sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O leitor humanista Maquiavel

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[ ADVERTÊNCIA: Esta postagem foi reescrita. A todos peço desculpas por esse feito audacioso, sobretudo aos leitores que estiveram no blogue sábado e leram a primeira versão desse trabalho. A razão para a reescrita se deveu a meu desgosto muito repugnante e absoluto do texto. Em épocas passadas, quando ainda pensava como aqueles, que o texto depois de publicado, ou mesmo simplesmente escrito, torna-se objeto intacto, não teria procedido dessa forma. No entanto, hoje, em respeito à maior organização de meu raciocínio e também à compreensão dos leitores, acho por bem e salutar voltar a trabalhos muito ruins e dar-lhes outra forma, uma forma que julgo, já em fugaz instante, mais clara. Quis proceder assim em várias ocasiões, inclusive, em outros textos recentes, mas nem sempre estão ao/do meu lado o tempo e a disposição para assim agir, sendo obrigada a aceitá-los como foram concebidos primeiramente. Felizmente, hoje ambos estiveram em minha companhia; e sempre que estiverem, e me encontrarem insatisfeita, advirto-os, ao mesmo tempo pedindo a compreensão e a licença de vocês, que irei reescrever o que postei e me desagradou. Ainda, tanto deixo-os à vontade, como peço a gentileza de me sugerirem a reescrita de postagens que já foram publicadas (há muito tempo ou recentemente), além de livres para corrigir erros pequenos ou grandes (se de gramática ou de raciocínio) que aqui surgirem.
       Agradeço e deixo um abraço a todos pela consideração à necessidade da advertência.]

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Ao texto:

               Anthony Grafton, o conhecido professor de Princeton, estudioso da tradição clássica do Renascimento ao século XVIII, no capítulo dedicado a seus ensaios sobre tipos de leitores, recolhido no livro História da leitura no mundo ocidental, adota um procedimento curioso para caracterizar o gênero de leitor que ele denomina "leitor humanista". O professor norte-americano, sem nem mesmo se prestar a uma definição qualquer, para definir um leitor humanista simplesmente relata o caso infeliz da perda das funções políticas e públicas de Maquiavel quando da Florença em novo governo, e ilustra esse fato com uma carta do autor italiano ao amigo Francesco Vettori, na qual Maquiavel retrata seu cotidiano público e privadoO procedimento de Grafton cobra do seu leitor a construção de uma definição para "leitor humanista" a partir das referências meramente dadas e não explicadas.
                Conhecendo o infortúnio da vida de Maquiavel narrado brevemente por Grafton, em seguida passamos ao conteúdo da carta do florentino. Dividida em dois parágrafos, a carta trata ordenada e respectivamente da rotina da vida comum e da rotina da vida particular de Maquiavel. Do seu cotidiano público, Maquiavel conta de sua incapacidade de desvinculo das notícias sobre a política de sua cidade, bem como da convivência com lazeres e ocupações vulgares e muito públicas, tais como os jogos e as conversas sociais; já do seu cotidiano privado, ele descreve a experiência de leitura dos autores cultuadores da tradição clássica, tais como os compatriotas Dante e Petrarca, a qual tanto lhe oferece o necessário momento de distanciamento da vida pública para pôr-se em si e pensar nos homens e no mundo sem a lógica embotada do senso comum e guiado pelo saber sensato dos antigos, quanto lhe oferece matéria para a elaboração de seu trabalho à sociedade, representado pela obra "O príncipe".
              Do sentido dado à leitura dos clássicos, esse de manter a repartição particular e individual de seu pensamento em algum momento imaculada do contato público, e da postura assumida de distanciamento dos homens para a realização de uma reflexão sobre si mesmo e sobre a res publica, obtemos elementos necessários para realizar uma formulação possível de um perfil para o que poderia consistir o leitor humanista ideado por Grafton. Esse gênero de leitor seria aquele que, em primeiro lugar, reconhecia nos textos clássicos a existência de um conteúdo sábio a dialogar com a vida nos seus âmbitos mais privados e também mais públicos, e, em seguida, acreditava ser possível se imbuir de sua mensagem para mudar as relações de si para si mesmo, e as relações de si com os outros, a desencadear uma mudança virtuosa em si mesmo e na sociedade. Também esse leitor consistia naquele que almejava a reflexão de todas as coisas sem a influência da lógica comum, e exclusivamente sob a lógica da justiça e humanidade preconizada pela sabedoria clássica; no sentido dessa razão, era aquele que tomava por necessário o despojamento diário do servilismo público - esse, aqui entendido tanto em matéria de ocupação profissional como de interesses comum -, e também por necessária a dedicação às vontades e ocupações puramente pessoais e individuais.  
               Com essas disposições, em suma, poderia-se dizer que o leitor humanista vinha a ser tanto um estudioso da ciência do homem, como um homem de ação a aplicar essa ciência da maneira a mais virtuosa e benéfica possível à si e à humanidade.  Seu interesse e compromisso com saber só tinha por ponto de chegada a compreensão da vida e dos homens, e só a eles era devoto, não prestava nenhum interesse ao conhecimento pelo conhecimento, ao conhecimento como instrumento de poder ou ao conhecimento com fins pragmáticos ou técnicos. Seus fins eram os mais práticos e próximos do homem de bem possíveis. Sua atividade de leitor, em últimas palavras, começava no homem individual e terminava no homem comum, reservando a ambos os benefícios de um saber humano e humanizante.
             A bem da verdade, tomando o exemplo de Maquiavel, é de se tomar aceito que a disposição do leitor humanista consistia, em verdade, dessas orientações e resultava em atitudes tão benevolentes e profícuas. O leitor humanista Maquiavel, embebendo-se dos textos e autores clássicos, tanto conseguiu o bom trato das questões de seu particular, quanto pôde oferecer à sociedade um bem que a possibilita melhor; no seu caso particular, esse bem foi a publicação da obra que se presta à organização da vida pública dos homens, a política - "O príncipe". Diante de exemplo tão magnânimo, poderíamos concluir que o leitor humanista pensado por Grafton é não outro que aquele a se nutrir da sabedoria e fazer-se capaz de vertê-la para sua convivência consigo mesmo e com mundo, dando-lhe frutos.
                 A seguir é transcrito capítulo "O leitor humanista" de Anthony Grafton, através do qual então se conhecerá um dado infeliz da vida de Maquiavel, uma de suas cartas e um grande exemplo de leitor humanista. Aviso aos leitores mais acadêmicos desse blogue, que a tradução da carta de Maquiavel retirei de outra obra, e não desta tradução brasileira do capítulo de Grafton, do livro já mencionado acima, que a consta. Optei pela tradução da carta de Maquiavel contida no livro A Itália no tempo de Maquiavel (Paul Larivaille. Cia das Letras, 1996), pois a julguei melhor diante da impressão que tive de ser ela mais fiel e mais cuidadosa.
                    Passa-se ao capítulo de Grafton:

                No dia 10 de dezembro de 1513, Nicolau Maquiavel escreve uma carta ao seu amigo Francesco Vettori. No ano anterior, quando caíra o governo de Piero Soderini e os Médicis haviam retomado o controle de Florença, ele tinha perdido tudo o que mais prezava. Tentara construir uma milícia de cidadãos, mas ela entrara em colapso. Orgulhava-se de sua posição no governo mas fora dispensado. Suspeito de conspiração, ele fora preso, torturado e finalmente exilado em sua fazenda fora de Florença. Aqui ele ansiava por qualquer tipo de ocupação política, brigava ou tagarelava com seus vizinhos e lia. Maquiavel descreve para Vettori sua atividade mental com pormenores vívidos e inesquecíveis. 

               "De manhã, eu me levanto com o sol e sigo para um bosque que mandei derrubar; lá fico por duas horas, revendo o trabalho do dia anterior e ocupando o tempo com meus lenhadores que têm sempre algum problema a ser discutido, seja entre eles, seja com os vizinhos [...] Do bosque vou, a seguir, para uma fonte, e, de lá, para uma das minhas armadilhas para pássaros. Carrego comigo um livro, ora Dante, ora Petrarca, ora um desses poetas menores, como Tibulo, Ovídio ou outros: mergulho na leitura de suas paixões, seus amores, recordo os meus e me deleito por um bom tempo com esses pensamentos. Depois, sigo para o albergue, na estrada, converso com os que passam, peço-lhes notícias de suas terras natais, ouço muitas coisas e observo a variedade de gostos e caracteres humanos. Nesse meio-tempo, chega a hora do almoço, durante o qual partilho com a gente da minha casa a alimentação que a minha pobre herdade e o meu magro patrimônio me permitem. Após o almoço, retorno ao albergue: lá estão habitualmente o estalajadeiro, um lenhador, um moleiro e dois fabricantes de cal. Por todo o resto do dia, fico misturado com a canalha, jogando cartas ou gamão, jogos dos quais nascem mil polêmicas e inúmeras disputas marcadas por injúrias. Na maior parte dos casos, a soma em jogo não ultrapassa um quattrino, mas os nossos gritos podem ser ouvidos até em San Casciano. É assim, envolvido com essas mesquinharias, que desentorpeço o meu cérebro e deixo extravasar a maldade da sorte, aceitando que ela me espezinhe dessa forma para ver se não acabará por envergonhar-se disso.
                Quando anoitece, volto para casa e entro no gabinete de trabalho. Na soleira, me despojo dos meus trapos do dia, cobertos de lama e sujeira e visto hábitos dignos de cortes reais e pontificiais. Assim, convenientemente trajado, penetro nas cortes antigas e me encontro com homens da Antiguidade; lá, afetuosamente acolhido por eles, absorvo o único alimento que me convém e para o qual nasci. Lá não sinto nenhuma vergonha de conversas com eles e de interrogá-los sobre as razões de suas ações; e eles, com toda a sua humanidade, me respondem. Então, durante quatro horas, não sinto o menor aborrecimento, esqueço todas as preocupações, não temo a pobreza, e a morte não me assusta: identifico-me inteiramente com eles. E como Dante diz que compreender sem reter não dá origem a conhecimento, pus por escrito o que tirei desses encontros com eles e compus um opúsculo chamado De principatibus ("O Príncipe"), no qual aprofundo, da melhor forma possível, as minhas reflexões sobre esse assunto: discutindo o que é um principado, quantos tipos de principados há, a maneira pela qual são obtidos, a maneira pela qual são conservados e as razões pelas quais são perdidos. E se, porventura, alguma de minhas elucubrações vos tenha agradado, esta não deve vos desagradar. Ela deve igualmente ser bem acolhida por um príncipe, sobretudo por um príncipe novo: é por isso que eu a dedico ao Magnífico Juliano [de Médici]."  

CAVALLO, Guglielmo & CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental: vol. 2. São Paulo: Ática, 1999, pp- 5-6.

2 comentários:

Nélio Lobo disse...

Cara Bruninha, eu também, sempre que revisito alguma postagem (seja um artigo, um desenho ou um comentário) e percebo que pode ficar melhor, mais inequívoca ou mais correta faço as intervenções pertinentes.

Sinto, aliás, que nenhum trabalho meu está acabado, nunca fico satisfeito com o resultado. Chega uma momento, porém, que tenho de simplesmente abandoná-lo e passar para outro, contando com a compreensão e a indulgência dos destinatários.

Reconhecer isso é, em verdade, não uma fraqueza, mas uma virtude, um exercício de humildade e, principalmente, uma atitude de respeito para com o interlocutor.

Ademais, para que as diversas tecnologias atualmente disponíveis se não pudéssemos utilizá-las plenamente, não é mesmo?

Por fim, estamos em excelente companhia, pois o próprio Deus, arrependendo-se de sua obra, optou por refazê-la:

Paenituit Dominum quod hominem fecisset in terra. Et tactus dolore cordis intrinsecus: “Delebo, inquit, hominem, quem creavi, a facie terrae, ab homine usque ad pecus, usque ad reptile et usque ad volucres caeli; paenitet enim me fecisse eos”.


Forte abraço.


Bruna Caixeta disse...

Meu muito estimado, Manoel, em primeiro lugar, quero agradecer-lhe imensamente pela, ao mesmo tempo amiga e corajosa iniciativa, de vir compartilhar o sentimento comum da insatisfação permanente com o trabalho realizado, e também aquele da obra sempre inacabada. Não haveria como como não ter sido reconfortante para mim a constatação da mesma experiência em outra pessoa - e pessoa de maior posição - e também a sua consideração à minha advertência. Muito obrigada, muito prezado interlocutor.

Gostaria que soubesse que fiquei muito contente que tenha feito um comentário que debate o assunto da advertência à parte daquele da postagem. Contentou-me sua iniciativa, principalmente por ela ter vindo cheia de uma sinceridade honesta e legítima ao que a experiência têm a ensinar àqueles que a experimentam, isto é, um exercício de humildade.

Posta a questão dessa forma, ela se tornou mais globalizante de outras experiências da vida, e assim, pôde deixar oferecidos subsídios para outras frustrações do gênero, a ensinar-nos, sobretudo, que acima de um desconforto com um detalhe, reside uma enorme lição de como viver.

Achei o comentário de altíssima conta; belo e sublime.

Muito obrigada por ele e pela sua visita, Manoel - sempre captadora de questões de interesse maior.

Grande abraço!