domingo, 9 de novembro de 2014

Da amizade

        Ainda espero vir falar mais demoradamente de Montaigne. Enquanto isso não acontece, nesta postagem apenas recordo um belo trecho em que ele expressa o seu sentimento de amizade pelo amigo La Boétie, a fim de que celebremos essa que talvez seja a mais bela e excelsa relação entre os homens.
     Recolhido no Livro I dos Ensaios, o trecho compõe o Capítulo XXVIII, chamado "Da amizade". O prefácio da tradutora para o capítulo, nos fornece a seguinte nota sobre La Boétie e a amizade de Montaigne por ele: "Nascido em Sarlat [França] em 1530, e portanto mais velho que Montaigne, La Boétie era conselheiro no Parlamento de Bordeaux quando Montaigne lá chegou em 1557, com o mesmo título. Viria a morrer em agosto de 1563. Dezessete anos após a morte de seu 'irmão de aliança', Montaigne escrevia em seu Journal de voyage estas linhas: 'Nesta mesma manhã, escrevendo ao sr. Ossat, caí numa recordação tão penosa do sr. de La Boétie, e assim fiquei tanto tempo, sem me dar conta, que isso me fez muito mal".  
     Justamente tal caráter "tão penoso" de seu sentimento de amizade é que será descrito em seu ensaio ao tema. Montaigne abordará o tema da amizade pelo viés da sua intensidade, e a exprimirá com a mesma força. Talvez por ter essa abordagem partido de sentimento tão penoso, sobretudo após o amargor à existência causado pela morte de pessoa tão amada, poucas linhas da literatura que se dedicaram a tratar do mesmo assunto, o fizeram com tamanha força, beleza e emoção. 
      Considero uma das mais lindas passagens da obra de Montaigne e uma das mais belas passagens sobre a amizade escritas; ela vêm em altura e intensidade representar essa que julgo a mais bela de todas entre as relações humanas - relação bela essa, tanto pela sua capacidade de servir-se em qualquer dos relacionamentos dos homens, como ainda pela sua capacidade de comportar os mais nobres e felizes sentimentos humanos. 
      À amizade, felicitações! 

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Pois os próprios discursos que a Antiguidade nos deixou sobre esse assunto parecem-me frouxos em comparação com o sentimento que tenho a esse respeito. E nesse ponto a realidade ultrapassa os próprios preceitos da filosofia:

Nil ego contulerim jucundo sanus amico. 
["Enquanto eu tiver meu bom senso, não há nada que compare a um amigo terno". | Horácio, Sát. I, V, 44]

O antigo Menandro considerava feliz quem pudesse encontrar pelo menos a sombra de um amigo. Certamente ele tinha razão de dizê-lo, particularmente se o havia experimentado. Pois, na verdade, se eu comparar todo o restante de minha vida, embora com a graça de Deus a tenha passado agradavelmente, confortavelmente e - exceto pela perda de um tal amigo - isenta de aflição grave, plena de tranquilidade de espírito, contentando-me com minhas vantagens naturais e originais, sem procurar outras; se comparo toda ela, afirmo que os quatro anos em que me foi dado desfrutar da doce companhia e convivência desse indivíduo, ela é apenas fumaça, é apenas uma noite escura e tediosa. Desde o dia em que o perdi,

quem semper acerbum,
Semper honoratum (sic Dii, voluistis) habebo,
["Dia que nunca deixarei de ver como um dia cruel e nunca deixarei de honrar (essa foi vossa vontade, ó deuses!)". | Virgílio, En., V, 49]

não faço mais que me arrastar languescente; e os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de consolar-me, redobram a tristeza de sua perda. Participávamos a meias de tudo; parece-me que lhe estou roubando sua parte,

Nec fas esse ulla me voluptate hic frui
Decrevi, tantisper dum ille abst meus particeps.
["E decidi que já não devia desfrutar prazer algum, já não tendo aquele que compartilhava minha vida". | Terêncio, Heaut., I, i, 149-50]

Já estava tão afeito e habituado a ser um de dois em tudo que me parece não ser mais do que meio.

Illam meae si partem animae tuit
Maturior vis, quid moror altera,
Nec cherus aeque, nec superstes
Integer? Ille dies utramque
Duxit ruinam.
["Já que um golpe prematuro arrebatou-me aquela metade de minha alma, por que eu, a outra metade, continuo aqui, eu que estou desgostoso de mim mesmo e que não sobrevivo por inteiro? O mesmo dia perdeu-nos a ambos". | Horácio, Odes, II, xvii, 5]

Não há ação nem pensamento em que eu não sinta sua falta, assim como ele teria sentido a minha. Pois, assim como ele me superava, por uma distância infinita, em qualquer outra capacidade e virtude, também me superava no dever de amizade.

Quis desiderio sit pudor aut modus
Tam chari capitis?
["Por que ruborizar-me e constranger-me ao chorar uma cabeça tão querida?" |
Horácio, Odes, II, xxiv, I]
O misero frater adempte mihi!
Omnia tecum una perierunt gaudia nostra,
Quae tuus in vita dulcis alebat amor.
Tu mea, tu moriens fregisti commoda, frater;
Tecum una tota est nostra sepulta anima,
Cujus ego interitu tota de mente fugavi
Haec studia atque omnes delicias animi.
Alloquar? audiero nunquam tua verba loquentem?
Nunquam ego te, vita frater amabilior,
Aspiciam posthac? At certe semper amabo.
["Oh, como sou infeliz, meu irmão, por te haver perdido! Contigo se desvaneceram de um só golpe todas as nossas alegrias que tua doce amizade alimentava na vida. Morrendo despedaçaste toda a minha felicidade, meu irmão. Contigo, nossa alma inteira desceu ao túmulo e desde tua morte expulsei de meu coração todos os meus caros estudos e tudo o que fazia as delícias de minha vida. Não te falarei mais? Nunca mais ouvirei tua voz? Nunca mais te verei doravante, irmão que me eras mais caro que a vida? Pelo menos te amarei sempre". | Catulo, LXVIII, 20 e LXV, 9]. 

MONTAIGNE, Michel de. "Da amizade". In: Os Ensaios: Livro I. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 287-290.

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