quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Calundú & boi Soberano

      Antes de todas as qualidades de Guimarães Rosa, acho eu, vem a de contador de histórias. Sim, Guimarães Rosa é um grande contador de histórias. Mesmo em textos curtos é capaz de nos oferecer uma reunião de uma, duas, três, quatro ou até mais de quatro histórias. Todas elas com o sabor do "causo" mineiro: repleto de superstições, lendas, simpatias compassivas e antropomorfizações. 
       O "causo" mineiro, se tão agradável de se ouvir pela gostosa música de sua prosa (a conhecida cadência típica da fala mineira), ou mesmo, pelo que tem de riqueza em acontecimentos, parece sempre instigante e interessante por abrigar histórias que defrontam as pessoas com os fatos que são espantosos para a realidade do homem simples, e também, muito frequentemente, à realidade dos homens, em geral. São repletos dos acontecimentos espetaculares ("maravilhosos", de mirabilia) que se defrontam com as limitações humanas de compreensão dos eventos do mundo e sua perpétua vulnerabilidade entre bem e mau frente aos desafios impacificáveis a sua moral, forma de vida e educação.
       Talvez por ser simultaneamente mineiro de nascimento (nascido em Cordisburgo, MG) e escritor de vocação, Guimarães Rosa tenha se apropriado tão habilmente dessa riqueza do conjunto de conteúdos do causo mineiro, que por si só, tem ritmo, música, história, prosa, páthos e conteúdo humanos. Entre os seus memoráveis causos literários, encontra-se, entre os meus preferidos, aquele do boi Calundú, contado por Raymundão ao Major Saulo, quando estão em meio a sua jornada de tocar uma boiada de bois de corte debaixo de sol forte, caminhos difíceis, brigas entre os vaqueiros do grupo de condutores e enchentes no interior de Minas - enredo do conto O burrinho pedrês.
       O caso do boi Calundú, curto, em meio a tantas outras historietas que os sertanejos relatam e outras tantas que vivem simultaneamente na jornada de condução da boiada, se destaca por ser tão forte e belamente revelador de atitudes nobres, primeiro por parte de um menininho, e depois, de um boi, o Calundú. Sem querer substituir a bela, sonora e mineira descrição do relato de Guimarães Rosa, apresentado por intermédio do seu personagem Raymundão e que logo apresento abaixo, apenas ofereço uma súmula inadiável da história: um boi bravo, que era temido por todos e apenas afeito a Vadico, menininho que adorava animais e queria ser vaqueiro, um certo dia, após uma cena de trocas de carinho entre o animal e a criança, em que Vadico dava sal na boca de Calundú, o boi o mata em frente ao pai do menino e dos vaqueiros. Antes de morrer, no entanto, Vadico pede, determinado e adulto, ao seu pai, que desejava atirar no boi por vingança à morte do filho, que não o mate. Pouco tempo depois, seu Borges, pai de Vadico, resolve se desfazer do boi. Pede que seja enviado a outra fazenda. Na primeira noite de Calundú em outra fazenda, ele urra sem parar, e no dia seguinte, amanhece murcho e morto no meio do curral.
        O povo, como nos relata Raymundão, interpreta o comportamento final de Calundú como de arrependimento pelo seu ato. A dor do boi é tão pungente e a sua morte tão imediata ao fato, que realmente é impossível não confiar no arrependimento de Calundú. Nessa hora, o arrependimento do gesto falho e desmedido, põe o boi muito próximo das emoções do homem nobre. Também, igualmente próxima das emoções do homem nobre está o gesto da criança (Vadico), que pede ao pai que não mate o boi. Esse gesto é de uma compreensão tão absoluta da condição de boi, de animal, de Calundú, que a ação do boi, no menino, não inspirou raiva ou vingança; restou apenas a compreensão do outro. Afinal, o homem é tão limitado para afirmar peremptoriamente que o boi por instantes teve a vontade voluntária de matar o menino, que, frente à ação animal, aos nossos olhos descabida, ou, quem sabe, frente à todas aquelas situações que nossa razão é incapaz de abarcar com justificativas lógicas, cabe a nós apenas o sentimento de compreensão, palavrinha tão próxima, nesse caso do conto então, de aceitação. 
       Os gestos do menino e do boi são bonitos não tanto pelas cenas fortes de morte que os acompanha, mas sobretudo, pelos gestos de humanidade, a presença do respeito ao outro e, do que poderíamos nomear duas virtudes humanas: o arrependimento e a compreensão. Saímos da leitura do continho, balanceados, sem querer vingança para o animal e nem lamentando com desaprovação a escolha do menino. Homem e animal se igualaram em gestos humanos nobres, e por isso, creio eu, igualmente temos simpatia de compaixão por Calundú e Vadico. Os dois são belos por agirem nobremente humanos; e sua história é bela também, por ser inteiramente a favor dos belos gestos dos dois. O que nos emociona é o que é nobre, é o que nos comunica a Beleza mais íntima e autêntica de cada gesto, cada coisa.
       Passo à transcrição do relato do boi Calundú e do menino Vadico:

"[...]
      - É bom a gente dar uma prosa pequena, enquanto se toca boiada. E o que foi que você esteve contando, Raymundão?
      - Conversa boba, seô Major... Era a respeito do Calundú...
      - Zebu terrível. Matou o filho do Borges.
      - Foi sim, seô Major. O pobre do seu Vadico... Menino bom, aquele!
      - Você gostava dele, você trabalhou lá?
    - Mas muito, seô Major... Coração de anjo... Gostava de todo o mundo... Não deixava ninguém judiar com criação nenhuma... Ele queria ser boiadeiro, queria, por toda-a-lei. Um dia, em que fizeram ele ficar aborrecido, veio logo me procurar:  - "Não vou para o colégio! Antes aqui, Raymundão, nem que seja pisado pelas vacas, mas eu quero é ficar aqui com vocês todos!" - Ah, nunca imaginei que ainda ia ver o menino morrer daquele jeito...
      - Foi no campo, não foi?
     - Pois foi na Laje do Tabuleiro, onde tem os cochos... A gente dando sal com quina, por causa que, por perto, lá, estava começando a aparecer peste. O gado fêmea todo reunido: as novilhas solteiras, as vacas amojando, as outras com as crias taludas, ou bezerrada miúda, de dias só. Seu Neco Borges tinha vindo com a família, para apreciar. Seu Vadico gostava demais do Calundú, e o zebu também gostava dele, deixava o menino coçar o pêlo e bater palmada no focinho... Doideira, eu sempre achei. Zebu é bicho mau, que a gente nunca sabe o que é que eles vão cismar de fazer...
      - É mau, por causa que eles são tristes... Repara, só, no berro que eles têm...
     - Sim senhor, deve ser, seô Major. O Calundú, não sei se o senhor sabe, não batia em gente a pé... Ao depois, ele estava no meio da vacaria mansa... Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na mão. A gente estava ali, com as varas... O boi alisava o menino com o focinho, e até parecia gente, carinhoso... Quem é que havia de somar? O senhor sabe que boi não entra na gente assim à toa, sem avisar: mesmo quando eles já estão fazendo gatimanha, sapateando, abrindo terra e soprando em riba, a gente precisa é de não apartar os olhos dos olhos deles...
    - Toda a vida. Na hora de um boi partir na gente, os olhos mudam de jeito e ficam maiores, parecendo que não vão caber mais nos buracos das vistas...
      - Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o Calundú abaixar a cabeça... Parecia que ele ia querer mais sal... E, aí, de testada e de queixo, ele deu com o menino no chão, do jeito mesmo de que um cachorro derruba uma lata. Seu Vadico caiu debruço, com a cabecinha para dentro das patas do touro... E ele nem os o pé em cima: deu uma passada para trás, e foi uma chifrada só... Depois, o Calundú sungou a cabeça, e o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura:...!...
      - Muito triste, Raymundão.
    - Nós corremos, todos, mas não foi preciso tirar o zebu, porque ele deu as costas, e foi andando para longe, vagaroso, que nem que não quisesse ver o crime que tinha feito... Aquilo era sangue por todo lado, e o pessoal gritando... Seu Neco Borges virou um demônio, puxou o revólver... Mas seu Vadico, antes de morrer, falou determinado, que nem pessoa grande: -"Não mata o Calundú, pai, pelo amor de Deus! Não quero que ninguém judie com o Calundú!"...
      - Um-hum!
    - Seu Borges mandou levar para o seu Lourenço, na Vista-Alegre, para ser vendido ou dado de graça... Aí eu disse que levava, porque só eu era quem sabia fazer a simpatia do cambará. O senhor conhece? Pois eu juntei o bicho com um terno de vacas mansas, montei no meu quartão castanho, e joguei um raminho de cambará para trás: aquilo, o zebu me acompanhou, que nem um bezerrinho correndo para o úbere da mãe... Eu falava: - Vamos para adiante, assassino!... - Mas falava baixo, para ele não me entender... Não me deu trabalho nenhum. Agora, quando chegamos lá no Saco-do-Sobre, então foi que eu tive medo, porque a simpatia do cambará só serve para quando a gente está indo na estrada... Fui gritando: - Abram as porteiras dos dois lados, abrir logo!... - E emboquei e atravessei o curral, de galope, saindo da outra banda. Ele e as vacas entraram atrás, e os vaqueiros fecharam tudo. Mas, de noite... Eu pernoitei lá, e vi a coisa, seô Major. Ninguém não pôde pegar no sono, enquanto não clareou o dia. O Calundú, aquilo ele berrava um gemido rouco, de fazer piedade e assustar... Uivava até feito cachorro, ou não sei se eram os cachorros também uivando, por causa dele. Leofredo, que era de lá naquele tempo, disse: - "Ele está arrependido, por ter matado o menino"... - Mas o velho Valô Venâncio, vaqueiro cego que não trabalhava mais, explicou para a gente que era um espírito mau que tinha se entrado no corpo do boi... Parecia que ele queria mesmo era chamar alguma pessoa. Fomos lá todos juntos. Quando ele nos viu, parou de urrar e veio, manso, na beira da cerca... Eu vi o jeito de que ele queria contar alguma coisa, e eu rezava para ele não poder falar... De manhã cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curral...
     - Às vezes vêm coisas dessas, que a gente não sabe, Raymundão."

ROSA, Guimarães. "O burrinho pedrês". In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.69-72.


        Certa vez, Guimarães Rosa contou, em carta a João Condé, que no processo de criação das novelas/contos de Sagarana, ele ouviu bastante cantigas sertanejas: "passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, 'revendo' paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso." Não sei se por lembrar-me dessa declaração de Rosa, ou por uma associação aleatória simples, outro dia essa história do boi Calundú me foi lembrada por uma canção sertaneja antiga, das rodas de moda de viola, chamada "Boi Soberano", de autoria da dupla Tião Carreiro e Pardinho. Não que esteja querendo sugerir que Rosa pudesse ter ouvido Tião Carreiro e Pardinho, ou a canção deles, já que as datas impedem que isso tivesse ocorrido. Tião Carreiro só vai conhecer Pardinho em 1954, a música "Boi Soberano" só será lançada em 1966 e o livro Sagarana publicado em 1946. Em todo caso, o "causo" do boi Colundú me remeteu ao do boi Soberano e achei que não seria tão desarrazoado de minha parte sugerir a semelhança do conto de Guimarães Rosa com a música da dupla caipira.
         Sabendo que a música sertaneja tem mais apelo ao público simples, que a literatura sertaneja de Guimarães Rosa, notaremos na história da música da dupla, menor complexidade de sentimentos do que no conto de Rosa, mas, creio, acharemos beleza da mesma forma, e por mesmas vias: atitude nobre por parte do boi e dos homens. Também, a música de raiz, rica em relatos, muitos deles permeados por superstições, lendas, antropomorfizações e todas aquelas características peculiares e caras ao causo mineiro, tem seu sabor e valor por transmitir histórias através de vozes e violas.
           A canção de Tião Carreiro e Pardinho tem por letra, a história de um boi, o boi Soberano, que salva um menino após estourar uma boiada na cidade de Barretos e as pessoas correrem desesperadas. Antes do acontecimento, o boi bravo, temido era odiado, depois do fato, passa a ser celebrado e respeitado a partir do júbilo do pai do garoto ao ver o filho sendo salvo por ele. Simples, a canção é também relato de uma cena bonita e cheia de sugestão humana. Calundú e Soberano, seus relatos, se aproximam, pois.

            Eis a canção "Boi Soberano", de Tião Carreiro e Pardinho:


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