sábado, 8 de março de 2014

Claude Frollo & Quasímodo

 
Imagem do filme The Hunchback of Notre Dame, de 1923.

        De fato, Claude Frollo não era um personagem qualquer. [...] Tinha uma terrível febre de adquirir e entesourar tudo o que era relativo à ciência. Com dezoito anos, concluíra quatro faculdades. Parecia que o jovem tinha uma única meta na vida: saber. 
         Foi em torno dessa época que o verão excessivo de 1466 fez rebentar essa grande peste, que levou mais de quarenta mil criaturas ao viscondado de Paris e, entre elas, diz Jean de Troyes, "mestre Arnoul, astrólogo do rei, que era um grande homem de bem, sábio e agradável". Espalhou-se na Universidade o murmúrio de que a rua Tirechappe fora devastada pela doença. Era lá que moravam, em meio ao seu fedo, os pais de Claude. O jovem estudante correu alarmado à casa paterna. Quando nela entrou, seu pai e sua mãe estavam mortos desde a véspera. Um jovem irmão, em fraldas ainda, vivia e gritava, abandonado em seu braço. Era tudo o que restava a Claude de sua família. O jovem tomou a criança em seus braços e saiu pensativo. Até então, vivera apenas a ciência; começava a viver a vida.
         Essa catástrofe causou uma crise na existência de Claude. Órfão, primogênito, chefe de família aos dezenove anos, sentiu-se rudemente arrastado dos devaneios da escola às realidades deste mundo. Então, movido pela piedade, tomou-se de paixão e devoção por essa criança, seu irmão: algo estranho e doce, uma afeição humana justamente em quem amara apenas livros.
       Essa afeição se desenvolveu de forma singular. Em uma alma tão nova, era como um primeiro amor. Separado de seus pais desde a infância, mal os conhecera, enclausurado e murado em seus livros, sobretudo ávido de estudar e de aprender, atento apenas, até então, à sua inteligência, que se expandia com a ciência, à sua imaginação, que crescia com as letras, o pobre estudante não tivera ainda tempo de sentir o lugar de seu coração. Esse irmão mais novo, sem pai nem mãe, essa pequena criança, que lhe caía bruscamente do céu sobre seus braços, fez dele um homem novo. Percebeu que havia outra coisa no mundo além das especulações da Sorbonne e os versos de Homerus, que o homem tinha necessidade de afeições, que a vida sem ternura e sem amor era um mecanismo seco, barulhento e dilacerante. Imaginava somente, pois ele se encontrava na idade em que as ilusões apenas se convertem em ilusões, em que as afeições de sangue e de família eram as únicas necessárias e que um irmão mais novo bastava-lhe para preencher toda uma existência. 
         Lançou-se então a amar seu pequeno Jehan com a paixão de um caráter já profundo, ardente, concentrado. Esta pequena e frágil criatura, bela, loura, rosa, encaracolada, este órfão sem outro amparo além de outro órfão agitava-o até o fundo de suas entranhas; e, grave pensador que era, pôs-se a refletir sobre Jehan com uma misericórdia infinita. Cuidou dele e dele se ocupou como de algo tão frágil quanto estimado. Foi para a criança mais do que um irmão; tornou-se sua mãe.
         O pequeno Jehan perdeu sua mãe, que o amamentava ainda. Claude o alimentou. Além do feudo de Tirechappe, herdou de seu pai o feudo do Moulin, domínio da torre quadrada de Gentilly. Era um moinho sobre uma colina, perto do castelo de Winchestre (Bicêtre). Havia nele uma moleira que amamentava uma bela criança; não era longe da Universidade. O próprio Claude levou-lhe seu pequeno Jehan.
        Então, sentindo que carregava um fardo, tomou a vida muito a sério. A lembrança de seu pequeno irmão tornou-se, além da recreação, a meta de seus estudos. Decidiu se dedicar inteiramente a um futuro em que respondesse somente a Deus, e não ter jamais outra esposa, outra criança além da felicidade e a fortuna de seu irmão. Aferrou-se então mais do que nunca à sua vocação clerical. Seu mérito, sua ciência, sua qualidade de vassalo do bispo de Paris abriram-lhe todas as grandes portas da Igreja. Com vinte anos, por dispensa especial da Santa Sé, era padre e servia, como o mais jovem dos capelães da Notre-Dame, no altar que se chama, devido à missa tardia que aí se reza, altare pigrorum (altar dos preguiçosos). 
         Lá, mais do que nunca mergulhado em seus caros livros, que deixava apenas para correr por uma hora ao feudo do Moulin, este misto de saber e austeridade, tão raro em alguém de sua idade, deu-lhe respeito e admiração do claustro. Do claustro, sua reputação de sábio chegou ao povo, onde foi um pouco distorcida e ele ganhou fama de feiticeiro, coisa frequente nesses casos.
      Era nesse tempo que ele voltava, no dia de Quasímodo, após pregar a missa dos preguiçosos em seu altar, que era ao lado da porta do coro que levava à nave, à direita, próximo da imagem da Virgem, que sua atenção foi despertada pelo grupo de velhas esganiçadas em torno do leito das crianças abandonadas.
          Foi então que se aproximou da infeliz e pequena criatura tão odiada e tão ameaçada. Essa desgraça, essa deformidade, esse abandono, a lembrança do irmão mais novo, a quimera que impressionava de súbito seu espírito de que, se ele morresse, seu querido pequeno Jehan poderia muito bem ser lançado miseravelmente sobre a bancada das crianças abandonadas, tudo isso lhe veio ao coração ao mesmo tempo, uma grande piedade o comoveu e ele levou consigo a criança. 
           Quando tirou a criança do saco, achou-a de fato bem disforme. O pobre pequeno diabo possuía uma verruga sobre o olho esquerdo, a cabeça nos ombros, a coluna vertebral arqueada, o esterno proeminente, as pernas tortas; mas parecia-lhe vivaz; e ainda que fosse impossível saber em que língua balbuciava, seu grito anunciava certa força e saúde. A compaixão de Claude aumentou com essa feiura, e prometeu, em seu coração, ensinar essa criança por amor de seu irmão, a fim de, quaisquer que fossem no futuro as faltas do pequeno Jehan, ele lhe devesse essa caridade. Era uma espécie de investimento de boas obras que ele efetuava sobre a cabeça de seu irmão; era uma pacotilha de boas ações que ele desejava acumular desde já, para o caso de seu pequeno irmão precisar dessa moeda, a única que seria recebida no pedágio do paraíso.
         Batizou a criança adotiva e lhe deu o nome de Quasímodo, seja porque desejou dessa forma o dia em que o encontrou, seja porque desejou caracterizar com esse nome o quanto a criatura era incompleta e apenas esboçada. Com efeito, Quasímodo, caolho, corcunda, cambaio, era apenas um quase
           Em 1482, Quasímodo estava crescido. E se tornou o sineiro da Notre-Dame, graças a seu pai adotivo Claude Frollo, o qual se tornara arquidiácono de Josas, graças a seu suserano monsenhor Louis de Beaumont. [...]
          Quasímodo era então o carrilhador da Notre-Dame.
          Com o tempo, formou-se não sei que relação íntima que uniu o sineiro à igreja. Isolado para sempre do mundo pela dupla fatalidade de seu nascimento desconhecido e de sua natureza disforme, aprisionado desde a infância nesse duplo círculo infranqueável, o pobre infeliz se acostumou a ver apenas do mundo as religiosas muralhas que o recolheram em sua sombra. Notre-Dame era para ele, sucessivamente, conforme crescia e se desenvolvia, o ovo, o ninho, a casa, a pátria, o universo.
      Com certeza, havia uma espécie de harmonia misteriosa e preexistente entre essa criatura e essa construção. Quando, pequeno ainda, arrastava-se tortuosamente e em sobressaltos pelas trevas de suas abóbadas, ele parecia, com sua face humana e sua compleição bestial, o réptil natural dessa laje úmida e sombria, sobre a qual a sombra dos capitéis romanos projetavam tantas formas bizarras.
          Mais tarde, a primeira vez em que se agarrou maquinalmente à corda das torres e aí se pendurou, e que fez o sino balançar, causou em Claude, seu pai adotivo, o efeito de uma criança cuja língua se liberta e que começa a falar.
           Assim, pouco a pouco, desenvolvendo-se sempre no sentido da catedral, aí vivendo, aí dormindo, não saindo quase nunca, sofrendo a todo momento a pressão misteriosa, chegou mesmo a se assemelhar a ela, a se incrustar nela, por assim dizer, a lhe ser uma parte integrante. [...] De tanto saltar, trepar, divertir-se em meio aos abismos da gigantesca catedral, tornou-se de algum modo macaco e cabrito, como a criança da Calábria que nada antes de andar, e brinca, ainda pequeno, com o mar.
         De resto, não somente o corpo parecia talhado conforme a catedral, mais ainda seu espírito. Em que estado se encontrava essa alma, que dobra contraíra, que forma tomara sob esse estreito invólucro, nessa vida selvagem, é o que seria difícil determinar. Quasímodo nascera caolho, corcunda e coxo. Foi com grande esforço e paciência que Claude Frollo conseguia fazê-lo falar. Mas uma fatalidade estava associada à criança abandonada. Sineiro de Notre-Dame com quatorze anos, uma nova enfermidade o acometera; os sinos rasgaram seus tímpanos. A única porta que a natureza lhe deixara grande e aberta para o mundo fora-lhe bruscamente fechada para sempre.
           Fechando-se, ele interceptou o único raio de alegria e luz que penetrava ainda na alma de Quasímodo. Essa alma caiu em uma noite profunda. A melancolia do miserável se tornou incurável e completa como sua deformidade. E sua surdez o tornou de certo modo mudo. Para não fazer rir os outros, no momento em que se viu surdo caiu num profundo silêncio, e o rompia apenas quando estava só. Prendeu essa língua que Claude Frollo tivera tanto esforço em libertar. E, quando a necessidade o constrangia a falar, sua língua estava embotada, desajeitada, como uma porta cujos gonzos estão enferrujados. 
          Se agora tentássemos penetrar na alma de Quasímodo através dessa casca espessa e dura; se pudéssemos sondar as profundezas dessa organização mal feita; se nos fosse dado olhar com uma chama atrás desses órgãos sem transparência, explorar o interior tenebroso dessa criatura opaca, elucidar seus recantos obscuros, os absurdos becos sem saída, e lançar uma viva luz sobre o psiquismo acorrentado no fundo desse antro, encontrá-la-íamos, sem dúvida, infeliz, de certo modo pobre, definhada e raquítica, como a desses prisioneiros das celas de Veneza que envelhecem vergados numa caixa de pedra demasiado baixa e curta.
         Com certa, o espírito se atrofia em um corpo defeituoso. Quasímodo sentia apenas mover cegamente dentro de si uma alma feita à sua imagem. As impressões dos objetos sofriam uma refração considerável antes de chegar a seu pensamento. Seu cérebro era um meio particular: as ideias que o atravessavam, dele saíam bastante torcidas. A reflexão que provinha dessa refração era divergente e desviada. 
            Daí, mil ilusões de ótica, mil aberrações de julgamentos, mil desvios em que divagava seu pensamento, tão louco, tão idiota.
          O primeiro efeito dessa organização fatal era turvar o olhar que ele lançava sobre as coisas. Ele não recebia quase nenhuma percepção imediata. O mundo exterior lhe parecia muito mais distante do que a nós. 
             O segundo efeito de sua infelicidade era que o tornava mau.
         Ele era mau, de fato, porque era selvagem; ele era selvagem porque era feio. Havia tanta lógica em sua natureza quanto na nossa.
           Sua força, tão extraordinariamente desenvolvida, era mais uma causa da sua maldade. "Malus puer robustus" ("A criança robusta é má"), disse Hobbes.
            No entanto, é necessário render-lhe esta justiça, a maldade talvez não lhe fosse inata. Desde seus primeiros passos entre os homens, ele se sentiu, depois se viu, vaiado, difamado, repelido. A palavra humana para ele era sempre uma ralharia ou uma maldição. Crescendo, encontrara apenas a raiva ao seu redor. Ele a contraiu. Adquiriu a maldade geral. Armou-se com a arma que o feriam. 
          Depois de tudo, ele voltava sua face para os homens apenas com pesar. Sua catedral lhe bastava. Era povoada de figuras de mármore, reis, santos, bispos, que não se rebentavam de rir à sua presença e tinham por ele apenas um olhar tranquilo e benevolente. As outras estátuas, aquelas dos monstros e dos demônios, não tinham raiva dele. Quasímodo se parecia muito com elas. Elas ralhavam, sobretudo, com os outros homens. Os santos eram seus amigos e velavam por ele; os monstros eram seus amigos e o protegiam. Assim, tinha ele grande efusão com eles. Assim, passava horas acocorado diante de uma dessas estátuas conversando solitariamente com ela. Se alguém o flagrasse, fugia como um amante surpreendido em sua serenata.
          E a catedral não lhe era apenas a sociedade, mas o universo, a natureza. Não imaginava outra latada além dos vitrais sempre em flor, nem outra sombra além dessas folhagens de pedra que desabrocham carregadas de pássaros no tufo dos capitéis saxônicos, nem outras montanhas além das torres colossais da igreja, nem outro oceano além de Paris que farfalhava a seus pés.

HUGO, Victor. Notre-Dame de Paris. Trad. Ana de Alencar e Marcelo Diniz. São Paulo: Estação Liberdade, 2011, pp. 183-191.
       

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