transmite a sensação de que cada frase gestada, custou uma viagem ao mais profundo de si e uma confrontação franca e séria com as emoções e situações. É um texto de nobreza espiritual e da maior elevação humana. Imperdível!
Selecionei dele, uma passagem em que Wilde apresenta o amor e o ódio como duas rotas de vida à escolha do ser humano, e aponta a escolha de Bosie por viver a vida acomodada no sentimento de ódio para com todos - para com ele mesmo, para com os outros e para com as situações de vida; o que lhe faz ser ressentido com tudo, um frequente criador de polêmicas ocas, um amante da luxúria e atrás de se perder cada dia em um vício novo. Enfim, por causa de optar viver pelo ódio, Bosie é deixado ser levado por uma vida tosca e continuamente se torna mais baixo como ser humano.
O trecho mostra como uma opção por odiar pode significar tornar os objetivos de um vida mesquinhos e se tornar pior como pessoa: cultivar apenas pobres interesses e paralisar uma vida inteira, interromper o advento de suas possibilidades plurais, enriquecedoras e boas. Wilde define o sentimento, perverso, do ódio, como uma das mais grandiosas atrofias que pode acontecer a uma vida humana que lhe faz opção.
Em contrapartida, oferecendo um lampejo de frescor, traz uma bonita reflexão sobre o amor, como um modo de vida rico, vivo, compartilhado, expansivo, autêntico, alegre, jovem; que permite àqueles que lhe optam, desfrutarem de tudo isso, e ainda serem capazes de ter compaixão, atenção e humanidade para/pelos os outros. É o amor o sentimento da beleza por excelência. Está, do mesmo modo que o ódio, acessível ao alcance de uma escolha.
Por fim, em um outro momento posterior da carta, o autor também comenta sobre a opção de vida pelo amor, e a sua opção de vida pelo amor mesmo diante da experiência do cárcere. É belíssima a passagem! - mas, essa, fica de convite para espiarem o livro.
"Sim, sei que me amava. Independentemente de como fosse sua conduta em relação a mim, sempre achei que no fundo você de fato me amava. [...] Mas, como eu mesmo, conhecera uma terrível tragédia em sua vida, embora de caráter inteiramente oposto da minha. Quer saber qual era? Era a seguinte. Em você, o Ódio sempre foi mais forte do que o amor. O ódio a seu pai tinha tal estatura que sobrepujava, subvertia e eclipsava inteiramente seu amor por mim. Não havia o menor embate entre os dois, ou muito pouco: tal a dimensão de seu ódio e a forma monstruosa como crescia. Você não percebeu que não há espaço para ambas as paixões na mesma alma. Elas são incapazes de conviver nessa morada belamente esculpida. O Amor é alimentado pela imaginação, por meio da qual nos tornamos mais sábios do que somos: pela qual, podemos compreender os outros em suas relações reais, assim como ideais. Apenas o que é belo, e belamente concebido, pode alimentar o amor. Mas o ódio é alimentado por qualquer coisa. [...]
O Ódio cega as pessoas. Você não tinha consciência disso. O Amor consegue ler o que está escrito na mais remota estrela; mas o Ódio o cegou de tal modo que você era incapaz de enxergar além do jardim estreito, murado e estiolado pela luxúria de seus desejos ordinários. Sua terrível falta de imaginação, o único defeito realmente fatal de seu caráter, foi resultado apenas do Ódio que o habitava. Sutil e silenciosamente, e em sigilo, o ódio corroeu sua natureza, assim como o líquen consome a raiz de um salgueiro qualquer, até o ponto em que você não podia mais enxergar nada além de seus mais pobres interesses e seus mais mesquinhos objetivos. Aquela faculdade em você que o Amor poderia ter fomentado, o Ódio a envenenou e paralisou. O Ódio lhe concedeu cada pequena coisa que almejou. Ele foi um mestre indulgente para você. Assim é, na verdade, com todo aquele que se põe ao seu serviço. [...]
O Ódio, você ainda está por descobrir, é, intelectualmente falando, a Eterna Negação. Considerado do ponto de vista das emoções, é uma forma de Atrofia, e destrói tudo mais a não ser ele mesmo."
Oscar Wilde. "De profundis". Trad. Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Alaúde Editorial/ Tordesilhas, 2014, p. 53-61.
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