segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ilusões perdidas

[...] Com efeito, os nossos ridículos são em grande parte causados por um belo sentimento, por virtudes ou faculdades levadas ao extremo. O orgulho não depurado pelo contato com a alta sociedade torna-se estreiteza ao se aplicar às pequenas coisas em vez de se desenvolver num círculo de sentimentos elevados. A exaltação, essa virtude na virtude, que engendra as santas, que inspira as devoções escondidas e as brilhantes poesias, torna-se exagero ao apegar-se aos nadas da província. Longe do centro onde brilham os grandes espíritos, onde o ar é carregado de ideias, onde tudo se renova, a instrução envelhece, o gosto se desnaturaliza como água estagnada. Por falta de exercício, as paixões diminuem ao engrandecer coisas mínimas. Eis a razão da avareza e dos mexericos que empestam a vida da província. A imitação das ideias estreitas e dos modos mesquinhos sem tardar invade a mais distinta pessoa. Assim parecem os homens nascidos grandes, as mulheres que, polidas pelo ensinamento da sociedade e formadas ao contato com espíritos superiores, teriam sido encantadoras. A senhora de Bargeton tangia a lira a propósito de qualquer bagatela, sem distinguir as poesias pessoais das poesias públicas. Há efetivamente sensações incompreendidas que é preciso guardar para si mesmo. É verdade que um pôr do sol é um grande poema, mas uma mulher não se torna ridícula ao pintá-lo com palavras grandiloquentes diante de pessoas materialistas? Há voluptuosidades que somente podem ser saboreadas a dois, de poeta para poeta, de coração para coração. Ela tinha o defeito de empregar aquelas imensas frases carregadas de termos enfáticos, engenhosamente nomeadas tartines na gíria do jornalismo, que todas as manhãs prepara algumas para seus assinantes, muitas não digeríveis e que contudo eles engolem. Ela empregava de modo pródigo superlativos que sobrecarregavam sua conversa, fazendo com que as menores coisas assumissem proporções gigantescas. Desde esta época, ela começava a tudo tipificar, individualizar, sintetizar, dramatizar, superiorizar, analisar, poetizar, proseificar, colossificar, angelizar, neologizar e tragificar. Pois que é preciso violar por um momento a língua a fim de pintar as novas extravagâncias que se apoderam de algumas mulheres. Aliás, seu espírito inflamava-se como sua linguagem. O ditirambo estava sempre em seu coração e em seus lábios. Ela palpitava, exaltava-se, entusiasmava-se com qualquer acontecimento: com a devoção de uma irmã de caridade e a execução dos irmãos Faucher, com a Ipsiboé do senhor d'Arlincourt assim como com a Anaconda de Lewis, com a fuga de Lavalette bem como com uma de suas amigas que fizera correr ladrões engrossando a voz. Para ela, tudo era sublime, maravilhoso. Animava-se, irava-se, abatia-se sobre ela mesma, lançava-se, caía, olhava o céu ou a terra; seus olhos enchiam-se de lágrimas. Ela gastava a vida em perpétuas admirações e se consumia em estranhos menosprezos. Concebia o paxá de Janina, gostaria de ter combatido com ele em seu harém, e encontraria algo de grandioso a ser costurado dentro de um saco e jogado na água. Invejava lady Esther Stanhope, essa pedante do deserto. Tinha vontade de entrar para a ordem de Santa Camila e ir morrer de febre amarela em Barcelona, cuidando de doentes: isso sim era uma grande, uma brilhante existência! Enfim, ela tinha sede de tudo o que não era água clara de sua vida, escondida entre as ervas. Adorava Lorde Byron, Jean-Jacques Rousseau, todas as existências poéticas e dramáticas. Tinha lágrimas por todos os infelizes e fanfarras para todas as vitórias. Simpatizava com Napoleão vencido, simpatizava com Mehemet-Ali massacrando os tiranos do Egito. Enfim, revestia as pessoas de gênio com uma auréola, e acreditava que viviam de perfumes e de luzes. Para muitos, ela parecia uma louca cuja loucura era sem perigo; mas é certo que, para qualquer observador perspicaz, essas coisas teriam parecido os destroços de um magnífico amor que se desabara tão logo construído, os restos de uma Jerusalém celeste, enfim o amor sem o amante. E era verdade. A história dos dezoito primeiros anos de casamento da senhora de Bargeton pode ser escrita em poucas palavras. Ela viveu durante algum tempo com sua própria substância e com esperanças longínquas. Em seguida, depois de ter reconhecido que a vida em Paris, à qual aspirava, era-lhe proibida pela mediocridade de sua fortuna, começou a examinar as pessoas que a rodeavam, e estremeceu com sua solidão. Não havia em torno dela nenhum homem que pudesse lhe inspirar uma dessas loucuras às quais as mulheres se dedicam, impulsionadas pelo desespero que causa uma vida sem saída, sem acontecimento, sem interesse. Ela não podia contar com nada, nem mesmo com um imprevisto, pois que há vidas sem imprevistos. Na época em que o Império brilhava em toda a sua glória, quando da passagem de Napoleão pela Espanha, para onde enviava a nata de suas tropas, as esperanças desta mulher, até então desenganadas, despertaram. A curiosidade a levou naturalmente a contemplar esses heróis que conquistavam a Europa por uma palavra lida na ordem do dia e que renovavam os fabulosos feitos da cavalaria. As cidades mais avaras e mais refratárias eram obrigadas a festejar a Guarda Imperial, diante da qual iam os admiradores locais e os prefeitos, com um discurso na ponta da língua, como se fosse endereçado à realeza. A senhora de Bergeton, que fora à cidade para uma festa oferecida por um regimento, apaixonou-se por um fidalgo, simples subtenente a quem o esperto Napoleão acenara com o bastão de marechal de França. Esta paixão contida, nobre, elevada e que contrastava com todas as paixões na ocasião tão facilmente iniciadas e rompidas, foi castamente consagrada pela mão da morte. Em Wagram, uma bala de canhão esmagou no coração do marquês de Cante-Croix o único retrato que atestava a beleza da senhora de Bargeton. Ela chorou durante muito tempo aquele belo homem, que em duas campanhas se tornara coronel, aquecido pela glória, pelo amor e que colocava uma carta de Naïs acima das condecorações imperiais. A dor lançou sobre o rosto desta mulher um véu de tristeza. Essa nuvem somente se dissipou na idade terrível em que a mulher começa a lamentar seus belos anos passados sem que os tivesse fruído, em que vê suas rosas se esvanecerem, em que os desejos de amor renascem com o desejo de prolongar os últimos sorrisos da juventude. Todas suas superioridades fizeram uma ferida em sua alma no momento em que o frio da província a invadiu. Como o arminho, ela teria morrido de tristeza se, por acaso, fosse manchada ao contato com homens que pensavam apenas em jogar alguns níqueis, à noite, depois de ter bem jantado. Sua altivez a preservou dos tristes amores da província. Entre a nulidade dos homens que a rodeavam e o vazio, uma mulher tão superior teve de preferir o vazio. O casamento e a sociedade foram então para ela um monastério. Viveu para a poesia, como a carmelita vive para a religião. As obras dos ilustres estrangeiros até então desconhecidos que foram publicadas de 1815 a 1821, os grandes tratados de Bonald e os de Maistre, essas duas águias do pensamento, as obras enfim menos grandiosas da literatura francesa que dava vigorosamente seus primeiros ramos, embelezaram-lhe a solidão, mas não suavizaram nem seu espírito nem sua pessoa. Ela permanecia ereta e forte como uma árvore que suportou um raio sem se abater. Sua dignidade se elevou, sua realeza tornou-a preciosa e quinta-essenciada. Como todos aqueles que se deixam adorar por quaisquer cortesãos, ela entronou-se com seus defeitos. Tal era o passado da senhora Bargeton, fria história [...].

BALZAC, Honoré de. Ilusões perdidas: volume I. Trad. Leila de Aguiar Costa. São Paulo: Abril, 2010, p. 53- 57. (Clássicos Abril Coleções; v. 11).

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