terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Alguns contos de Lygia F. Telles

Os gatos

        Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
        Mas espera, já estou me precipitando, eu pensava naquela fábula da infância: é que Deus Nosso Senhor pediu água ao cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos e mesuras foi levá-lo ao Senhor. Pedido igual foi feito ao gato e o que fez o gato? O fingido escolheu um copo todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo nojento na mão divina.
        Acreditei na fábula, na infância a gente só acredita. Mais tarde, conhecendo melhor o gato, descobri que ele jamais teria esse comportamento, questão de feitio. De caráter. Ele ouviria a ordem e continuaria deitado na almofada, olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que cachorro que até dormindo se parece com o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhada, só cachorro. Meus cachorros riam demais abanando o rabo, que é o jeito natural que eles têm de manifestar alegria, chegavam mesmo a rolar de rir, a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! indecifrável. Inatingível.
           Nem pior nem melhor do que o cachorro, mas diferente. Fingido? Não, ele nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu da moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e olham. Olham. Cavilosidade sugere esconderijo, cave – aquele recôncavo onde o vinho envelhece. Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente.
        Foi na minha juventude que conheci o gato bem de perto. Me preparava para os vestibulares da Academia do Largo de São Francisco, era noite. E eu lia Iracema sem vontade, lia em voz alta, aos brados, para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada entrando pela janela e parando atrás da minha cadeira. Senti o olhar da coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando aquela calma que estava longe de sentir: um gato malhado, espetado nas quatro patas, me encarava, perplexo. Eu também perplexa. Fomos nos recuperando do susto, eu menos tensa do que ele. Meu apartamento era no primeiro andar de um prédio cercado de casario e essa janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima, por onde transitavam os gatos do bairro.
            Por onde andam hoje os gatos que não encontro mais nenhum. Naquele tempo havia gato à beça nos muros, nos telhados. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde agora os telhados nos quais eles ficavam tomando sol? Caçando passarinho. Amando. Os ratos todos em plena circulação, fortalecidos. E os gatos, onde estão os gatos? Pois aquele era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas num fundo branco. E os olhos. Por alguma razão obscura, escolheu minha casa: estendi a mão afeita a acariciar cabeça de cachorro. Mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro – primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me confundiu. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
              Fui buscar o pires de leite, deixei-o ao alcance do visitante da noite e continuei a ler o romance da virgem dos lábios de mel, mas em voz baixa, intuí que ele preferia o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é nítido como sexo de cachorro, outra diferença importante. Leva algum tempo para a descoberta do sexo, da unha e da idade. Gato ou gata, vai se chamar Iracema, resolvi. E deixei meu hóspede, a casa é sua.
        Então ouvi o ruído delicado, ele bebia leite, mas não como os cachorros bebem, sofregamente, espirrando em redor. O gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
           “Tudo passa sobre a terra!” – estava escrito no final do romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete. Também você vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que permaneceria infinita na minha finitude. (p.11-14)

O jardineiro

          Só colhia as rosas ao anoitecer porque durante o sono elas não sentiam o aço frio da tesoura. Uma noite ele sonhou que cortava as hastes de manhã, em pleno sol, as rosas despertas e gritando e sangrando na altura do corte das cabeças decepadas. Quando ele acordou, viu que estava com as mãos sujas de sangue. (p.78)

Senso de humor

          Na minha idade de ouro, costumava fazer – refazer – uma hierarquia de valores e nessa hierarquia a coragem ocupava o primeiro lugar. A virtude maior. Coragem de amar e desamar, coragem de morrer, coragem de cólera, da tristeza – ô Deus! – até nos enterros as pessoas tão contidas, tão exemplares. Se controlando para não chorar alto porque se o choro fica forte, já vem alguém com pílula, a injeção, o analista: fechar as portas, as janelas, os buracos. Até os anjinhos de Giotto se desesperam diante de Jesus crucificado, lá estão eles no céu, arrancando os cabelos, os olhos inundados de lágrimas. Mas o homem tem que ficar no nível, sem transbordar. Sem claudicar: claudico, claudicas, claudicavi, claudicatum, claudicare. A origem naquele imperador Cláudio, que mancava. Então se a gente dá uma mancada, já vem a terapia de apoio: pisar firme. Não chore, não tussa, não ria, isto é, ria discretamente porque senão o próximo já vem pegar no seu braço, ficou de porre? Não, não é isso, não, é que estou contente, com vontade de cantar, queria cantar, posso?
             Medo de desafinar – ai! – que duro o julgamento desse próximo, medida de todas as coisas. Tão atento a nosso próximo. Atento e desatento: condena, absolve, aconselha, desaconselha e depois vai tomar chope, esquece. O objeto do julgamento – o réu – levando tudo tão a sério, fazendo e desfazendo. E o outro, como no poema, tirando ouro do nariz.
             Neste sistema burguês, onde só tem importância a aparência, com todos defendendo ferozmente essa aparência, incluindo-se os neuróticos mais angustiados ainda porque reprimidos – dentro desse mecanismo, comecei a superestimar a coragem. Emocionada com o rei que antes do grito da criança, “mas ele está nu!”, espontaneamente se reconhece em sua nudez, exposto por inteiro, face e coração: aqui estou.
             Mudei de pensar. Melhor ainda do que ter coragem é ter senso de humor, dom mais raro. E mais nítido. Há todo um leque de ambigüidade na conceituação do comportamento corajoso, é coragem cortar os pulsos? Se atirar de um vigésimo andar? E o soldado que acerta em cheio a bomba de napalm no vilarejo e recebe medalhas e tratamento de herói – esse é um bravo? Desertar pode indicar coragem. Também ficar.
            No reconhecimento do humor não há equívoco. Ou existe ou não existe e seu portador sabe disso, o portador e os que estão ao redor. Tente fingir bom humor perto de uma criança. De um cachorro. Faça aquelas caras, a voz postiçamente mansa. O cachorro vem, fareja os fluidos, sente o peso da aura – uma barra – e vai saindo com o rabo entre as pernas. Bom humor é charme e as pessoas querem ser charmosas, os políticos em primeiro lugar, não é com vinagre que se apanha mosca. Mas se esmerando embora na representação, é difícil para o fingidor sustentar por muito tempo a máscara do bom humor, o mascarado se cansa e acaba de descobrindo.
            Sense of humour. Mas o que vem a ser afinal esse senso de humor? Difícil a definição. Mas sabe-se o que ele não é: não é a graça irreverente das anedotas na boa tradição lusitana ou carioca, o repertório pornográfico do anedotário oral e escrito é delirante, incluídas as histórias em quadrinhos. Mas não se trata disso: nem piada obscena nem bem-comportada. O humor também não reside no humor negro do anedotário tragicômico. Não confundir ainda o senso de humor (que pode ser adquirido e, nesse caso, maior mérito) com o humorismo profissional de teatro ou televisão, o profissional ri e faz rir por ofício. Longe do público, fecha seu repertório, está descansando. E no descanso pode ser até um mal-humorado, um chato.
             Em seu estado puro, o senso de humor não é negro nem vermelho nem azul mas tem as sete cores do arco-íris numa faixa só. Nem erótico nem puritano, não tem implicações de ordem ética mas estética, o bem-humorado é um esteta. Uma filosofia de vida? Digamos, uma doce filosofia que nos permite vislumbrar uma certa graça nas coisas desengraçadas. Sem sarcasmo, que o sarcasmo é cruel. Sarcasmo é veneno. E o senso de humor é que nos impede de virarmos uma esponja de fel, a casa pegou fogo? O louco bem-humorado dá uma volta em torno, tira o cigarro do bolso que não existe e acende o cachimbo numa brasa do fogão. (p. 20-23)

As frases ideais

        Volto (ainda e sempre) a Simone de Beauvoir e dela destaco esta frase, marco elementar desde o início da luta: "Somente o trabalho fora do lar é capaz de ajudar a plena realização psíquica e social da mulher."
      E a retaguarda dessa mulher que vai trabalhar fora? Como fica essa retaguarda? A professora Moema Toscano dá a resposta certa: "Enquanto não se superar a necessidade da empregada doméstica (como acontece nos países desenvolvidos) eu não acredito que possa haver um feminismo no Brasil." (p. 110)

A mulher de Omsk

         Visto todos os abrigos que descubro na mala e por cima de todos o casacão que tem um nome intraduzível na perfeita definição da senhora C., cachê-misère. As malhas são descombinadas mas o casaco tem a missão de escondê-las, isso se não fossem assim grossas, ele reage e estouram dois botões. Peço à mulher do toalete (estou no toalete do aeroporto) que me arranje uma agulha com linha. A linguagem das mãos. Gesticulo e acho elegante o movimento que faço com a mão direita, costurando o espaço com uma agulha invisível na ponta dos dedos, chego ao requinte de imitar o movimento coleante da ponta varando o tecido. A mulher de olhos azuis e nariz vermelho fez um gesto, um momento. Saiu e voltou em seguida, triunfante, com a agulha e o carretel de linha preta. Ofereceu-me um banco, sentou-se na minha frente e ficou muito atenta enquanto eu pregava os botões. Chegou uma mulher mais jovem e mais baixa, as faces queimadas de frio, cabelos louros presos num grossa trança no alto da cabeça, como um diadema. Trouxe duas grandes canecas de chá fumegante. Ofereceu uma caneca à companheira e assim que terminei de pregar os botões me estendeu a outra caneca e saiu rapidamente. A mulher sentada diante de mim soprou a fumaça do chá, sorriu e apontou a caneca, que eu bebesse, estava bom, não estava? Fiz que sim com a cabeça e ficamos as duas ali em silêncio, uma olhando para a outra e bebendo o chá em pequeninos goles. Apertam-se seus olhinhos azuis numa expressão de afetuosa curiosidade e me fazem perguntas, mas quem eu era? De onde vinha e para onde ia?
            Tinha cara de Alexandra Petrovna. Fechei as mãos em tomo da caneca, no mesmo gesto dela e meus dedos aquecidos foram ficando vermelhos, quem eu era e para onde ia? Difícil responder isso, Alexandra Petrovna, difícil. Era evidente que se tratava de uma mulher de uma só língua e essa era tão inacessível quanto a linguagem do vento soprando lá fora. O bem-estar que vinha do chá quente foi se alargando em mim num sentimento de libertação por me ver assim sem nome e sem passado diante daquela mulher. Como se tivesse acabado de nascer, não era estranho? a impossibilidade da comunicação através da palavra nos aproximava ainda mais. Lembrei-me da pergunta odiosa, frequente no Brasil e decerto em outros países, a natureza do homem é parecida em qualquer idioma: "O senhor sabe com quem está falando?"
          Ninguém sabe, ninguém. Na Sibéria ninguém sabe de nada, inútil tirar do bolso o cartão de deputado, as condecorações, os louros. Para a Sibéria deveriam ser mandados os narcisos em delírio num pequeno estágio de humildade. Os ventos passam, os homens passam e ninguém sabe.
             O seu chá estava excelente, Alexandra Petrovna - eu disse devolvendo-lhe a caneca e a agulha. Levei a mão ao peito, na altura do coração, uma delícia de chá. Ela prendeu a agulha na gola do casaco. O gesto era eterno, todas as mulheres do mundo tinham gesto igual ao receber uma agulha e sem saber no momento onde guardá-la: na gola do casaco. Pousou a mão no meu ombro, à maneira de despedida. Sorriam brilhantes os olhinhos numa expressão fraterna. Adeus, Alexandra Petrovna. Levo no meu casaco um pouco da linha siberiana. (p. 57-58)
  
TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor: fragmentos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

2 comentários:

Unknown disse...

Amei o conto sobre os gatos!
Descreve muito bem o comportamento desses queridos bichinhos!
Sou apaixonado por cachorro mas tenho que admitir que me dou muito melhor com os gatos. Não tem cobrança, euforia, adoração exagerada... São muito mais parecidos com os humanos do que muita gente imagina!

:)

Bruna Caixeta disse...

Oi, Danizita!

O conto é mesmo uma ótima descrição do comportamento dos felinos, não é mesmo?!

Também adoro cachorros e gatos. E semelhante a você também, nutro uma admiração particular e gigante pelas características de contenção, astúcia, discrição e independência dos gatos.

E, realmente, não sei se pelo fato de nós os descrevemos com nossos adjetivos, ou mesmo os enxergamos tendo atitudes semelhante a de alguns seres humanos - por causa da nossa limitação de condição, de conseguir apenas caracterizar aquilo ao nosso redor com palavras e adjetivos de nosso universo humano! -, os gatos têm lá sim semelhanças com humanos. Arriscaria a dizer até que a Danizita tem lá suas semelhanças em comportamento com os gatinhos...

Agora, que negócio bonito esse tal de "amar discretamente" o felino, né?! O jeito discreto do bichinho disciplina o tipo de amor por ele, que é esse amor discreto, sem adulação demasiada, "cobrança, euforia e adoração exagerada" - para me valer das suas excelentes palavras. Que beleza de amor!

Bom vê-la por aqui!
Um abraço peludo!