Em outra postagem, eu discuti o conceito de solidão cunhado por Michel de Montaigne no seu ensaio "Da solidão". Na oportunidade, disse que, para Montaigne, a solidão consistiria em uma ação de desvinculo das influências populares e das coerções das ocupações da vida pública, e por conseguinte, o maior recolhimento e dedicação do indivíduo à sua vida particular - consistindo isso, não propriamente em viver só, ou afastado da multidão, mas em viver por si no mundo. Expus também que esse conceito de solidão elaborado por Montaigne não deixaria de se constituir em uma defesa da vida individual - e também muitas vezes, de modo inevitável, da vida privada. Ele seria, em primeira e última instância, a afirmação da autonomia do indivíduo no mundo.
Na semana que se passou, lendo o excelente e monumental livro: Paideia: a formação do homem grego, novamente me deparei com essa temática, um tanto quanto problemática, da confrontação da vida pública com a vida particular. Werner Jaeger, o autor do livro, mostra como em determinado momento da história da formação dos gregos, a individualidade se constituiu em um problema, e a superação dela, a partir da criação da cidade-Estado grega - em outros termos, da vida coletiva, pública -, garantiu a prosperidade da cidade e da vida na Grécia, a felicidade de seus habitantes. Em uma expressão, nasceu o modelo ocidental de civilização, pela excelência da paideia, palavra cujo significado é: a formação geral/global (política, educação, sociedade, etc) dos gregos. A educação dos indivíduos orientada para o serviço e o cuidado da vida pública, acima e primeiro que aquela educação para a subjetividade e individualidade, aos olhos dos tratadistas gregos de Estado, era a melhor forma, ou a forma melhor possível, de se atingir uma civilização excelente.
Dito isso, através da exposição de Jaeger, fica nítido o quanto para os gregos, o culto da vida pública, da cidade e da pátria (no sentido que eles davam para essas instâncias na época helênica) era mais importante e garantia de uma sociedade feliz, ao contrário da defesa da vida individual, do livre-arbítrio, a proclamação do indivíduo - encontrado no ensaio de Montaigne, escritor herdeiro do pensamento humanista promotor da autonomia individual e da capacidade humana, então recém-nascido com a Idade Moderna.
Pois bem, sem ser admoestada, e ao mesmo tempo, me licenciando por conta própria da barreira do raciocínio histórico da evolução das eras e valores sociais de cada época, dos fracassos de comunidades humanas adeptas do comunismo e daquelas (da qual a nossa faz parte) que cultuam um individualismo cada vez mais feroz, eu me pus uma questão ao final da leitura dos capítulos do livro de Jaeger que apresentam esse problema da individualidade em confronto com a coletividade; a partir de uma aproximação que fiz da exposição dele sobre a visão de sociedade e vida para os gregos com aquela da solidão e vida individual feita por Montaigne em "Da solidão", fiquei a me indagar: qual viria a ser a forma de educação e formação humanas excelentes, para viver melhor no mundo, no qual desempenhamos uma vida individual e coletiva? Seria aquela de uma educação para a individualidade, em primeiro plano? Ou voltada para a ideia de nação, e dos interesses públicos? Poderia ser essa uma questão-chave para reorientar as políticas de formação e educação dos seres humanos? Se a formação humana (aqui, como Jaeger, optarei pelo termo "formação" ao invés de um só "educação", "cultura", para designar uma constituição mais geral da formação do indivíduo) é a que garante a constituição de uma sociedade, como ela deveria ser?
Abaixo deixo transcrito os trechos do livro de Werner Jaeger no qual ele relata a formação dos gregos, das suas cidades-Estado e outros temas afins. Os trechos da obra, em confrontação com o ensaio de Montaigne, são colocados aqui aproximados, como sugestão à consideração dessa problemática da vida individual e coletiva envolvendo a formação/educação do homem.
Aos trechos:
"Os antigos relatos dão-nos de Esparta a imagem de um acampamento militar permanente. Essa aparência vinha muita mais da constituição inteira da comunidade do que de uma ânsia de conquista. [...] A assembleia do povo espartano não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela nenhuma discussão. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. Este tem direito a dissolver a assembleia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável. O eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o poder político da realeza. A sua organização representa um poder moderador no conflito de forças entre os senhores e o povo. Concede ao povo um mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida pública tradicional. É significativo que o eforato seja a única instituição não atribuída à legislação de Licurgo.
Na semana que se passou, lendo o excelente e monumental livro: Paideia: a formação do homem grego, novamente me deparei com essa temática, um tanto quanto problemática, da confrontação da vida pública com a vida particular. Werner Jaeger, o autor do livro, mostra como em determinado momento da história da formação dos gregos, a individualidade se constituiu em um problema, e a superação dela, a partir da criação da cidade-Estado grega - em outros termos, da vida coletiva, pública -, garantiu a prosperidade da cidade e da vida na Grécia, a felicidade de seus habitantes. Em uma expressão, nasceu o modelo ocidental de civilização, pela excelência da paideia, palavra cujo significado é: a formação geral/global (política, educação, sociedade, etc) dos gregos. A educação dos indivíduos orientada para o serviço e o cuidado da vida pública, acima e primeiro que aquela educação para a subjetividade e individualidade, aos olhos dos tratadistas gregos de Estado, era a melhor forma, ou a forma melhor possível, de se atingir uma civilização excelente.
Dito isso, através da exposição de Jaeger, fica nítido o quanto para os gregos, o culto da vida pública, da cidade e da pátria (no sentido que eles davam para essas instâncias na época helênica) era mais importante e garantia de uma sociedade feliz, ao contrário da defesa da vida individual, do livre-arbítrio, a proclamação do indivíduo - encontrado no ensaio de Montaigne, escritor herdeiro do pensamento humanista promotor da autonomia individual e da capacidade humana, então recém-nascido com a Idade Moderna.
Pois bem, sem ser admoestada, e ao mesmo tempo, me licenciando por conta própria da barreira do raciocínio histórico da evolução das eras e valores sociais de cada época, dos fracassos de comunidades humanas adeptas do comunismo e daquelas (da qual a nossa faz parte) que cultuam um individualismo cada vez mais feroz, eu me pus uma questão ao final da leitura dos capítulos do livro de Jaeger que apresentam esse problema da individualidade em confronto com a coletividade; a partir de uma aproximação que fiz da exposição dele sobre a visão de sociedade e vida para os gregos com aquela da solidão e vida individual feita por Montaigne em "Da solidão", fiquei a me indagar: qual viria a ser a forma de educação e formação humanas excelentes, para viver melhor no mundo, no qual desempenhamos uma vida individual e coletiva? Seria aquela de uma educação para a individualidade, em primeiro plano? Ou voltada para a ideia de nação, e dos interesses públicos? Poderia ser essa uma questão-chave para reorientar as políticas de formação e educação dos seres humanos? Se a formação humana (aqui, como Jaeger, optarei pelo termo "formação" ao invés de um só "educação", "cultura", para designar uma constituição mais geral da formação do indivíduo) é a que garante a constituição de uma sociedade, como ela deveria ser?
Abaixo deixo transcrito os trechos do livro de Werner Jaeger no qual ele relata a formação dos gregos, das suas cidades-Estado e outros temas afins. Os trechos da obra, em confrontação com o ensaio de Montaigne, são colocados aqui aproximados, como sugestão à consideração dessa problemática da vida individual e coletiva envolvendo a formação/educação do homem.
Aos trechos:
"Os antigos relatos dão-nos de Esparta a imagem de um acampamento militar permanente. Essa aparência vinha muita mais da constituição inteira da comunidade do que de uma ânsia de conquista. [...] A assembleia do povo espartano não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela nenhuma discussão. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. Este tem direito a dissolver a assembleia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável. O eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o poder político da realeza. A sua organização representa um poder moderador no conflito de forças entre os senhores e o povo. Concede ao povo um mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida pública tradicional. É significativo que o eforato seja a única instituição não atribuída à legislação de Licurgo.
Essa pretensa legislação é o contrário do que os gregos costumavam entender por legislação. Não é uma compilação de leis particularizadas, civis e públicas, mas sim o nómos, no seu sentido original da palavras: uma tradição oral válida, da qual apenas algumas leis fundamentais e solenes - as rhetra - foram fixadas por escrito. Entre estas estão as que se relacionam com as atribuições das assembleias populares, mencionadas por Plutarco. As fontes antigas não consideram essa faceta como resíduo de um estágio primitivo. Pelo contrário, e em oposição à mania legisladora da democracia do século IV, têm-na como obra da sabedoria previdente de Licurgo, o qual, como Sócrates e Platão, dava maior importância à força da educação e à formação da consciência dos cidadãos do que às prescrições escritas. Com efeito, quanto maior importância se concede à educação e à tradição oral, menor é a coação mecânica e externa da lei sobre todos os detalhes da vida. No entanto, a figura do grande estadista e pedagogo Licurgo é uma interpretação idealizada da vida de Esparta, vista pelos ideias de educação da filosofia posterior.
Ao compararem-na com o estado lastimoso da democracia ática degenerada, os filósofos tratadistas foram levados a encarar as instituições como invenção consciente de um legislador genial. Na vida dos espartanos - nas suas refeições coletivas e na sua organização guerreira, instalada em tendas de campanha, no predomínio da vida pública sobre a privada e na estruturação estatal dos jovens de ambos os sexos e, finalmente, na rígida separação entre a população agrícola e industrial "plebeia" e os senhores livres, devotados só aos deveres citadinos, à prática guerreira e à caça - viu-se a realização consciente de um ideal de educação análogo ao que Platão propõe na República. Na verdade, Esparta foi, em muitos aspectos, modelo para Platão e outros teóricos da educação posteriores a ele, embora neles vivesse um espírito completamente novo. O grande problema social de toda a educação posterior foi a superação do individualismo e a formação dos homens de acordo com normas obrigatórias da comunidade. O Estado espartano, com a sua autoridade rigorosa, surgiu como a solução prática desse problema. Nesse detalhe, ocupou o pensamento de Platão durante a vida inteira. Também Plutarco, profundamente impregnado do pensamento de Platão, voltou constantemente a esse ponto. A educação estendia-se aos adultos. Ninguém era livre nem podia viver a seu bel-prazer. Tal como num acampamento, na cidade todos tinham as suas ocupações e modo de vida regulamentados em função das necessidades do Estado e tinham consciência de não pertencerem a si próprios, mas à Pátria. Em outro lugar, escreve: Licurgo habituava os cidadãos a não terem nem desejo nem capacidade para fazerem vida privada. Pelo contrário, levava-os a se consagrarem à comunidade e agruparem-se em torno do seu senhor, libertando-os do culto do eu pessoal, para pertencerem inteiramente à Pátria.
[...]
[...]
Na medida em que o engloba no seu cosmo
político, o Estado dá ao homem, ao lado da vida privada, uma espécie de segunda
existência, o βίος πολιτιkός. Todos
pertencem a duas ordens de existência, e na vida do cidadão há uma distinção
rigorosa entre o que lhe é próprio (ίδιον) e o que é comum (κοινόν). O homem
não é só "idiota"; é "político" também. Precisa ter, ao
lado da habilidade profissional, uma virtude cívica genérica, a πολιτιχή άρετή, pela qual se põe em
relações de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da pólis. Torna-se evidente, assim, que a
nova política do Homem não pode estar vinculada, como a educação popular de
Hesíodo, à ideia do trabalho humano. A concepção de areté hesiódica estava impregnada do conteúdo da vida real e o do éthos profissional da classe rural, a
que se dirigia. Se contemplarmos o processo evolutivo da educação grega a
partir do ponto de vista hodierno, inclinar-nos-emos a crer que o novo
movimento teria de aceitar o programa de Hesíodo: substituir a formação geral
da personalidade, própria dos nobres, por um novo conceito de educação popular,
em que se avaliava cada homem pela eficácia do seu trabalho específico, e o bem
da comunidade resultaria de cada um realizar com a máxima perfeição possível o
seu trabalho particular, tal como o aristocrata Platão exigia no Estado
autoritário da sua República,
dirigido por uma minoria espiritualmente superior. Estaria de acordo com o tipo
de vida popular e a diversidade dos seus mestres; o trabalho não seria uma
vergonha, mas o fundamento único da consideração citadina. No entanto, e sem
prejuízo do reconhecimento desse importante fato social, a evolução real seguiu
um curso completamente diverso.
O que realmente era novo e trouxe
definitivamente consigo a urbanização progressiva e geral do Homem foi a
exigência de todos os indivíduos participarem ativamente no Estado e na vida
pública e adquirirem consciência dos seus deveres cívicos, completamente
diversos daqueles da esfera da sua profissão privada. Essa aptidão “geral”,
política, pertencia até então unicamente aos nobres. Estes exerciam o poder
desde tempos imemoriais e tinham uma escola superior e ainda indispensável. O
novo Estado não podia esquecer esta areté,
se compreendia corretamente os próprios interesses. Bastava-lhe evitar a sua
exploração em proveito do interesse pessoal e da injustiça. Era esse, em todo o
caso, o ideal, tal como o exprimem Péricles e Tucídides. Assim, tanto na livre
Jônia como na severa Esparta, a formação política encontrava-se intimamente
ligada à antiga educação aristocrática, isto é, ao ideal da areté que abarca o Homem inteiro com
todas as suas faculdades. Não deixou de lado os direitos da moral do trabalho,
de Hesíodo; mas o ideal do cidadão, apto a proferir belas palavras e realizar
ações. Os homens dirigentes da burguesia ascendente deviam atingir esse ideal,
e até os indivíduos da grande massa deviam participar, em certa medida, no
pensamento dessa areté.
Essa evolução foi extraordinariamente
rica de consequências. Recorde-se que Sócrates, mais tarde, levantou, na sua
crítica da democracia, o problema da relação entre a habilidade profissional e
a educação política. Para Sócrates, filho de um pedreiro, um simples operário,
constituía um paradoxo surpreendente o fato de um sapateiro, um alfaiate ou um
carpinteiro precisarem no seu trabalho de um certo saber autêntico, ao passo
que ao político bastava uma educação genérica, de conteúdo bastante
indeterminado, embora o seu “ofício” tratasse de coisas muito mais importantes.
É claro que o problema só se podia colocar nesses termos numa época para a qual
se tornava evidente que a areté
política devia ser um poder e um saber. Observada por esse prisma, a falta
daquela habilidade especial aparecia diretamente como a essência da democracia.
Na realidade, porém, para a cidade-Estado mais antiga a virtude política não
era um problema predominantemente intelectual. Já mostramos o que entendiam por
virtude cívica. Quando o novo estado jurídico apareceu, a virtude dos cidadãos
consistiu na livre submissão de todos, sem distinção de dignidade ou de sangue,
à nova autoridade da lei. Para essa concepção de virtude política, o éthos era muito mais importante que o logos.
Para ele, tinham muito maior importância a fidelidade à lei e a disciplina que
a questão de saber até que ponto o homem comum estava apto a perceber os
assuntos e fins do Estado. Nesse sentido, não existia o problema da cooperação.
A antiga cidade-Estado era para os
cidadãos a garantia de todos os princípios da vida; πολιτεύεσθαι significa participar na existência comum. Tem também o
simples significado de “viver”. É que ambas as coisas eram uma só. Em tempo
algum o Estado se identificou tanto com a dignidade e o valor do Homem.
Aristóteles designa o Homem como ser político e, assim, distingue-o do animal
pela sua qualidade de cidadão. Essa identificação da humanitas, do ser-homem, com o Estado compreende-se apenas na
estrutura vital da antiga cultura da pólis grega, para a qual a vida em comum é
a súmula da vida mais elevada e adquire até uma qualidade divina. É um cosmo
legal segundo esse velho modelo helênico – onde o Estado seria o próprio
espírito e a cultura espiritual visaria o Estado como seu fim último – o que
Platão esboça nas Leis. Ali ele
define como oposta ao saber especializado dos homens de ofícios, negociantes,
armadores, merceeiros, a essência de toda a verdadeira educação ou paideia, a qual é a educação na areté que enche o homem do desejo e da
ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o
fundamento da justiça.
Platão dá-nos aqui uma transcrição fiel
do sentido originário da “cultura geral”, segundo o espírito da primitiva pólis
grega. É certo que no seu conteúdo da educação admite a exigência socrática de
uma técnica política, mas não entende por ela um saber análogo ao dos artesãos.
A verdadeira educação é para Platão uma formação “geral”, porque o sentido do
político é o sentido do geral. O contraste entre o conhecimento real necessário
para os ofícios e a educação ideal política, que afeta o homem todo, tem a sua
origem última, como já vimos, no tipo da antiga nobreza grega. Mas o seu
sentido mais profundo reside na cultura da cidade, pois é nela que essa forma
espiritual se transmite aos cidadãos e a educação aristocrática se converte na
formação geral do homem político. A antiga cidade-Estado é o primeiro estágio,
depois da educação nobre, na caminhada do ideal “Humanista” para uma educação
ético-política geral e humana. Aliás, podemos dizer que foi esta a sua
verdadeira missão histórica. A evolução posterior da cidade primitiva para o
domínio das massas condicionado por forças completamente diferentes não afeta
de modo decisivo a essência daquela formação, pois ela conservou o seu
primitivo caráter aristocrático através de todas as mudanças políticas que veio
a sofrer. Não se pode calcular o seu valor nem pelo gênio de cada um dos
chefes, cuja aparição depende de condições excepcionais, nem pela sua utilidade
para a multidão, à qual não se pode transmitir sem um efeito nivelador sobre as
duas partes. O bom-senso dos gregos manteve-se sempre alheio a tais intentos. O
ideal de uma areté política geral é
indispensável, dada a necessidade da formação contínua de uma camada de
dirigentes, sem a qual nenhum povo ou Estado pode subsistir, qualquer que seja
a sua constituição."
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário