segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Gravidade

     




       Poucos filmes cujo cenário e enredo abordaram o espaço, o fizeram de um ponto de vista diferente da conhecida exploração e/ou batalhas espaciais das películas de ficção científica. Gravidade (Gravity, EUA, 2013), um dos mais recentes filmes em cartaz, me pareceu um deles. 

      A situação inicial de abertura do filme, em que somos transportados para o espaço, na órbita baixa da Terra, onde astronautas estão consertando o telescópio espacial Hubble sob ameaça de serem atingidos pelos destroços de um satélite aposentado russo, parece constituir-se em uma antessala para as antigas disputas espaciais entre americanos e russos, ou mesmo, algo parecido, como um enredo cinematográfico de ação espacial bélica qualquer. No entanto, não são as rixas bélicas que ganham a cena no filme. É algo muito mais ligado ao cotidiano humano na Terra: o drama tão difícil e tão humano do desvinculo do outro, sobretudo diante da morte, sem a absoluta entrega à desistência de viver.  

        Ryan Stone (Sandra Bullock), a engenheira médica responsável pela missão do Hubble, no momento em que operava uma das placas do telescópio, tentando consertá-lo em conjunto com seus dois assistentes, Matt (George Clooney) e o controlador da missão na Terra (Ed Harris), é desconectada do Hubble pela colisão de pedaços do satélite russo, e perde, por alguns instantes, total comunicação com seus colegas. Após algum tempo solta no espaço, sozinha, a dar seguidas "cambalhotas" e com o oxigênio da sua roupa diminuindo em quantidade, consegue ser salva por Matt. Os dois astronautas, únicos sobreviventes da missão Hubble e sem nenhuma conexão com a Terra, conseguem se unir e manterem-se conectados pelo aparato tipo cabo da roupa de Matt, tendo por desafio, diante da redução de oxigênio da roupa de Ryan e de combustível da diferenciada e mais sofisticada roupa de Matt, atingir a Estação Espacial Internacional (laboratório que recebe equipes em operações no espaço) para serem salvos. 

       No desafiante percurso à EEI, o bem humorado e simpático Matt, em suas inúmeras investidas para aliviar a tensão de Ryan, acaba direcionando algumas de suas questões para a vida pessoal da médica e astronauta. Descobre ele, e o espectador ao mesmo tempo, que Ryan perdeu uma filha ainda quando a menina era uma criança, num estúpido lance (como as palavras dela mesma bem caracterizou) em que a pequena bateu a cabeça em um brinquedo. A partir daí, Ryan convive, já há anos, com uma tristeza diária, que a deixa indisposta a fazer qualquer coisa a mais fora da sua rotina cotidiana de pegar o carro todos os dias e conduzir-se ao trabalho. 

        Exatamente em seguida a esse diálogo dos dois, eles conseguem alcançar a EEI, todavia, o "fio" que os ligava e auxiliava, acaba tornando-se traiçoeiro, ao passo que os deixava em posição oposta, adversária, impedindo um deles de "escalar" o satélite-estação e salvar-se. Matt, diante do fato, e estando na ponta que impedia Ryan de adentrar na EEI, decide, por uma iniciativa de absoluta objetividade, racionalidade e muito altruísmo, soltar o "fio" que o prendia a Ryan, embora ela o implorasse insistentemente a não agir dessa forma, pois que ele morreria.

         A resposta de Matt para a insistência de Ryan é algo como uma lição a ela, e também, me parece, ser o grande tema do filme. Matt pede a Ryan algo como o aprendizado de desvincular-se, desapegar-se dos outros - o que eu especificaria ainda mais, e afirmaria: o aprendizado de desapegar-se dos outros diante da morte. Em termos visuais e mais exteriorizados, a acompanhar o cinema, isto seria Ryan condescender que se rompesse o "fio" que a ligava à Matt na iminência de morrer  - por extensão e implícito, o fio que a ligava à sua filha, que também a colocou frente a experiência da morte. O desprendimento diante da morte permitiria que Ryan encarasse a realidade e sua vida com mais vontade de vivê-la, de torná-la algo mais que a tosca e limitada sensaboria da rotina cotidiana. 

       A ironia da médica com dificuldade de lidar com a morte parece chegar ao fim quando Ryan adentra a EEI. Em uma cena maravilhosa, em que parece ser retratado um feto nos seus primeiros meses de vida na barriga da mãe (a ausência de gravidade faz com que Ryan flutue quando está deitada no ar em frente a tampa redonda do satélite), Ryan é retratada dentro da EEI, com os resquícios do recém rompido "cordão umbilical" com Matt e com a situação de aprisionamento e inaptidão para lidar com o momento de presença da morte. A forte sugestão às imagens da criação humana, se nessa figura do feto por Ryan, e do "cordão"que ligava Ryan e Matt, vem a rematar a superação da morte, o surgimento da vida e a independência da vida e da morte, dois episódios da vida humana que não convivem simultaneamente. Se se opta por viver à sombra da morte, dos acontecimentos que outrora a trouxeram, é impossível o contato com a vida, o inevitável viver.

       Como bem ensina a expedição espacial, em um lugar onde não há oxigênio, não há possibilidade de vida. Se surgem falhas no decorrer da expedição espacial, os homens deverão e só poderão conviver com a morte. Não há opção pela vida humana no espaço (pelo menos, onde não exista oxigênio, como no lugar onde estavam os personagens). No espaço, homem e vida não se conectam, não estão aliados como na Terra. Lá não há como não aprender a convivência com a morte, ou pelo menos, a encará-la de outra perspectiva. É-se necessário o divórcio com a gravidade, com a forma como a vida se dá e se finaliza na Terra. É imperioso a convivência com a iminência da morte. Ainda não conheci outro filme que mais figurasse a necessidade de desvinculo com o outro, a situação terrena e a morte, como esse de Alfonso Cuarón.

        Afora essa instigante forma de abordagem de uma temática humana, Gravidade é um presente de imagens belíssimas ao espectador e aos simpatizantes da observação da Terra sob a perspectiva espacial - o recurso 3D ao filme é bastante aproveitado e pertinente. Vemos, com a proximidade virtual do 3D e da perspectiva do astronauta que vê a Terra à olho nu, além da beleza natural externa do planeta, uma sucessão de eventos naturais belíssimos sob tais perspectivas ópticas, como o nascer e o pôr do sol e a aurora polar. Além do mais, para os curiosos no funcionamento interno dos satélites, ou simplesmente os interessados em satélites, há uma rica e não tendenciosa retratação das estações espaciais americana, russa e chinesa - nessa hora devo reconhecimento cheio de júbilo de o filme ter sido feito por um mexicano (dispensável dizer: e não por um americano saudosista somente da NASA). Aliar imagens de altíssima sugestão humana a eventos da Terra e espaço, escolhendo para isso um enredo construtivo, verossimilhante e humano rendeu uma grande obra cinematográfica. 

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P. S.: Depois de assistir ao filme, e se você for um interessado pela ciência, não deixe de conferir esta matéria "Gravidade: a ciência por trás do filme", a partir do link:
http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/gravidade-a-ciencia-por-tras-do-filme

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