segunda-feira, 24 de março de 2014

Mr. Hublot

        Mr. Hublot é-nos apresentado como um homem de meia idade, que tem TOC, vive sozinho e trabalha em casa. Seus dias se resumem, e limitam, a desempenhar as atividades habituais, no mesmo horário e com o mesmo método. Sua existência é a absoluta tradução de uma vida monótona e de um perfil idiossincrático. 
       Mr. Hublot parece um ser programado, tal qual uma máquina, a fazer determinadas ações e somente viver para cumprir os comandos das ações rotineiras. O principal regente de sua vida: o relógio. Ele está na parede da casa de Mr. Hublot e também nos campos numéricos de sua cabeça, além de seu tique-taque ser a única melodia ouvida por Mr. Hublot, que faz questão de a repetir, tilintando talheres na louça, com a feição de tédio e monotonia, o movimento, igualmente entediante e monótono, da música do relógio. Imitando o relógio, Mr. Hublot transforma-se na representação do objeto de ponteiros, mas só que vivo, atuante.
        À primeira vista, Mr. Hublot nos simpatiza com seu rosto de feição inocente - como assim o é todo rosto quando é destituído de qualquer intenção com a realidade; um rosto neutro que só pode assim ser porque ainda não traz as marcas da vida em sociedade. Aos poucos, no entanto, nossa simpatia por ele divide espaço com o incômodo pela sua parafernália indumentária. Para qualquer movimento de Mr. Hublot, ou mesmo em qualquer lugar que Mr. Hublot vá, ou qualquer coisa que faça, ele depende de um mecanismo de máquina, se atrelado à sua cabeça, à sua mão ou mesmo à sua veste. Tal farda robotizada só pode moldar seu jeito em um jeito automatizado de ser. 
       Se por um lado, Mr Hublot é automatizado por ser uma vítima do TOC, por outro, o é sobretudo por ser vítima de uma sociedade automatizada, na qual todos usam equipamentos altamente tecnológicos para sobreviver; aqueles objetos que dão conta de sanar todas as necessidades práticas humanas, inclusive interferindo na sana das necessidades pessoais dos homens, incutindo em cada indivíduo-fenda da machina mundi, o sentimento de bastar viver por si e só.
          Pois que a vida dos habitantes da cidade de Mr. Hublot, e a sua também, é como a vida de uma máquina até que algo que não os exige máquina, ou desempenhos automatizados, mude o curso das existências. A de Mr. Hublot, felizmente, ganha a chance de ser alterada logo que um cachorro de rua é ameaçado de perder a vida entre as engrenagens de um caminhão de lixo. Se a compaixão de Mr. Hublot não chega a tempo, a máquina anula o ser. Assim, como, se Mr. Hublot não desempenhasse seu papel humano (a que o sentimento de compaixão corresponde) ele cederia à condição de máquina. Faltava pouco, mas muitíssimo pouco, para não confundirmos Mr. Hublot com uma máquina. Assim como acaba faltando um milésimo de segundo, para o cachorro, ou a situação de humanidade que ele vem sugerir, não ser engolidos pelas engrenagens. Dois ameaçados pelo movimento fatal das engrenagens.
          Quando Mr. Hublot resolve ir correr para salvar o cão, ele não consegue seguir o ritual de ações que seguiria habitualmente para sair da casa, embora tente; se confunde e atrapalha com a quantidade de travas nas portas, com qual ação deveria lidar primeiro, se essa ou aquela. Mr. Hublot fica desesperado. Sucede uma cena como se ocorresse uma pane em uma máquina. Mas, apesar da estabanação, chega à rua e encontra o cachorro vivo. Mr. Hublot não salva o cachorro, mas a partir daquele momento, dado o alívio que sente por ver o cão vivo, o toma por seu e o leva para casa - oferecendo uma pausa momentânea para o ciclo de sofrimentos a que o animalzinho estava sujeito pela negligência dos autômatos de índole-máquina humanos.
        Assim como ao sair de casa Mr. Hublot teve que abrir mão do seu ritual e de sua parafernália mecânica para conseguir chegar a tempo nas ruas e salvar o cachorro, da mesma maneira ele se verá instado a abrir mão de vários hábitos e objetos para criar o cão dentro de sua casa. É como se para existir o homem e o cachorro, os seres humanizantes e seus sentimentos humanos, fosse necessário abrir mão de vários vínculos com os objetos materiais e com o comportamento que eles obrigam as pessoas a desempenharem. 
         No início, o cachorro ainda se adequa ao espaço e à rotina de Mr. Hublot, mas, com o passar do tempo, o espaço da casa de Mr. Hublot vai se tornando pequeno para o cão que cresce cada vez mais e acaba esbarrando em muitos objetos e os tirando do lugar, quando não os destrói. Até que por fim surge um impasse na vida de Mr. Hublot: não é possível viver com o cão gigante em sua casa pequena e todos os seus objetos e seus horários. Naquele momento, o cão se tornara tão maior que Mr. Hublot e seus hábitos, o cão bem como a vida afetiva com ele se tornaram tão acima da velha automatizada existência, que Mr. Hublot tem que tomar a decisão se vive para as máquinas e seus hábitos ou para o cão. Ele se decide pelo cão, e então resolve o problema do espaço mudando-se para uma casa maior ao lado da sua. Nela consegue viver, enfim em harmonia, com o cão, uma quantidade razoável de máquinas e hábitos automatizados.
               Tal historinha é enredo do vencedor do Oscar 2014 de melhor curta de animação: Mr. Hublot (França, 2013). O curta, dirigido por Laurent Weizt e Alexandre Espigares, e escrito pelo primeiro, é um belo desenho-crônica da nossa existência moderna, na qual, cada vez mais, a máquina nos incorpora e nos faz seres-autômatos quase esquecidos do nossa lado humano. Talvez a animação venha nos deixar a lembrança de que em meio às exigências do dia-a-dia para que sejamos cada vez mais automatizados e autofuncionais, nós busquemos sempre ceder espaço para desempenharmos nossa função de seres humanos, nos relacionarmos com outro, e assim, e somente assim, conseguirmos trazer de volta uma boa convivência entre o automatismo (do qual hoje já somos presas inevitáveis) e o nosso lado humano.
        Confira o curta, na íntegra, abaixo.
        Boa sessão!


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