sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Da terra, dos alimentos e dos homens

          Dias passados, quando revia o vídeo de apresentação do programa Bela Cozinha para redigir a postagem anterior, uma fala muito pertinente e séria do Gilberto Gil, presente no vídeo, ficou a ecoar em minha mente, e por fim, repercutiu na minha lembrança de outro artigo interessante sobre a nossa relação com os alimentos. O artigo é "Você tem fome de quê?", de autoria de Débora Dines, publicado na Revista Vida Simples de abril de 2003. Em meu entender, as informações do texto da jornalista ampliam a reflexão de Gil, e, unidas, ambas tangem questões capitais sobre a relação do homem com os alimentos e com a natureza; por essa razão, me impus a tarefa de conjugá-las e apresentá-las.
           A fala de Gil menciona o imperativo histórico da passagem do homem, do campo para a cidade; comenta ele que, em decorrência desse fato, as pessoas tiveram que perder a proximidade com o alimento, e a consequência da perda, teria sido o mal regime alimentar da população. Sem ter mais a necessidade de realizar toda a cadeia do processo de consumo de alimentos, isto é, a preparação do solo, a seleção das sementes, a plantação, a hidratação, a poda, a colheita e, finalmente, o preparo alimentar, enfim, um longo processo de contato e cuidado com a natureza, as pessoas passaram a ficar alienadas do mundo natural, deixando de se constituir simultaneamente uma necessidade e um valor, o consumo de alimentos frescos, e despontando como uma virtude citadina, a praticidade tanto do consumo, como das ofertas e variedades de alimentos. 
         Passados mais séculos, dois eventos históricos tiveram curso e alteraram de forma decisiva e, em grande medida, de forma maléfica, o modo como nos alimentamos hoje, também os alimentos que consumimos e a forma como os consumimos. Esses eventos foram, sequencialmente, o surgimento da indústria e, mais próximo de nós: o despontar do ritmo frenético de vida contemporâneo. Todos os dois, por razões dispensáveis de serem ditas, atuaram ainda mais no distanciamento do homem dos alimentos - de seu cultivo, de seu valor e propriedades -, como na promoção e ingestão de alimentos que põem em risco a saúde - como os enlatados, os embutidos, a afamada "comida rápida" (os fast foods), e todos aqueles que foram processados industrialmente e vêm com a propaganda de serem práticos, altamente saborosos, longevos, instantâneos ou mesmo prontos. A indústria e o ritmo de vida trazido por ela, arremataram mais assentadamente a alienação do homem do mundo natural, ao atuar no processo de transferência do valor da comida, da terra para objeto: ao promover como valores a praticidade, a longevidade, o sabor marcante, as cores, as formas e as texturas variadas e exóticas, ou mesmo a luxuosidade e a aparência de certas refeições, e não o alimento no seu estado mais puro, mais simples e menos modificado possível.
            Tal alteração na atribuição de valores à comida é muito bem exemplificada pelas ideias do escritor Wendell Berry, citadas por Débora Dines, no seu artigo. Berry, um ex-professor de Literatura na New York University, hoje fazendeiro e pesquisador, em seu livro Know That What You Eat You Are ("Saiba que o que você come, você é"), dirá que existem dois tipos de comedores: o industrial e o agrícola. "O primeiro é aquele que ingere a comida de forma entorpecida. Seu alimento é um conceito abstrato, sem conexão com a realidade biológica: quase todo produzido de forma mecanizada, com substâncias processadas e refinadas, camuflado sob corantes, aromatizantes e sabores artificiais. Pouco importa quem plantou ou colheu ou qual é a oferta da estação. Ele e seu alimento se exilam da realidade biológica, ingere um subproduto das leis de volume e preço, que é oferecido junto com adjetivos comuns a outros bens de consumo: é prático, necessário, requintado. É comum encontrar crianças que não entendem como a bebida branca na caixa longa-vida vem da vaca. Para o comedor industrial, enfim, a consciência está no valor, no custo e na aparência, enquanto a terra é apenas uma fonte de recursos. O comedor agrícola, ao contrário, reafirma sua conexão com a terra pela refeição. Ele vislumbra as vidas envolvidas na cadeia alimentar - da semeadura à colheita, da embalagem à distribuição - e seu prazer surge também da sua retribuição responsável e harmônica com o ciclo orgânico. Para ele, o mundo é uma comunidade viva. Ele se importa em saber quem plantou ou colheu, como é a lavoura." 
              Além de caracterizar bem os tipos de comedores, a distinção deles, proposta por Wendell Berry, aponta algo curioso: a seleção dos alimentos que comemos implica automaticamente na nossa relação com o meio ambiente, com os recursos naturais, em síntese, com o nosso cuidado (ou descuido) do ambiente, da natureza. Na linha desse raciocínio proposto, é possível vislumbrar que uma solução provável para os problemas ambientais estaria "numa conscientização semelhante à que tem o comedor agrícola: a conexão com a terra", afirmará Débora. A retomada da conexão do homem com a terra poderia significar: o desenvolvimento de uma exigência com o que se consome, maior e orientada para a comida fresca; sustentar as feiras locais (que, em sua maioria, trazem produtos frescos de pequenos proprietários, aqueles sem ilusão de fazer fortuna com a venda de alimentos, portanto, cultivadores em menor escala, o que exige menor, ou em alguns felizes casos, nenhuma aplicação de poderosos agrotóxicos), ou mesmo resgatar as práticas de plantio, pelo menos de um mínimo grupo alimentar de nosso consumo, como o das folhas, verduras ou legumes integrantes da saladinha do almoço, por exemplo. 
           Mudando os nossos hábitos alimentares, mudamos as nossas relações com a natureza, e por consequência, com o mundo e com as pessoas. O ato de comer passa a ser mais uma ação que podemos praticar com responsabilidade pela humanidade. Alterando o nosso tratamento dado à comida, aos alimentos e às refeições passamos a agir sempre no sentido de cuidar, e não de destruir, de limpar e não de poluir, de simplificar e não modificar/hibridizar, de criar vida e não de matar. Agindo assim, por fim, somos capacitados naturalmente a desenvolver uma consideração ampla e totalizante por tudo que é mais natural, mais simples, e, por isso, mais saudável, mais longevo, o que nos torna, sem esforços, mais puros, mais belos, mais naturais e humanos.  

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