quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Meditações de Marco Aurélio

     "14. Mesmo se houveres de viver três mil anos ou dez mil vezes esse tempo, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão aquela que está vivendo, nem vive outra senão a que perde. Assim, a mais longa e a mais curta vêm a dar no mesmo.
       O presente, por sinal, é o mesmo para todos; o perdido, portanto, é igual e assim o que se está perdendo se revela infinitamente pequeno. De fato, não podemos perder nem o passado nem o futuro; como poderiam tirar-nos o que não temos?
        Lembra-te, pois, sempre destas duas máximas: primeira, que tudo, desde todo o sempre, tem o mesmo aspecto e se renova em ciclos; nenhuma diferença faz verem-se os mesmos fatos por cem anos ou por duzentos, ou eternamente; segunda, que a perda é igual tanto para o de vida mais longa como para quem morre cedo, porquanto o presente é a única coisa de que será desapossado, pois só tem este e não perde o que não tem."
                                                                                                                     (Livro II, p. 278)

      
       " 5. Não haja nos teus atos má vontade, nem egoísmo, nem falta de exame, nem contrariedade.
         Não embeleze os teus pensamentos a finura; não sejas loquaz nem afanoso.
         Ademais, seja o deus que há em ti o superior de um ente viril, respeitável, um estadista, um romano, um príncipe que a si próprio tenha disciplinado, como seria quem aguardasse, desprendido, o chamado para deixar a vida, sem precisão nem de juramentos nem de um testemunho humano."

        "12. Se cumprires o dever do momento seguindo a reta razão com zelo, com vigor e de boa vontade, sem intenções secundárias, conservando, porém, em permanente pureza o teu nume, como se estivesses prestes a restituí-lo; se a isso ligares a observância do preceito de nada esperar nem evitar, e sim contentar-se da presente atividade conforme a natureza e da veracidade dos tempos heroicos em tudo quanto disseres e falares, terás vivido feliz. E não há ninguém capaz de impedi-lo."
                                                                                   (Livro III, respectivamente, p. 280; 282)

       "1. Nosso amo interior, quando se conforma com a natureza, tem diante dos acontecimentos um comportamento que lhe faculta sempre, na medida do possível, modificar sem esforço o que se lhe oferece. Não tem predileção a matéria alguma colocada fora de seu alcance; àquilo, porém, que lhe achegam ele se lança com reservas e do que se introduz em substituição faz matéria para si, tal como o fogo quando se apodera do que lhe cai em cima e apagaria uma pequena candeia. O fogo vivo assimila rapidamente o que lhe deitam em cima, consome-o e daí mesmo tira com que se erguer mais alto."

       "3. A gente procura para si retiros em casas de campo, na beira-mar, nas serras; tu também costumas anelar vivamente por isolamento desse gênero. Tudo isso, porém, é o que há de mais estulto, quando podes retirar-te em ti mesmo à hora que o desejes.
       A lugar nenhum se recolhe uma pessoa com mais tranquilidade e mais ócios do que na própria alma, sobretudo quando tem no íntimo aqueles dons sobre os quais basta inclinar-se para gozar, num instante, de completo conforto; por conforto não quero dizer senão completa ordem.
       Proporciona a ti mesmo constantemente esse retiro e refaze-te; mas haja nele aquelas máximas breves e elementares que, apenas deparadas, bastarão para fechá-lo a todo o sofrimento e devolver-te livre de irritação contra o ambiente aonde regressas.
       Com efeito, com o que te irritas? Com a maldade humana? Reaviva o juízo de que os viventes racionais nasceram uns para os outros; que a paciência é uma parte da justiça; que não pecam por querer; que tantos já, após ódios ferrenhos, suspeitas, rancores, jazem transpassados pela lança e reduzidos a cinza; e sossega, enfim.
       Porém estás irritado também com os quinhões do todo que te couberam? Recorda a disjuntiva ou uma providência, ou os átomos e todas as provas de que o mundo é como uma cidade.
       Porém ainda te afetarão os interesses do corpo? Considera que a inteligência não se imiscui nas agitações, suaves ou violentas, do alento, uma vez que recolhida, haja compreendido o seu poder próprio; recorda, enfim, tudo quanto ouviste e admitiste sobre a dor e o prazer.
       Porém a gloríola te fascinará? Volta a atenção para a rapidez com que tudo se esquece, para a extensão do tempo infinito num sentido e no outro, para o vazio da repercussão, para a volubilidade e falta de critério dos aparentes aplausos e estreiteza do espaço onde se circunscrevem.
        A terra toda não passa de um ponto, e que diminuto cantinho dela é realmente a parte habilitada! E ali quantos são e quem são os que te hão de louvar?
       Por fim, lembra-te de teu retiro para dentro desta nesga de terra tua e, antes de tudo, nada de tormentos e contensões; sê livre e encara as coisas como um varão, como um ser humano, como um cidadão, como um vivente mortal.
       Entre as noções mais à mão, sobre as quais te inclinarás, estejam estas duas: primeira, que as coisas não atingem a alma; param fora, quietas, e os embaraços vêm exclusivamente dos pensamentos de dentro; segunda, que tudo quanto estás vendo se transformará dentro de instantes e deixará de existir. Pensa constantemente em quantas transformações tu mesmo presenciaste.
        O mundo é mudança; a vida, opinião (Demócrito)".

        "20. Ademais, toda e qualquer beleza é bela por si mesma e a si mesma se completa, sem compreender o louvor como parte; o que louvamos não piora nem melhora com isso. [...]". 

        "24. 'Ocupa-te de pouco', diz ele, 'para viveres satisfeito' (Demócrito). Não será melhor, afinal, ocupar-se do necessário e de tudo que a razão do vivente sociável por natureza decide e como o decide? Isso traz não só a satisfação do dever cumprido mas também a de ocupar-se de pouco.
       Se eliminarmos a maior parte de nossas palavras e ações, não farão falta, e nos sobrarão mais lazeres e sossego. Deves, por isso, de cada vez, lembrar a ti mesmo: Não será isto uma das coisas dispensáveis?
       Aliás, devemos eliminar não só os atos mas também os pensamentos desnecessários, pois assim tampouco os seguirão os atos que acarretam." 
                                                              (Livro IV, respectivamente: p. 282; 283; 284; 285) 


       "5. Não há por que te admirarem a finura? Seja; mas há muitos outros predicados sobre os quais não pode dizer: 'Não é de meu feitio". Procura, pois, mostrar os que dependem inteiramente de ti: sinceridade, circunspecção, laboriosidade, temperança, resignação, simplicidade, benevolência, liberdade, comedimento, seriedade, magnanimidade.
       Não percebes quantos predicados pedes desde logo adquirir, para os quais não tens nenhuma desculpa de inaptidão natural, e insufuciência, entretanto ficas voluntariamente aquém?
       Porventura a razão de murmurares, de mesquinhares, de bajulares, de criminares o teu corpo, de lisonjeares, de futilizares, de tanto te agitares na alma, é uma aptidão natural de tua constituição?
        Não, pelos deuses! Ao contrário, há muito te podias ter libertado desses defeitos e apenas, se tanto, ser acusado de um pouco lento de espírito e distraído. E nisso deve exercitar-te, em vez de tolerar essa preguiça mental ou comprazer-te nela."   

       " 11. Em que ando empregando agora as faculdades de minha alma? Perguntar isso a mim mesmo a todo instante e indagar: o que tenho agora naquela parte de meu ser a que chamam guia? De que tenho agora a alma? Duma criança? Dum adolescente? Duma mulherzinha? Dum tirano? Duma rês? Duma fera?"

       "19. As coisas mesmas absolutamente não atingem a alma, não têm por onde chegar à alma, não podem fazê-la mudar, nem mesmo mover. Só ela mesma a si faz mudar e mover; quais sejam os juízos de que acredita ser digna, tais conforma, para si mesma, as contingências."
                                                                                                      (Livro V, p. 289; 290; 291)


         "8. O guia é o que a si mesmo desperta, modifica e amolda como quiser, e faz que todo acontecimento apareça tal como ele o quer."

         "11. Quando a força das circunstâncias te deixar como que transtornado, volta depressa a ti mesmo; não fiques fora do ritmo além do necessário, porque serás tanto mais senhor da harmonia quanto mais frequentemente voltares a ela."

        "20. Nos ginásios, se alguém nos arranha com as unhas e nos acerta uma cabeçada violenta, não reclamamos, não nos ofendemos, nem o suspeitamos de futuras insídias. Precavemo-nos, por certo; não, porém, como dum inimigo, nem com desconfiança, mas com uma esquiva isenta de malquerença.
         Seja mais ou menos assim nos outros setores da vida; relevemos muitas faltas desses como que nossos parceiros de luta; podemos, como dizia, esquivar-nos sem desconfiança nem ressentimentos."

       "51. Quem ama a glória situa o seu bem numa atividade alheia; quem ama o prazer, em suas próprias sensações; quem tem inteligência, em seus próprios atos."
                                                                                     (Livro VI, p. 293; 293-294; 295; 298)  


       "18. As mudanças assustam? Mas pode alguma coisa ocorrer sem que haja mudança? Que há de mais caro e familiar à natureza universal? Tu próprio podes tomar banho sem que a lenha seja transformada? Podes comer sem que sejam transformados os alimentos? Pode-se realizar alguma outra ação útil sem transformação?
       Não vês, então, que as mudanças em ti mesmo são fatos semelhantes e semelhantemente necessários à natureza universal?"
                                                                                     (Livro VII, p. 300)


         "26. A alegria do homem consiste em fazer o que é próprio do homem. Próprio do homem é querer bem ao seu semelhante, desprezar as comoções dos sentidos, distinguir as ideias fidedignas, contemplar a natureza do universo e os acontecimentos conformes com ela." 

        "29. Apaga as fantasias dizendo a ti mesmo continuamente: Depende de mim neste momento que nesta alma não haja maldade alguma, desejo algum, em síntese, perturbação alguma; ao invés, vendo tudo como é, trato cada coisa segundo o seu valor. Lembra-te dessa faculdade que tens segundo a natureza."
                                                                                      (Livro VIII, p. 307)


       "13. Hoje saí de todos os embaraços; ou melhor, expulsei todos os embaraços; pois não se achavam fora de mim, mas cá dentro, nas opiniões."
                                                                                       (Livro IX, p. 313)


        "16. Não mais se trata, de modo algum,  de discutir o que é um homem de bem, mas de sê-lo."

        "20. A cada um convém o que a natureza universal traz a cada um, e convém na hora em que ela o traz."
                                                                                       (Livro X, p. 318; 319)  


        "1. Propriedades da alma racional: vê a si mesma, analisa a si mesma, molda-se como quer, colhe ela própria os frutos que produz - pois os frutos das plantas e produtos análogos dos animais são outros que colhem -, alcança seu próprio fim, chegue quando chegar o termo da vida. Não é como no bailado, no espetáculo cênico ou função congênere, onde a ação fica por acabar quando algo a empece; em cada parte e no ponto onde for surpreendida, ela perfaz, completo e acabado, o seu propósito, podendo dizer: Eu recolho o que é meu.
        Mais que isso, percorre o mundo todo, o espaço circundante e sua forma, penetra no infinito do tempo, abarca a reprodução periódica do universo, considera todos os aspectos e verifica que nada de novo verão nossos pósteros nem viram nada mais notável nossos predecessores, mas de certo modo, por menos inteligência que tenha, o quarentão viu, em retrato, todo o passado e todo o futuro.
       Próprios da alma racional são também o amor do próximo, a verdade e o pudor, bem como não dar a nada mais valor que a si mesma - o que é próprio também da lei. Assim, pois, nenhuma diferença há entre a razão reta e a razão da justiça."
                                                                                      (Livro XI, p. 321)


       "10. Ver o que são as coisas em si, distinguindo matéria, causa e fim."

       "17. Se não convém, não faças; se não é verdade, não digas. Que a iniciativa seja tua."

      "29. A salvação da vida está em ver a fundo o que é cada ser em si, qual sua matéria, qual a causa formal. Praticar do fundo da alma a justiça e dizer a verdade. Que mais, senão aproveitar a vida encadeando um bem a outro, de maneira que não fique o mais breve intervalo?"
                                                                                      (Livro XII, p. 327; 329)


MARCO AURÉLIO. Meditações. Trad. Jaime Bruna. In: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).

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