quarta-feira, 26 de março de 2014

Uma carta de Mário a Drummond

São Paulo, 10-III-26
Carlos do coração,
     um abraço. Agora você está em Itabira do Mato Dentro. Precisa trabalhar, em, Carlos. Hoje de manhã escrevi pro Martins de Almeida que andava reclamando cartas minhas e inda falei pra ele as inquietações que você estava me dando. Não sei o que é Itabira... Deve de ser naturalmente uma dessas cidadezinhas perdidas e mortas de Minas onde o trem chega sem barulho onde ao meio-dia a tarde já começa a cair e não acaba mais de cair até o meio-dia do dia seguinte... Não sei mas imagino que em Itabira a alma de você deve se sentir sozinha enquanto o corpo vai se sentindo amando a terra, amando a terra, amando a terra cada vez mais e por demais até que o espírito principia a se acabar e desaparece chupado pela terra boa mas traiçoeira...Quê que você foi fazer aí? Farmacêutico? Carlos, você vai me escrever uma carta comprida, uma carta inteira contando tudo, o que você foi fazer aí, se vive na cidade mesmo ou nalguma fazenda, quem são as pessoas daí com quem você vive, a condição de espírito delas, que jornais chegam aí, você vai contar tudo. É questão de medicina, Carlos. Eu sou amigo de você e sou amigo sem piedade. Eu quero saber de tudo pra não me descuidar de você. Não quero absolutamente que você se perca aí e abandone as coisas de pensamento pra que tem um jeito certo e que fazem parte do destino de você, tenho a certeza. No que já reparei de você, me parece que você tem uma propensão danada pro desânimo e pro abatimento. Isolado dessa maneira é capaz de se entregar pra terra e isso eu não quero. Uma feita numa carta você foi duma perversidade juvenil comigo que me machucou terrivelmente. Nunca me esqueci das palavras ameaçadoras que você escreveu e que além de ameaçadoras estou certo que estão erradas. Foi um dia em que aplaudindo qualquer coisa que escrevi, não me lembro o quê, você partiu dali pra considerações sobre a nossa amizade e concluiu que se ela existe e por mais forte que seja, verdadeiramente o fundamento a base e a necessidade dela era a irmandade literária e o alimento de espiritualidade pensativa. Me lembro mesmo que você foi tão áspero a ponto de verificar ou profetizar não me lembro bem que a nossa amizade se acabaria se essa literaticidade dela se acabasse. Eu perdoei e fiquei bem caladinho sofrendo quieto. Você é muito moço e tenho a impressão pela pouca confiança com que você inda encara a vida que só sofreu coisas que vinham do seu espírito e não da vida verdadeiramente. Que engano que existia nessas frases de você. É certo que a nossa amizade começou literariamente e literariamente as nossas relações têm continuado geralmente porém sinto que em você também ao lado dessas relações por carta e por convívio de ideais e correspondência nas verdades, uma outra coisa foi nascendo e que está bem forte agora e que não depende absolutamente da continuação das nossas relações literárias, a amizade. Hoje nós somos amigos e se é certo que se deixarmos de nos cartear de corresponder em ideais e ideias, as nossas relações literárias se acabarão, morra todo o nosso convívio, uma coisa ardendo sem doer permanecerá em nossas almas, um carinho todo especial e feliz. Que passem anos, se um dia um de nós sofrer e encontrar ou buscar o outro, sabe que nesse ombro terá descanso. Mas não sei bem mais porque vim pra essas ideias, creio que foi porque ia dizer pra você que se estragado, animalizado pela terra é certo que você dará pra muita gente uma bruta decepção e pros amigos um sofrimento penoso. Você não tem direito de fazer isso e isto você nunca deve de esquecer. Por agora inda não serve muito. A lembrança de Belo Horizonte e dos ideais fresquinhos na cabeça faz você permanecer espiritual porém não se esqueça do que estou falando porque isso talvez inda venha a servir pra levantar o seu espírito caindo. É certo que aconteça o que acontecer você terá sempre em mim um amigo perfeito porém você não terá direito de fazer esse amigo que é bom mesmo olhar você com olhos escondendo tristura e saudade. Você aí procure se dar com toda gente, procure se igualar com todos, nunca mostre nenhuma superioridade principalmente com os mais humildes e mais pobres de espírito. Viva de preferência com colonos e gente baixa que com delegados e médicos. Com a gente baixa você tem muito o que aprender embora não pra bancar o primitivista, é lógico. Porém nessa vida você deve ser terrivelmente egoísta, ame os companheiros de vida mas nunca deixe de por dentro estar observando eles. Faça de todos o seu aprendizado contínuo, não pra espetáculo e pra obter prazeres infamemente pessoais porém pra recriá-los pra aproveitá-los em sublimações artísticas, verso ou prosa, a vida de você e seu destino.
         Quanto a mim você sabe quanto estou ao dispor de você. Faça de mim o que quiser, se esqueça que pode me dar caceteações, peça livros, peça revistas, peça o que quiser. Eu te garanto que não me cansarei porque sou verdadeiramente amigo de você. E é preciso que eu seja bem franco pra você compreender bem a importância e o alcance desta oferta: É possível mesmo que você me caceteie, que me mande pedir um livro e que eu não tenha dinheiro no momento pra comprá-lo, que me mande pedir opinião sobre um assunto e eu não tenha tempo pra dá-la. Pois apesar de tudo isso você não deve hesitar nem um momento só em me cacetear. Se eu dou minha amizade é pra que ela seja útil. E por mais que você seja meu amigo você não tem o direito de deixar de ser egoísta e de exercer esse egoísmo comigo mesmo. Você antes de mais nada tem que se salvar e tem que se importar com a luta que vai ter com a terra. E por essa luta deve de sacrificar tudo até a paciência e o descanso dos seus amigos. Creio que está bem explicada a importância do meu oferecimento. Só o que peço é que você me mande contar logo se se pode mandar registrado aí pra Itabira. Porque também da minha parte não abandonarei o meu egoísmo e os livros caros que você me pedir e que não poderei comprar em dois exemplares e de que terei de emprestar o meu, só mandarei se puderem ir registrados, doutra forma garanto que não mando porque também tenho uma bruta paixão pelos meus livros e serei incapaz de sacrificar os mais queridos mesmo por um amigo. Eu creio que toda esta sinceridade deixa você largamente livre de pedir o que quiser e me cacetear à vontade. Me parece mesmo que estou sendo um companheiro às direitas, você não acha?
       E aí em Itabira, Carlos, você terá tempo de escrever cartas compridas, fale de tudo, descreva a terra realista e liricamente, descreva como é que se vai pra aí, descreva tudo e fale ideias discuta me mande plantar batatas mas viva espiritualmente. E com tudo isto estou pensando em você e com um desejo de te abraçar comprido mesmo, ter você no meu coração por um minuto inteirinho. 
        Beije a mão de Dolores por mim. Diga pra ela que agora é que está começando mesmo o destino dela, ela que leia esta carta e que me ajude a... carregar você.  
        Ciao.
               Mário.

ANDRADE, Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, pp. 75-77.

Nenhum comentário: