sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Montaigne e a filosofia da solidão

         O que é a solidão? Não é estar sozinho, sem a companhia de alguém ou algo, de acordo com Montaigne na sua definição pessoal filosófica para o termo. Para o filósofo francês, a solidão é estar por você mesmo no mundo, vivendo de forma a conhecer por si suas experiências de vida, dando sentido particular a elas; é a solidão, a atenção ao seu particular, e a vivência da vida com dedicação a tirar dela alguma coisa que seja totalmente sua. 
        Nesse sentido ao termo por Montaigne, a solidão consistiria, igual e simultaneamente, no trabalho e no estado de ser de estar por si no mundo. Ela é alcançada, ou mesmo, é-se capaz de experimentar tal faculdade de ser, a partir da atitude particular e intelectual de insubordinação à regência das normas da vida coletiva, do divórcio das influências populares (lê-se: divórcio das influências, não das pessoas), costumes e hábitos comuns a todos, por fim, da influência das ocupações públicas sobre sua vida particular. Em síntese, para Montaigne, a autêntica aptidão para viver por você no mundo exige um refúgio/recolhimento imprescindível do público (enquanto influência) e devoção ao particular (enquanto individualidade, e não subjetividade).
             Tal conceito de solidão de Montaigne me recorda outro também original, semelhante. Trata-se da solidão pelo ponto de vista de André Comte-Sponville, no seu breve livro de entrevistas "O Amor a Solidão", no qual ele ainda se ocupa de diferenciá-la de isolamento e coaduná-la ao sentimento de amor. Sponville dirá a respeito da solidão e do amor: "a solidão não é o isolamento: alguns a vivem como ermitões, claro, numa gruta ou num deserto, mas outros num mosteiro, e outros ainda - os mais numerosos - na família ou na multidão... Ser isolado é não ter contatos, relações, amigos, amores. [...] Ser só é ser si mesmo, sem recurso, e é a verdade da existência humana. Como poderíamos ser outro? Como alguém poderia nos descarregar desse peso de ser si mesmo? "O homem nasce só, vive só, morre só", dizia Buda. Isso não quer dizer que a gente nasce, vive e morre no isolamento! [...] Vivemos sós porque ninguém pode fazê-lo em nosso lugar. [...] Ninguém pode viver em nosso lugar, nem morrer em nosso lugar, nem sofrer ou amar em nosso lugar. É o que chamo de solidão: nada mais é que outro nome para o esforço de existir. Ninguém virá carregar seu fardo, ninguém. Se às vezes podemos nos ajudar mutuamente (e é claro que podemos!), isso supõe o esforço solitário de cada um e não poderia - salvo ilusões - substituí-lo. Assim, a solidão não é a rejeição do outro, ao contrário: aceitar o outro é aceitá-lo como outro (e não como um apêndice, um instrumento, um objeto de si!), e é nisso que o amor, em sua verdade, é solidão. [...] Ninguém pode amar em nosso lugar, nem em nós, nem como nós" (pp. 30-31).  
         De volta à Montaigne, conhecemos a sua concepção de solidão no ensaio "Da Solidão". Esse texto tem sido apontado como um dos ensaios fundamentais para o entendimento de muitas temáticas de sua obra, e também para a compreensão da totalidade de seus ensaios e de seu pensamento, enfim. Inclusive, para iniciar a leitura dos Ensaios, muitos estudiosos recomendam que ele seja lido em primeiro lugar, a fim de destacar as características mais globais do pensamento e estilo do autor - tais como a influência do estoicismo (sobretudo de Sêneca); o recurso frequente às citações de autores antigos para tanto completar/ a sua fala, como também para tornar a prosa mais poética; a maneira de exemplificar os assuntos através de anedotas, a constante interrupção e fragmentação do raciocínio, entre outras. 
       "Da solidão" é marco inicial do primeiro contato com Montaigne, finalmente, por principalmente ter a particularidade de tratar de uma temática ligada a origem da relação do homem com o mundo. Dito isso em outros termos, esse parece vir a ser o ensaio que descreve como deve iniciar, antes de mais nada, a relação do homem com o mundo: consciente da sua solidão.
          O ensaio é belo e, como toda a obra de Montaigne, tem a peculiaridade de comunicar-nos algo muito particular e humano, ressaltando o papel individual de cada um, da forma a mais conversacional e profunda possível. 
           Valendo-nos de uma leitura desacelerada e cuidadosa, passemos ao seu ensaio sobre esse que consiste no nosso estado mais primordial, o estado de estar por si; só.

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XXXIX 
Da Solidão

[A] Deixemos de lado aquela longa comparação entre a vida solitária e a vida ativa; e, quanto àquelas belas palavras com que se encobrem a ambição e a cupidez - que não nascemos para o nosso particular, mas para o público -, dirijamo-nos sem hesitar aos que estão na dança; e que eles questionem na consciência se, ao contrário, os cargos, os encargos e esses aborrecimentos do mundo não são procurados principalmente para tirar do que é público seu proveito particular. Os meios censuráveis pelos quais nos elevamos em nossa época mostram que os fins pouco valem. Respondamos à ambição que é ela mesma que nos dá o gosto pela solidão: pois do que ela foge tanto quanto da sociedade? o que procura tanto quanto a liberdade de ação? Em tudo há como agir bem e mal; no entanto, se são verdadeiras as palavras de Bias, de que a parte pior é a maior, ou o que diz o Eclesiastes, que entre mil não há um bom, 

[B] Rari quippe boni: numero vix sunt totidem, quot Thebarum portae, vel divitis ostia Nili
["Raras são as pessoas de bem: quase nem existem tantas quantas portas tem Tebas ou quantas embocaduras têm o Nilo fértil" | Juvenal, XIII, 26].  

[A] o contágio é muito perigoso na multidão. É preciso ou imitar os viciosos ou odiá-los. Ambas as coisas são arriscadas: tanto assemelhar-se a eles, porque são muitos, como odiar muitos, porque são dissemelhantes. 
[C] E os mercadores que vão para o mar têm razão de zelar para que os que entram na mesma nau não sejam dissolutos, blasfemadores, maldosos: consideram infortunada tal convivência. 
Por isso Bias disse, jocosamente, aos que atravessavam com ele o perigo de uma grande tormenta e chamavam pelo socorro dos deuses: "Calai-vos, para que eles não percebam que estais aqui comigo."
E, num exemplo mais eloquente, Albuquerque, vice-rei na Índia para o rei Manuel de Portugal, em um extremo perigo de tempestade no mar, colocou nos ombros um garotinho, unicamente para que na associação da fortuna de ambos a inocência deste lhe servisse de penhor e de recomendação junto ao favor do divino, para colocá-lo a salvo.
[A] Não é que o sábio não possa viver contente em toda parte, até mesmo e sozinho na multidão de um palácio; mas, se puder escolher, fugirá dela e mesmo de sua simples visão, diz ele. Se for necessário, suportará aquilo; mas, se estiver em seu poder, escolherá isto. Não lhe parecerá que se desfez suficientemente dos vícios se ainda tiver de lutar com os de outrem.
[B] Carondas punia como maldosos os que comprovadamente frequentavam más companhias. 
[C] Não há nada tão dissociável e sociável como o homem: um por seu vício, o outro por sua natureza. 
E Antístenes não me parece ter respondido satisfatoriamente a quem o censurava pela convivência com os maus, ao dizer que os médicos viviam bem entre os doentes; pois, se estes servem à saúde dos doentes, deterioram a sua própria pelo contágio, pela visão contínua e prática das doenças. 
[A] Ora, sua finalidade [da solidão], assim creio, é tão-somente uma: a de viver mais à vontade e a gosto. Mas nem sempre buscamos bem o seu caminho. Amiúde julgamos ter abandonado os negócios e apenas os trocamos. Governar uma família não é menos tormentoso do que todo um país: onde quer que a alma esteja ocupada, ali está inteira; e por serem menos importantes as ocupações domésticas não são menos importunas. Mais ainda: por termos livrado da corte e do mercado não nos livramos dos principais tormentos de nossa vida, 

ratio et prudentia curas,
Non locus effist late maris arbiter, aufert. 
["O que dissipa as tristezas é a razão e a sabedoria, e não os locais de onde se descortina uma vasta extensão de mar" | Horácio, Ep. I, n. 25]

A ambição, a avareza, a indecisão, o medo e as concupiscências não nos abandonam por mudarmos de terras,

Et post equitem sedet atra cura. 
["A sombria inquietação vai na garupa atrás do cavaleiro." | Horácio, Odes, III, 40]

Amiúde eles nos seguem até os claustros e as escolas de filosofia. Nem os desertos, nem os rochedos escavados, nem o cíclico nem os jejuns nos livram deles:

haeret lateri letalis arundo.
["A flecha mortal continua cravada em teu flanco." | Virgílio, En., IV, 73]

Disseram a Sócrates que alguém não se havia corrigido em sua viagem. "Bem o creio", respondeu, "ele levou a si mesmo junto." 

Quid terras alto calentes
Sole mutamus? patria quis exul
Se quoque fugit?
["Por que ir em busca de terras aquecidas por um outro sol? Quem, ao sair da pátria, foge também de si mesmo?" | Horácio, Odes, II, XVI, 18]

Se o homem não aliviar previamente a si mesmo e à sua alma do fardo que a pressiona, o movimento a fará oprimir-se ainda mais, como em um navio as cargas atrapalham menos quando estão imóveis. Causais mais mal do que bem ao doente ao fazê-lo mudar de lugar. Ensacais ainda mais profundamente o mal ao movimentá-lo como as estacas afundam ainda mais e ficam mais firmes ao serem balançadas e sacudidas. Por isso não basta ter afastado da multidão; não basta mudar de lugar; é preciso descartar-se das condições populares que existem em nós; é preciso sequestrar-se e recuperar a si mesmo.

[B] Rupi jam vincula dicas:
Nam luctata canis nodum arripit; attamen illi,
Cum fugit, a collo trahitur pars longa catenae.
["Rompi minhas cadeias, direis. Sim, como o cão após longos esforços quebra sua corrente, mas na fuga arrasta ao pescoço um longo pedaço dela." | Pérsio, V, 158]

Carregamos conosco nossos grilhões: não é uma liberdade total; ainda voltamos os olhos para o que deixamos atrás, e de que nossa imaginação está repleta.

Nisi purgantum est pectus, quae praelia nobis 
Alque pericula tunc ingratis insinuandum?
Quantae conscindunt hominem cuppendinis acres
Sollicitum curae, quantique perinde timores?
Quidve superbia, spurcitia, ac petulantia, quantas
Efficiunt clades? quid luxux desidiesque?
["Se a alma não for purificada, quantos combates e riscos não teremos de enfrentar sem proveito? Quantas amargas inquietações dilaceram o homem dominado por suas paixões, quantos temores também! E quantas catástrofes o orgulho, a luxúria, a cólera não arrastam em sua esteira? Quantas o luxo e a preguiça?" | Lucrécio, V, 44]

[A] Nosso mal está contido em nossa alma; ora, ela não pode escapar de si mesma,

In culpa est animus qui se non effugit unquam.
[Montaigne acaba de traduzir este verso. (Horácio, Ep. I, XIV, 15)]

Assim, é preciso trazê-la de volta e isolá-la em si mesma: essa é a solidão verdadeira e que pode ser desfrutada no meio das cidades e das cortes dos reis; mas é desfrutada mais comodamente no isolamento.
 Ora, pois que decidimos viver sós e dispensar companhia, façamos que nosso contentamento dependa de nós; desapeguemos de todas as ligações que nos prendem a outrem, obtenhamos de nós mesmos o poder de verdadeiramente vivermos sós e vivermos a gosto assim. 
Tendo Estilpon, escapado do incêndio de sua cidade, em que perdera mulher, filhos, e bens, Demétrio, Poliorcetes, vendo-lhe o semblante tranquilo numa tão grande ruína de sua pátria, perguntou-lhe se não sofrera prejuízo. Ele respondeu que não e que, graças a Deus, nada perdera de seu. [C] É o que o filósofo Antístenes dizia jocosamente: que o homem devia munir-se de provisões que flutuassem na água e pudessem a nado escapar com ele do naufrágio. 
[A] Seguramente, se tiver a si mesmo o homem de discernimento nada perdeu. Quando a cidade de Nola foi saqueada pelos bárbaros, Paulino, que lá era bispo, tendo perdido tudo e estando prisioneiro deles, rezava assim a Deus: "Senhor, não deixeis que eu sinta essa perda, pois sabeis que eles ainda não tocaram em nada que seja meu." As riquezas que o tornavam rico e os bens que o tornavam bom ainda estavam intactos. Eis que é conveniente escolher os tesouros que se possam isentar de danos e escondê-los em lugar aonde ninguém vá, e que só possa ser revelado por nós mesmos. Devemos ter mulheres, filhos, bens e sobretudo saúde, se pudermos; mas não devemos apegar-nos de tal maneira que nossa felicidade dependa deles. Devemos reservar-nos um cantinho retirado totalmente nosso, totalmente independente, no qual estabeleçamos nossa verdadeira liberdade e nosso importante retiro e solidão. Nele devemos travar conosco nossa habitual conversa sobre nós mesmos, e tão privada que ninguém de nossas relações e nenhuma comunicação de fora encontre espaço; discorrer e rir como sem mulher, sem filhos e sem bens, sem séquito e sem criados, para que, quando chegar o momento de sua perda, ficarmos sem eles não nos seja novidade. Temos uma alma que pode se recurvar em si mesma; ela pode se fazer companhia; tem como atacar e como defender, como receber e como dar; não tenhamos receio de que nessa solidão nos estagnemos em tediosa ociosidade,

[B] in solis sis tibi turba locis.
["Na solidão sede um mundo para vós mesmo." | Tibulo, IV, XIII, 12]

[C] A virtude, diz Antístenes, contenta-se consigo mesma: sem preceitos, sem palavras, sem ações.
[A] Em nossas atividades habituais, entre mil não há uma que nos diga respeito. Esse que vês escalando o topo das ruínas dessa muralha, furioso e fora de si, na mira de tantos arcabuzes; e aquele outro, cheio de de cicatrizes, transido e pálido de fome, decidido a antes morrer do que lhe abrir a porta, pensas que estejam aí em seu próprio benefício? Em benefício de alguém que possivelmente nunca viram, e que não dá a menor importância ao que fazem, mergulhando entrementes na ociosidade e nas delícias. Este, todo pituitoso, remelento e esmolambado, que vês sair de um gabinete de trabalho depois de meia-noite, julgas que ele procura nos livros como se tornar mais honrado, mais contente e mais sábio? Nada de novo. Ele morrerá ali, ou informará à posteridade a medida dos versos de Plauto e a ortografia correta de uma palavra latina. Quem não troca de bom grado a saúde, o repouso e a vida pela fama e pela glória, a mais inútil, vã e falsa moeda em uso entre nós? Nossa morte não nos assustava o suficiente: sobrecarregamo-nos também com a de nossas mulheres, de nossos filhos e de nossa gente! Nossos negócios não nos davam trabalho bastante: comecemos também a atormentar-nos e a quebrar a cabeça com os de nossos vizinhos e amigos.

Vab! quemquamne hominem in animum instituere, aunt 
Parare, quod sit charius quam ipse est sibi?
["Ora essa! Como pode o homem inventar de amar alguma coisa mais do que a si mesmo?" | Terêncio, Adelp., I, I, 38]

[C] A solidão parece-me ter mais pertinência e razão para aqueles que dedicaram ao mundo sua idade mais ativa e florescente, seguindo o exemplo de Tales.
[A] Já vivemos por outros o suficiente; vivamos para nós pelo menos esse final de vida. Voltemos para nós e para nosso contentamento nossos pensamentos e intenções. Não é um lance fácil fazer com segurança a retirada; ela nos ocupa suficientemente sem lhe misturarmos outros empreendimentos. Já que Deus nos concede tempo para prepararmos nossa partida, preparemo-nos para ela; façamos as malas; antecipadamente digamos adeus aos que nos cercam; desvencilhemo-nos dessas dominações violentas que nos comprometem alhures e nos afastam de nós. É preciso desatar essas obrigações tão fortes e doravante amar aqui e ali, porém nada esposar além de si mesmo. Quer dizer:o restante seja nosso, mas não unido e colado de tal forma que não o possamos desprender sem nos esfolarmos e arrancarmos junto algum pedaço nosso. A maior coisa do mundo é saber pertencer a si mesmo.
[C] É tempo de nos desprendermos da sociedade, já que nada lhe podemos oferecer. E quem não pode emprestar evite tomar emprestado. Nossas forças não estão faltando; retiremo-las e cerremo-las em nós. Quem puder inverter e misturar em si mesmo os papeis da amizade e da companhia, que o faça. Nessa queda, que o torna inútil, pesado e importuno para os outros, evite ele tornar-se importuno para si mesmo, e pesado, e inútil. Adule-se e se afague, e acima de tudo se governe, respeitando e temendo sua razão e sua consciência, de tal forma que não possa sem pejo tropeçar na presença de ambas. "Rarum est enim ut satis se quisque vereatur." ["De fato, é raro alguém que se respeite suficientemente a si mesmo." | Quintiliano, X, VII].
Diz Sócrates que os jovens devem fazer-se instruir, os homens empenhar-se em bem agir e os velhos afastar-se de toda ocupação civil e militar, vivendo como lhes aprouver, sem a menor obrigação em qualquer função determinada.
[A] Existem alguns temperamentos mais adequados que outros para esses preceitos [C] do isolamento. [A] Aqueles que têm entendimento lento e frouxo, e uma afeição e vontade delicada e que não se sujeita nem se empenha facilmente - entre os quais me encontro tanto por condição natural como por reflexão -, curvar-se-ão melhor a esse conselho do que as almas ativas e ocupadas que tudo abarcam e se comprometem por toda parte, que se apaixonam por todas as coisas, que se oferecem, que se apresentam e se dão em todas as ocasiões. É preciso servir-se dessas vantagens acidentais e exteriores a nós, na medida em que nos são agradáveis, mas sem fazer delas nosso principal fundamento: não o são; nem a razão nem a natureza desejam isso. Por que, contrariando suas leis, sujeitaremos nossa felicidade ao poder de outrem? Ademais, antecipar os reveses de fortuna, privar-se das facilidades que estão à mão, como vários fizeram por devoção e alguns filósofos pela razão, servir a si mesmo, dormir no chão, furar os próprios olhos, jogar suas riquezas no meio do rio, procurar a dor (aqueles para, através do tormento nessa vida, adquirir a beatitude numa outra; estes para, instalando-se no degrau mais baixo, se garantirem contra nova queda) é ação de uma virtude excessiva. Que as naturezas mais rijas e mais fortes tornem glorioso e exemplar até mesmo retiro:

tuta et parvula laudo,
Cum res dificiunt, satis inter villa fortis:
Verum ubi quid melius contingit et unctius, idem
Hos sapere, et solos aio bene vivere, quorum 
Conspicitur nitidis fundata pecunia villis.
["Quando a fortuna me fala, louvo os haveres parcos e sua segurança, e sei contentar-me com pouco; mas se a sorte me trata melhor e me dá alguma opulência, proclamo que os sábios e felizes só há aqueles cujos rendimentos se baseiam em belas terras." | Horácio, Ep. I, XV, 42]

Para mim há muito a fazer sem ir tão longe. Basta-me, sob o favor da fortuna, preparar-me para seu desfavor; e, estando a meu gosto, representar-me o mal por vir, tanto quanto a imaginação pode alcançá-lo; assim como nos habituamos às justas e aos torneios, e em plena paz fingimos a guerra.
[C] Não considero o filósofo Arcesilau menos austero por saber que usou baixela de ouro e de prata, conforme lhe permitia a situação de sua fortuna; valorizo-o mais porque a usava moderada e liberalmente do que se tivesse se desfeito dela.
[A] Vejo até que limites vai a necessidade natural; e, considerando o pobre mendigo à minha porta, amiúde mais jovial e mais sadio do que eu, ponho-me em seu lugar, tento ajustar minha alma à sua perspectiva. E, percorrendo assim os outros exemplos, embora pense que a morte, a pobreza, a desconsideração e a doença estão em meus calcanhares, facilmente me resolvo a não começar a apavorar-me por aquilo que alguém menor do que eu suporta com tanta resignação. E não consigo crer que a pequenez do entendimento possa mais do que o vigor; ou que os efeitos da razão não possam igualar-se aos efeitos do hábito. E, sabendo como esses bens acessórios pouco resistem, em pleno desfrute deles não deixo de suplicar a Deus, como meu principal pedido, que me faça contente comigo mesmo e com os bens que nascem de mim. Vejo jovens vigorosos que não deixam de carregar em seus baús um monte de pílulas para usá-las quando os importunar o resfriado, que temem menos quando pensam ter em mãos o remédio. Assim devemos fazer; e ainda, se nos sentirmos sujeitos a alguma doença mais forte nos munirmos desses medicamentos que acalmam e entorpecem a parte.
A ocupação que é preciso escolher para uma tal vida deve ser uma ocupação não difícil nem tediosa; de outra forma seria inútil pretendermos ter ido em busca de repouso. Depende do gosto particular de cada um; o meu não se adapta em absoluto à administração de meus bens. Os que gostam disso devem dedicar-se com moderação,

Conentur sibi res, non se submittere rebus.
["Procure subordinar as coisas a si, e não se subordinar às coisas." | Horácio, Ep. 1, 1, 19] 

De outra forma a administração doméstica é uma tarefa servil como a denomina Salústio. Ela tem partes mais justificáveis, como o trabalho de jardinagem, que Xenofonte atribui a Ciro; e pode-se encontrar um meio-termo entre a grosseira e banal dedicação, tensa e cheia de cuidados, que se vê nos homens que mergulham totalmente nela, e a profunda e extrema despreocupação deixando tudo entregue ao abandono, que se vê em outros.

Democriti pecus edit agellos 
Cultáque, dum peregre est animus sine corpore velox.
["As manadas devastam os campos de Demócrito e suas colheitas, enquanto seu espírito, longe do corpo, viaja veloz pelo espaço." | Horácio, Ep. I, XII, 12]

Mas ouçamos o conselho que o jovem Plínio dá a Cornélio Rufo, seu amigo, sobre este assunto da solidão: "Aconselho-te, nessa solidão plena e nédia em que estás, a entregares para tua gente esse baixo e abjeto cuidado da propriedade, e te dedicares ao estudo das letras, para tirar dela alguma coisa que seja totalmente tua." Ele se refere à reputação, com disposição semelhante à de Cícero, que diz pretender empregar sua solidão e descanso dos assuntos públicos em conquistar através de seus escritos uma vida imortal.

[B] usque adeo ne
Scire tuum nibil est, nísi te scire hoc sciat alter?
["Ora essa! Teu saber não é nada se alguém mais não souber que tens saber." | Pérsio, I, 23]

[C] Parece que seria correto, já que estamos falando de retirar-se do mundo, olhar para fora dele; estes [Plínio e Cícero] só o fazem pela metade. Eles preparam bem seu jogo para quando já não estiverem mais aqui; mais ainda estão, ausentes, pretendem obter do mundo o fruto de seu projeto, por uma ridícula contradição. A ideia dos que que procuram o isolamento por devoção, enchendo o coração com a certeza das promessas divinas na outra vida, é muito mais coerente. Eles se propõem a Deus, objeto infinito tanto em bondade como em poder; a alma tem com que satisfazer seus desejos em total liberdade. As aflições, as dores se lhe tornam proveitosas, empregadas na conquista de uma saúde e um júbilo eternos; a morte, desejada, é passagem para um estado tão perfeito. O rigor de suas regras é aplainado incontinenti pelo hábito; e os apetites carnais são reprimidos e entorpecidos pela rejeição, pois o que os alimenta é apenas o uso e o exercício. Essa única finalidade de uma outra vida venturosamente imortal merece lealmente que abandonemos as facilidades e doçuras desta vida nossa. E quem puder incendiar sua alma com o ardor dessa viva fé e esperança, de forma real e constante, constrói para si na solidão uma vida ainda mais voluptuosa e delicada do que qualquer outra forma de vida. 
Portanto, nem o fim nem o meio desse conselho [o dado por Plínio] me contentam: voltamos a cair de um mal em outro maior. Essa ocupação dos livros é tão exaustiva quanto qualquer outra, e igualmente inimiga da saúde, que deve ser considerada primordialmente. E não devemos nos deixar embalar pelo prazer que obtemos dela: é esse mesmo prazer que põe a perder o poupador, o avarento, o voluptuoso e o ambicioso. Os sábios bem nos ensinam a nos precavermos contra a traição de nossos apetites e a discernir entre os prazeres verdadeiros e integrais e os prazeres dispares e mesclados com mais trabalhos. Pois a maioria dos prazeres, dizem eles, nos excitam e abraçam para estrangular-nos, como faziam os ladrões que os egípcios chamavam de Philistas. E, se a dor de cabeça nos viesse antes da embriaguez, evitaríamos a beber demais. Mas a volúpia, para nos enganar, caminha à frente e oculta-nos seu séquito. Os livros são aprazíveis; mas, se por frequentá-los perdemos afinal a alegria e a saúde, que são nossas melhores partes, abandonemo-los. Sou dos que julgam que seu fruto não pode contrabalançar essa perda. Como os homens que há longo tempo se sentem enfraquecidos por alguma indisposição entregam-se por fim à mercê da medicina e deixam que lhes estabeleça artificialmente certas regras de viver para não mais ultrapassá-las, assim também aquele que se isola, entediado e desgostoso da vida em comum, deve conformar esta às regras da razão, deve organizá-la e ordená-la com premeditação e reflexão. Deve dizer adeus a toda espécie de esforço, sob qualquer aparência que se apresente; e fugir em geral das paixões que impedem a tranquilidade do corpo e da alma, [B] e escolher o caminho que for mais de acordo com seu humor,

Unusquisque sua noverit ire via. 
["Cada qual saiba escolher o caminho que lhe convém." | Propércio, II, XXV, 38]

[A] No governo do lar, no estudo, na caça e em qualquer outra atividade, é preciso avançar até os últimos limites do prazer, e evitar embrenhar-se mais adiante, onde começa a entremear-se a fadiga. É preciso observar empenho e preocupação apenas na medida em que são necessários para manter-nos alerta e para preservar-nos dos incômodos que acarreta o outro extremo de uma ociosidade frouxa e entorpecida. Há ciências estéreis e espinhosas, e na maioria forjadas para as multidões: é preciso deixá-las para os que estão a serviço do mundo. Quanto a mim, aprecio apenas livros agradáveis e fáceis, que me estimulam, ou os que me consolam e me aconselham como regrar minha vida e minha morte:

tacitum sylvas inter reptare salubres,
Curantem quidquid dignum sapiente bonoque est.
["Vagando silenciosamente pelos bosques salubres, e ocupando-me das questões que são dignas de interessar a um homem sábio e de bem" | Horácio, Ep. I, IV, 40] 

As pessoas mais sábias podem criar para si um repouso totalmente espiritual, mantendo a alma forte e vigorosa. Eu, que a tenho comum, preciso ajudá-la a sustentar-me pelas comodidades corporais; e como a idade há pouco me roubou as que convinham melhor à minha fantasia, instruo e aguço meu apetite para as que continuam mais adequadas para esta outra estação. Temos de segurar com todos os nossos dentes e unhas o uso dos prazeres da vida, que os anos arrancam das mãos, uns após outros:

[B] carpamus dulcia; nostrum est 
Quod vivis: cinis et manes et fabula fies. 
["Devemos colher os prazeres da existência; temos de nosso apenas o tempo de nossa vida: um dia será apenas cinza, sombra, palavras vãs." | Pérsio, V, 151]

[A] Ora, quanto ao fim que Plínio e Cícero nos propõem, o da glória, ele está muito longe de minha intenção. O estado de espírito mais contrário ao isolamento é a ambição. A glória e os descansos são coisas que não podem alojar-se na mesma morada. Segundo vejo, estes têm apenas os braços e as pernas fora da multidão; sua alma, sua intenção continuam comprometidas, mais do que nunca:

[B] Tun', vetule, auriculis alienis colligis escas?
["Então, velho tagarela, trabalhas apenas para divertir os ouvidos dos outros?" | Pérsio, I, 19]

[A] Eles simplesmente recuaram para saltar melhor; e para, com um impulso mais forte, penetrar mais fundo na multidão. Gostaríeis de ver como erram o salto por um pouquinho? Coloquemos de contrapeso a opinião de dois filósofos, e de duas facções muito diferentes, escrevendo, um a Indomeneu [Epicuro], o outro a Lucílio [Sêneca], amigos seus, para, do manejo dos negócios e das grandezas, retirá-los para a solidão. Até agora (dizem eles) vivestes nadando e flutuando; vinde morrer no porto. Destes para a luz toda a outra parte de vossa vida; dai esta agora para a sombra. É impossível abandonar as ocupações se não abandonardes seu fruto; por esse motivo, deveis desfazer-vos de toda intenção de nome e glória. Há o risco de que o esplendor de vossas ações passadas vos ilumine demais e vos siga até vosso refúgio. Abandonai com as outras voluptuosidades a que provém da aprovação de outrem; e, quanto a vosso saber e talento, não vos preocupeis: ele não perderá seu efeito se vós mesmo valerdes mais. Lembrai-vos daquele que, como lhe perguntassem com que objetivo se esforçava tanto numa arte que só poderia chegar ao conhecimento de pouca gente, respondeu: "Bastam-me poucos, basta-me um, basta-me nenhum." Ele falava certo, vós e um companheiro sois teatro suficiente um para outro, ou vós para vós mesmos. Que o público vos seja um, e um vos seja todo o público. É uma covarde ambição querer obter glória da ociosidade e do isolamento. É preciso fazer como os animais que apagam o rastro na entrada da toca. Já não deveis procurar que o mundo fale de vós, e sim como deveis falar a vós mesmos. Retirai-vos em vós, mas primeiramente preparai-vos para vos receber: será loucura confiardes em vós mesmo se não souberdes vos governar. Há meios de falhar na solidão, como em companhia. Até que vos tenhais tornado alguém em cuja presença não ouseis claudicar, a até que tenhais vergonha e respeito de vós mesmo, [C] "observentur species bonestae animo" ["Cumulai de imagens virtuosas vosso espírito" | Cícero, Tusc. II, XXI], [A] trazei sempre na imaginação Catão, Fócion e Aristides, em cuja presença até mesmo os loucos esconderiam seus erros, e estabeleceis os censores de todas as vossas intenções: se elas desandarem, vosso respeito por eles as recolocará no passo certo. Eles vos manterão nesse caminho em que vos contentareis convosco, em que só vós pedireis, em que detereis e firmareis vossa alma em cogitações determinadas e limitadas nas quais ela se possa comprazer; e, tendo reconhecido os verdadeiros bens, que desfrutamos à medida que os reconhecemos, contentar-vos-ei com eles, sem desejo de prolongamento de vida nem de nome. Tendes aí o conselho a filosofia verdadeira e natural, não de uma filosofia ostentatória e verbosa como a dos primeiros [de Plínio e Cícero]. 

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: livro I. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 354-369.

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